terça-feira, 4 de maio de 2021

Uma viagem em cima de um camelo em Wadi Rum




Wadi Rum, também conhecido como O Vale da Lua, é um vale de arenito e rocha de granito no sul da Jordânia a leste de Aqaba. É o maior wadi da Jordânia. Um wadi é um leito seco de rio no qual as águas correm apenas na estação das chuvas. Rum é um nome que deve vir do aramaico e que significa alto ou elevado. 
Wadi Rum tem sido habitado por muitas culturas desde os tempos pré-históricos, como é o caso dos Nabateus, que deixaram a sua marca na forma de pinturas e grafitis rupestres, e templos. Na década de 1980 uma das formações rochosas em Wadi Rum foi batizada de "Os Sete Pilares da Sabedoria" em memória do livro que T. E. Lawrence escreveu logo após ter terminado a Primeira Guerra Mundial, embora os Sete Pilares referidos no livro, na verdade não têm ligação com Rum




No Deserto de Wadi Rum percorre-se a ancestral estrada do rei por onde, durante séculos, viajaram milhares de caravanas de camelos. O destino é a escultural e imponente Petra, escavada na rocha pelo povo Nabateu e posteriormente ocupada pelos romanos. Aqui a natureza mostra toda a sua força. As condições meteorológicas, de terra quente durante o dia e noites frias de céu estrelado, desafiam a vida humana. O cenário praticamente inalterado pelo homem é esculpido por ventos, que ergue e dá forma a imponentes labirintos de arenito e granito de cor avermelhada.




Quando do nosso regresso a Aqaba, os problemas internos absorveram-nos os restantes dias livres. Pela minha parte, dediquei-me especialmente à guarda para minha proteção pessoal. Os homens sentiam grande orgulho de pertencer à minha guarda pessoal, que deu azo a um profissionalismo quase teatral. Ao empenharem a sua resistência, aqueles homens ficavam desonrados se, por falta de energia ou insuficiência de coragem, não conseguissem cumprir as suas obrigações. Com uma curiosa justiça, os acontecimentos forçaram-me a portar-me à altura da minha guarda pessoal, a tornar-me tão duro e tão temerário como eles. Deste modo, organicamente, eu era eficiente no deserto, nunca me sentia com fome nem empanturrado, e a ideia da comida não me distraía. Aprendera a comer muito de uma vez. E depois passar dois, três ou quatro dias sem comer. E depois comer novamente até demais. A minha regra consistia em evitar regras de alimentação; e numa sucessão de exceções habituei-me a não ter hábitos. Podia beber muito num dia para compensar a sede da véspera e do dia seguinte. Da mesma maneira, embora o sono continuasse a ser, para mim, o mais caro prazer do mundo, substituía-o pelo oscilar intranquilo sobre a sela, durante uma marcha noturna, ou conseguia passar noite após noite em trabalho diligente, sem excessiva fadiga. Eu não era como os árabes, mas tinha a energia da minha motivação. As suas vontades menos preparadas cediam antes que a minha cedesse. E isso fazia de mim um duro e ativo. Para mim, os aspetos mental e físico eram uma unidade inseparável. O meu perverso sentido dos valores forçava-me a crer que o abstrato e o concreto, como símbolos, não representavam oposições mais fortes que um liberal e um conservador.

Era uma atitude niilista. O desfalecimento provinha sempre de uma fraqueza moral que corroía o corpo. Mas não tinha poder sobre a vontade desde que não houvesse traições internas. Quando marchávamos estávamos desencarnados sem consciência da carne ou dos sentidos. Olhávamos para o corpo com desprezo, não como veículo do espírito, mas quando, dissolvidos, os seus elementos serviam para estrumar um campo. Nós, pela nossa parte, para um único dia, já tivéramos suficiente adversidade. O terreno estava coberto de gelo, como se não bastasse a força do vento para nos atrapalhar; e nessa altura principiaram os nossos problemas. Os camelos pararam na neve derretida e lamacenta ao fundo de um talude de lama escorregadia e agacharam-se, sendo impossível fazê-los levantar, como se quisessem dizer-nos que não conseguiam levar-nos até lá acima. Desmontámos, para os ajudar, e nós próprios também começámos a deslizar pela encosta. Por fim, descalçámos as nossas botas novas adquiridas para nos protegermos contra o inverno, e, descalços, puxámos os camelos pela encosta e ajudámo-los a descer do outro lado. E tivemos de desmontar mais umas vinte vezes antes do pôr do sol. Aquele vento terrível não nos dava descanso. Nada na Arábia podia ser mais cortante que o vento norte em Maan, e naquele dia era ainda mais cortante e mais forte. Atravessava-nos as roupas, como se estivéssemos despidos. E provocava-nos cãibras nas pernas que não nos permitiam segurar-nos como devia ser na sela. Caíamos no solo de forma violenta com as pernas cruzadas, na atitude de quem ainda estava montado. Chegados já de noite a um riacho que ia cheio, decidi atravessá-lo. Os animais hesitaram, de modo que tivemos de ir à frente, a pé, mergulhando num metro de água gelada. Nos terrenos altos, do outro lado, o vento atacava-nos como um inimigo. Fizemos deitar os camelos numa falange e estendemo-nos entre eles, num relativo conforto, escutando o clamor do vento à nossa volta, tão forte como as altas ondas à volta do navio no alto mar. Cada um de nós dispunha de dois cobertores militares e de um pacote de pão cozido: deste modo estávamos bem apetrechados contra o mal e podíamos dormir em segurança no meio da lama e do frio.

Iniciada em 1916, a Revolta Árabe selou o fim do domínio do Império Turco-Otomano na região que estendia 
desde Alepo até Áden, no Iémen, o que abriu caminho para o domínio dos britânicos e dos franceses depois da guerra. O deserto de Wadi Rum e a Hejaz Railway guardam histórias de ataques aos comboios que Thomas Edward Lawrence, do Bureau Árabe do Império Britânico, deixou para memória futura na sua obra épica "Os Sete Pilares da Sabedoria". Ainda é possível conhecer pontos por onde passava a linha férrea, a única que cortava a região. Wadi Rum está associado a três nomes na história do sonho árabe, de fundar um estado unificado: o Xerife de Meca Hussein, da dinastia Hachemita; Auda Abu Tayi, líder beduíno, chefe dos Howeitas; e o galês Thomas Edward Lawrence. Foi na dinâmica do conflito árabe-turco que Lawrence da Arábia introduziu na região táticas dos chamados ataques terroristas aos comboios que atravessavam na única ferrovia que cortava a região, a Hejaz Railway. Construída a partir de 1900, com o apoio e a consultoria dos alemães, aliados do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial.

As ações terroristas de Lawrence, as promessas dos ingleses de entronizar Hussein, rei do Hejaz, num projeto da nação árabe unida, e o dinheiro inglês, que atraiu os beduínos, selou a aliança entre as antigas tribos árabes rivais. Os três líderes ousaram atacar a importante cidade portuária de Aqaba pelo deserto, algo considerado militarmente impossível, pela adversidade do terreno que teriam de cruzar. Os turcos foram apanhados de surpresa. Perderam Aqaba e, com ela, o único porto que tinham na região. À queda de Aqaba, em 1917, seguiu-se a conquista de Damasco. Os árabes penetraram e tomaram a cidade antes das tropas inglesas do general Allenby.

Os ingleses sofreram um duro revés dos turcos em 15 de agosto de 1915, na batalha entre navios britânicos e franceses contra a artilharia turca, no estreito de Dardanelos. Os ingleses e seus aliados tentaram melhor sorte em Gallipolli, numa planeada operação do então lorde do Almirantado: Churchill. Não só foram derrotados, mas humilhados durante quase nove meses. Os ocidentais recuaram à noite, às escondidas, depois de perder 43 mil homens. As baixas ocidentais alcançaram 220 mil homens, numa campanha que projetou a maior liderança político-militar turca no pós-guerra: o general Mustafa Kemal, Atatürk. Ingleses e franceses tentaram derrotar os turcos uma terceira vez, em setembro de 1915. Dessa vez, o alvo era Bagdade. Foram cercados em Kut, e depois de tentar até subornar o comandante turco, tiveram de se render para não morrer de fome.




A campanha árabe foi a única vitória inglesa no conflito contra os otomanos. E foi a única campanha em que as tropas regulares acabaram por ter um mero papel secundário. Por isso, tão logo Damasco foi tomada, Allenby e o rei Faisal, filho de Hussein, livraram-se de Lawrence, devolvendo-o à Inglaterra. Lawrence, entretanto, ganhou notoriedade com a obra: Os Sete Pilares da Sabedoria, em que narra a campanha da Revolta Árabe.

Não demorou muito para Hussein descobrir que as promessas inglesas valiam tanto quanto os seus exércitos. O Médio Oriente foi retalhado entre franceses e ingleses pelo acordo Sykes-Picot. Hussein tentou governar o Hejaz, mas foi destronado pelos seus inimigos sauditas. Aos seus dois filhos couberam os prémios de consolação: Abdullah ficou com a Jordânia, que não tinha petróleo algum, nem água sem a Palestina que foi entregue pelos ingleses aos israelitas. A Síria foi dada a Faisal. Mas quando este quis, de facto, governar, foi expulso pelos verdadeiros donos, os franceses. Os ingleses o acomodaram no recém-criado Iraque. Faisal, como se sabe, não durou muito, pois, ao contrário da Jordânia, o Iraque tinha petróleo e água. Terminou expulso de lá por militares árabes precursores de um movimento pelo qual ascendeu Sadam Hussein. Os árabes perderam o seu destino pelas mãos dos que os haviam ajudado. 

De volta ao Império Britânico, o herói Lawrence submergiu por cargos menores no Exército e na Aeronáutica, evitando expor-se como celebridade que já era, até encontrar o seu destino num acidente errático de moto. Afinal, como diria Friedrich Nietzsche, nada acontece na vida de um homem que não se pareça com ele.




Connosco viajaram dois mil camelos do Sirhan, carregando munições e víveres. A Minha escolta estava comigo, e Mirzuk tinha os seus Ageyls, com dois famosos camelos de corrida. Quase ao crepúsculo, avistámos a linha férrea numa ampla curva pela região descampada por entre tufos baixos de arbustos e grama. Vendo que tudo se apresentava pacífico, avancei para fiscalizar a travessia da linha o que despertava grande emoção tocar os trilhos, que eram o alvo e a razão de todos os nossos esforços. Cavalgando colina acima, as patas do meu camelo fizeram barulho ao deslocar umas pedras. Da longa sombra de uma passagem subterrânea, à minha esquerda, surge um soldado turco que dormia. Olhou embaraçado para mim e para a pistola na minha mão e depois, com tristeza, para a sua carabina encostada ao muro do aterro, alguns metros além. Era um jovem robusto, mas de aspeto sombrio. Fitei-o e disse-lhe, em voz baixa: “Deus é misericordioso.” Ele conhecia o sentido da frase árabe; e ergueu os olhos para mim. O seu rosto ainda ensonado começou lentamente a transmudar-se, assumindo uma expressão de incrédula alegria. Contudo, ele não disse palavra. Premi, com o pé, o pescoço peludo do meu camelo, começando com passos cautelosos, através dos trilhos, descendo pelo declive. Senti-me enternecido com o jovem soldado turco como sempre a gente se sente quando poupa a vida de alguém. Por isso, segui o caminho de costas viradas para ele sabendo que não iria tentar alvejar-me pelas costas. A certa distância, olhei para trás. Ele pôs o polegar no nariz e, com a mão aberta, acenou para mim com os dedos.

Acendemos à fogueira do café, como baliza para o resto da caravana, e esperamos até que as suas silhuetas escuras passassem a linha. Ali repousamos aquela noite, porque Zaagi havia abatido uma abetarda, cuja carne branca Xenofonte, com razão, qualificara como sendo boa. Enquanto festejávamos, os camelos também festejaram. Por fim, chegou a notícia de que os ingleses haviam tomado Amã. Em meia hora pusemo-nos a caminho de Themed, através da linha deserta. Mensagens ulteriores informaram-nos que os ingleses estavam recuando, e embora houvéssemos advertido os árabes a respeito desta manobra, ainda assim se mostraram perturbados. Outro mensageiro relatou como os ingleses acabavam de fugir de Salt. Isto contrariava inteiramente as intenções de Allenby, e eu jurei, imediatamente, que não era verdade. Um homem veio galopando para dizer que os ingleses haviam feito saltar apenas uns poucos trilhos, ao sul de Amã, depois de dois dias de inúteis assaltos contra a cidade. Senti-me seriamente perturbado no conflito de rumores contraditórios e mandei que Adhub, que merecia confiança por não perder a cabeça, fosse para Salt, levando uma carta destinada a Chetwode, ou a Shea, pedindo-lhes uma nota sobre a situação real. Durante as horas de permeio, vagamos inquietamente pelos campos de cevada nova, com o espírito a elaborar plano atrás de plano, em febril atividade. Bem tarde, já noite, os compassos dos cascos dos cavalos de corrida de Adhub ecoaram pelo vale, e ele chegou para nos dizer que o paxá Jemal agora se encontrava em Salt, vitorioso, enforcando os árabes locais que haviam dado as boas-vindas aos ingleses. Os turcos ainda prosseguiam repelindo Allenby para longe, pelo vale do Jordão abaixo. Pensava-se que Jerusalém seria recuperada por eles. Eu conhecia muito bem os meus compatriotas e rejeitava esta possibilidade; mas, sem dúvida alguma, as coisas corriam muito mal. Regressamos, desconcertados, para o Atatir. Esta reviravolta, por ser inesperada, feria-me ainda mais. O plano de Allenby parecia modesto, e era deplorável que tivéssemos de tombar assim aos olhos dos árabes. Nunca haviam confiado em nós, para a realização das grandes coisas que eu predizia; e agora, com os seus pensamentos independentes, passavam a gozar a primavera por ali. Foram atraídos por algumas famílias ciganas, vindas do norte com os seus apetrechos de latoeiro sobre jumentos. Os homens da tribo Zebn nos saudaram com uma alegria que mal compreendi. Até que notei que, além dos legítimos lucros do seu ofício, as mulheres abriam-se a outros adiantamentos. Eram fáceis, particularmente para os Ageyls; e, durante algum tempo, prosperaram de modo extraordinário, uma vez que os nossos homens tinham tanto apetite como generosidade. Eu também as utilizei. Parecia verdadeira pena estar sem coisa alguma a fazer, tão perto de Amã, sem sequer lançar um olhar ao redor. Assim, Farraj e eu alugamos três das alegres pequenas mulheres, vestimo-nos como tais, e fomos passear pela aldeia. A visita teve êxito, embora a minha decisão final fosse a de que a praça deveria ser deixada em paz. Tivemos apenas um momento ruim, junto à ponte, quando regressávamos. Alguns soldados turcos, encontrando-se connosco e tomando-nos os cinco pelo que parecíamos, tornaram-se excessivamente íntimos. Dando provas de recato, bem como de um golpe de canela pouco habitual a mulheres ciganas, escapamos, intactos. Para o futuro, decidi retomar o meu costume de usar o uniforme de simples soldado britânico, em campos inimigos. Era excessivamente jactancioso para ser suspeito.

Depois disto, determinei que os indianos de Azrak regressassem ao acampamento de Faisal, devendo voltar eu próprio para lá. Partimos em uma daquelas claras madrugadas que despertavam os sentidos com o sol, ao passo que o intelecto, cansado pelo pensar da noite, ainda continuava a cochilar. Por uma ou duas horas, em semelhantes manhãs, os sons, os aromas e as cores do mundo impressionavam o homem, um a um, diretamente, sem ser filtrados, nem transformados em tipos pelo pensamento; pareciam existir suficientemente por si próprios, e a falta de coerência e de cuidado, na criação, já não irritava. Marchamos para o sul, ao longo do caminho de ferro, esperando cruzar com os indianos de Azrak, mais lentos do que nós; o nosso pequeno grupo, montado em excelentes camelos, passava de uma elevação a outra, a fim de vigiar o horizonte. O frescor do dia encorajava-nos ao emprego de boa velocidade por cima de todas as colinas listadas de quartzo, desprezando a infinidade de veredas desérticas que conduziam apenas aos abandonados acampamentos do ano anterior, ou do último milhar, ou dezena de milhar de anos: porque uma estrada, uma vez palmilhada e sulcada naquele misto de quartzo e de pedra calcária, marca a face do deserto por todo o tempo em que o deserto durar. Perto de Faraifra vimos uma pequena patrulha de oito turcos marchando linha acima. Os meus homens, refeitos depois dos dias de folga de Atatir, pediram-me que realizássemos uma incursão contra eles. Julguei o caso muito insignificante, mas, quando eles resmungaram, concordei. Os mais jovens se arremessaram instantaneamente para a frente, a galope. Pus em ordem o resto, através da linha, para repelir o inimigo, forçando-o a retirar-se do abrigo, por trás da passagem subterrânea. Zaagi, a cem metros à minha direita, vendo o que se desejava, volteou de lado, sem perda de tempo. Mohsin seguiu-o um instante depois, com a sua secção; entretanto, Abdulla e eu fomos para diante, marchando vigorosamente do nosso lado, a fim de apanharmos o inimigo de ambos os flancos, juntos e ao mesmo tempo. Farraj, cavalgando à frente de todos, não quis ouvir os nossos gritos nem notou os tiros de advertência disparados por cima da sua cabeça. Contemplou a nossa manobra, mas prosseguiu no trote aloucado a caminho da ponte, onde chegou antes que Zaagi e o seu grupo houvessem atravessado a linha. Os turcos cessaram o fogo, e supusemos que se houvessem retirado para o lado de lá da colina, em busca de maior segurança; mas, quando Farraj puxou as rédeas, parando sob o arco da ponte, ouviu-se um tiro, e ele pareceu cair ou saltar da sela, desaparecendo. Pouco depois, Zaagi colocou-se em posição, sobre a colina, e o seu grupo deflagrou para o ar vinte ou trinta tiros, como se o inimigo ainda lá estivesse. Senti-me inquieto a respeito de Farraj. Seu camelo ali estava, ileso, junto da ponte, só. Farraj talvez estivesse ferido, ou perseguindo o inimigo. Eu não podia acreditar que ele houvesse deliberadamente cavalgado até aos turcos, em campo descoberto, e depois parado; contudo, era o que parecia. Mandei que Feheyd fosse ter com Zaagi, ordenando a este que corresse pelo seu lado tão cedo quanto possível, enquanto nós marchamos a trote apressado diretamente sobre a ponte. Ali chegamos, juntos; encontramos um turco morto, e Farraj terrivelmente ferido, com o corpo atravessado de lado a lado, jazendo junto ao arco, tal como caíra do camelo. Parecia estar inconsciente; mas, quando nos apeamos, saudou-nos, e depois caiu em silêncio, mergulhando no sentimento de solidão que sempre sobrevém aos homens feridos que pensam estar a morte perto. Rasgamos-lhe as roupas e contemplamos, inutilmente, a ferida. A bala apanhara-o em cheio e parecia haver-lhe lesado a espinha dorsal. Os árabes disseram, imediatamente, que ele teria apenas umas poucas horas de vida. Tentamos movê-lo, pois parecia estar sem forças, embora não revelasse sofrimento algum. Procuramos estancar o sangue, que escorria em jato amplo e lento, pondo manchas semelhantes a papoulas, na erva; mas isto parecia impossível, e, depois de breve tempo, ele próprio nos pediu que o deixássemos a sós, visto que estava morrendo, e que se sentia feliz por morrer, uma vez que já não alimentava amor algum para com a vida. Com efeito, havia longo tempo que perdera o gosto de viver; os homens muito cansados e entristecidos frequentemente se enamoram da morte, com essa fraqueza triunfal que se manifesta depois que a força é vencida na última batalha.

Enquanto nos atarefávamos em torno dele, Abd el Latif deu o grito de alarme. Estava vendo cerca de cinquenta turcos que subiam pela linha, na nossa direção; logo depois, um vagonete a motor foi ouvido, vindo do norte. Éramos apenas sessenta homens, em posição impossível. Eu disse que devíamos nos retirar imediatamente, transportando Farraj connosco. Os homens tentaram erguê-lo, primeiro na sua capa, e a seguir, num cobertor, mas a consciência do ferido voltou, e ele gemeu tão pungentemente que não tivemos coração bastante para o molestar mais. Não podíamos deixá-lo onde se encontrava, para que os turcos dele se apoderassem, porque já os havíamos visto queimar vivos os nossos infelizes feridos. Por esta razão combináramos, antes de entrar em ação, que um daria cabo da vida do outro, em caso de ferimento irremediável: mas eu nunca concebera que pudesse recair em mim o dever de matar Farraj. Ajoelhei-me a seu lado, segurando a pistola perto do chão, junto à sua cabeça, de maneira que ele não pudesse perceber o meu propósito; mas deve ter adivinhado, pois abriu os olhos e me agarrou com sua mão ardente e escamosa, a delicada mão daqueles imaturos moços de Nejd. Esperei um momento, e ele disse: “Daud ficará zangado com o senhor.” O antigo sorriso aflorou estranhamente ao rosto acinzentado e crispado. Respondi-lhe: “Saúde-o por mim.” Deu-me a resposta formal: “Deus lhe dará paz”, e, por fim, cansado, fechou os olhos. O vagonete turco estava, agora, bem perto, serpenteando pelos trilhos abaixo, na nossa direção, como um escaravelho; e as balas da sua metralhadora riscavam o ar ao redor das nossas cabeças, enquanto fugíamos para trás das colinas. Mohsin conduziu o camelo de Farraj, sobre o qual se achavam o seu odre e os seus cobertores; estes conservavam ainda a forma do corpo dele, no momento em que caíra junto à ponte. Ao anoitecer, fizemos alto; e Zaagi aproximou-se de mim, sussurrando que todos altercavam para saber quem deveria montar o esplêndido animal no dia seguinte. Ele o queria para si próprio; eu sentia-me amargurado pelo facto de aquela morte haver de novo roubado a minha pobreza; e, para vingar uma grande perda por meio de outra perda, embora pequena, matei o pobre animal com a minha segunda bala. Depois, o sol tombou sobre nós. Durante aquele meio-dia quente e irrespirável, nos vales de Kerak, o ar confinado havia pairado, na sua estagnação, sem movimento algum, enquanto o calor sugava o perfume das flores. Com a escuridão, o mundo se pôs novamente em movimento, e uma brisa, procedendo de oeste, rastejou pelo deserto acima. Encontrávamo-nos a quilómetros de distância das ervas e das flores, mas de súbito as sentimos perto de nós, assim que as ondas de ar perfumado passaram, espalhando uma doçura pegajosa. Entretanto, isto logo se dissipou, e o vento noturno, húmido e enervante, se seguiu. Abdulla trouxe-me o jantar: arroz e carne de camelo (do camelo de Farraj). Depois adormecemos.

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