domingo, 16 de maio de 2021

Uma partilha



Repare-se na cacofonia de siglas, que nunca mais acabam, numa rede de 'patos-bravos' e 'chicos-espertos', que começou com a venda de imóveis sem informação. Uma teia de relações mais ou menos privilegiadas de grandes devedores. E um processo onde faltam execuções de património, cujas perdas acabam por ser pagas pelo Estado português.

«Em 2013, para assistir à final da Champions em Wembley, Almerindo Duarte e o seu sócio, Luís Filipe Vieira, convidaram administradores do BES e representantes do governo do Rio de Janeiro. Voo privado, estadia no Hilton e box no estádio. No ano anterior, a Imosteps, de Vieira, tinha comprado a participação que o GES (através da Opway) tinha na OATA, tendo para isso beneficiado de um empréstimo do BES de €54M. A OATA detinha, através de uma estranha estrutura de offshores, dois terrenos para cemitério e um outro em plena reserva ambiental, no Rio de Janeiro. Vieira descreve a operação como um novo favor a Salgado e gaba-se de, junto das autoridades do Rio, ter conseguido trocar o terreno interdito por direitos de construção na Barra da Tijuca. Ora, de acordo com uma nota do Banco de Portugal, parte do empréstimo de €54M nunca chegou à OATA, sendo “alocado à transferência de determinados montantes para contas pessoais dos acionistas (... uma transferência de €8M para Luís Filipe Vieira)

«No Parlamento Vieira foi incapaz de explicar o destino do dinheiro em falta. Apesar de todo o investimento, os negócios não avançaram e a Imosteps não pagou a sua dívida ao BES, que transitou para o Novo Banco. Em 2019, apareceram três compradores para este crédito, com preços entre os €4M oferecidos no âmbito da carteira NATAII e uns surpreendentes €10M oferecidos pela Iberis Samper. Por trás desta oferta estava José António dos Santos, sócio de Luís Filipe Vieira e acionista do Benfica. Por impressionante coincidência, na mesma altura, a Benfica SGPS lança uma generosa oferta de compra das ações da SAD do Benfica, que garantiria ao acionista da SAD, José António dos Santos, um lucro de mais de €9M. O que valeu foi a CMVM não ter autorizado a OPA, nem o Fundo de Resolução permitiu a venda da dívida da Imosteps à Iberis. Foi o fundo Davidson Kampner que ficou com os €54M de dívidas por €4M, vendendo-o em seguida, com lucro, €8M, a José António dos Santos, que logo cancelou o aval pessoal de Vieira sobre aquela dívida.»

Portanto, recapitulemos: um avaliador que não sabe como os bancos vendem imóveis com desconto; um intermediário que assina de cruz negócios com imóveis; um primo que aceitou gerir uma carteira de imóveis do Novo Banco sem saber da sua origem; um grande devedor – talvez o maior – que pouco sabe, incluindo o que faz hoje, outro que nega ter incumprido com o banco, diz “viver bem”, mas não pagou as dívidas; e um terceiro que subiu e caiu com o BES, e culpa o Novo Banco de pouco fazer para recuperar o crédito. Um banco com uma carteira de créditos para gerir, mas que tem uma política de recuperação que, no mínimo, tem levantado dúvidas a todos, incluindo a quem deve. E em relação à qual sobra uma pergunta: porque razão o Novo Banco não vai atrás do património dos grandes devedores?




Bernardo Moniz da Maia, o líder da família Moniz da Maia que controlava a Sogema, deixou nas contas do Novo Banco uma dívida superior a €500M, mas o administrador tentou que o rótulo de grande devedor ficasse no passado. “Estou aqui como devedor de um fundo não português”, disse, referindo-se ao fundo Davidson Kemper que comprou os créditos ao Novo Banco. Perante a incredulidade do deputado do PS, Fernando Anastácio, que terá de escrever o relatório com as conclusões da Comissão de Inquérito, admitiu mais tarde sentir-se “moralmente” responsável pela dívida. Disse que tudo fez para honrar os compromissos, culpou o Novo Banco por lhe travar negócios no Brasil e não aceitar uma proposta de reestruturação da dívida feita pela Sogema. Só depois admitiu que a proposta tinha uma moeda de troca: mais financiamento. Lançou dúvidas sobre a solução final a que o credor chegou: “Não compreendo que o Novo Banco tenha vendido a dívida da família Moniz da Maia por 10% do valor”.

A dívida da empresa de Vieira no Novo Banco chegou a atingir os €387M entre o fim do BES e o acordo alcançado em setembro de 2017. Administrado o património por Nuno Gaioso Ribeiro, ex-vice-presidente do Benfica, estava uma dívida de €227M. Mas a pandemia já veio adiar os planos de reembolso ao Novo Banco. O primeiro pagamento, no valor de €60M, previsto para 2022, “dificilmente” acontecerá, informou Nuno Gaioso Ribeiro.

Por mais endividado que viva, Luís Filipe Vieira escapou sempre, entre reestruturações e favores, à convocação de um património que, sendo seu, no fundo, nunca lhe pertenceu. O próprio garante que o banco nunca quis avaliá-lo, mas que detém muito mais do que a “casa para palheiro” que lhe é atribuída como única propriedade nos documentos da Comissão de Acompanhamento do Novo Banco.

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