quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Depois do Reino de Himiar em 525, veio o islão de Maomé ao Hedjaz



O Reino de Himiar era, para todos os efeitos históricos, um reino judaico. Os seus habitantes fiéis ao judaísmo, depois de 525, transferiram-se para o Hedjaz, mais a norte, onde se acrescentaram a uma população que já era fortemente judaica nas cidades e nos oásis. Alguns deles ficaram-se pelo Estado de Axum, que era cristão, mas conservando o seu judaísmo. Sempre houve judeus no Iémen desde o Império Romano, que ali permaneceram até emigrarem em massa para a Palestina depois da Segunda Guerra Mundial.

Quando aparece Maomé em Meca, o monoteísmo judaico já estava profundamente implantado na Península da Arábia, mais conhecida por Hedjaz. Maomé, que vivera entre judeus durante toda a vida, pôde contar com, no mínimo, alguma simpatia entre eles, e até esperar que talvez eles fossem a parcela da população mais recetiva à sua profecia ou, pelo menos, à parte segundo a qual o islão era a verdadeira fé que remontava a Abraão. No entanto, não foi em Meca que Maomé iniciou o islão, mas em Medina, onde triunfou.

Assim, o islão surgiu num cadinho urbano judeu. A convicção de Maomé de que os judeus seriam seus aliados mais naturais se explica por uma afinidade entre as duas religiões de Deus único. No entanto, a conexão é ainda mais forte que isso. O judaísmo dos árabes de Himiar talvez tenha sido, num sentido profundo, a raiz de onde o islão irrompeu em grande força. Não há nenhum sentido histórico para considerar as doutrinas de Maomé como vindas do céu. Não surpreende, pois, que, até ser repudiado por clãs judaicas, Maomé orientasse os crentes a orar voltados para Jerusalém. E a explicação da razão por que Maomé tem a sua lenda de ter partido para o paraíso do Rochedo onde tem a sua cúpula dourada. 

É compreensível, portanto, que exatamente da mesma maneira como os cristãos tanto criticavam o judaísmo baseado no Talmude, autores muçulmanos insistam em que o islão é que era o verdadeiro cumprimento da Bíblia hebraica; que em suas páginas, em especial nas epopeias de Abraão/ Ibrahim e de Moisés/ Musa, se encontrassem as promessas afinal concretizadas por Maomé; e que a religião praticada pelos judeus contemporâneos era uma invenção talmúdica moderna dos rabinos, não autorizada por revelação divina. Assim pensavam também, afinal, os samaritanos e a nova congregação dos caraítas, que rejeitavam todas as adições rabínicas às leis expostas na Torá. Se Maomé tivesse aparecido seis séculos antes, as variações talvez não parecessem tão heréticas, uma vez que os próprios Manuscritos do Mar Morto estão cheios de pseudoepígrafes que, em essência, reescrevem não só a história dos Patriarcas, como também o relato do Génesis da própria Criação.

Maomé apareceu numa altura em que os sábios judeus de Yathrib e do Hedjaz haviam declarado de forma categórica o fim dos Profetas. Para muitos desses judeus, e sobretudo para aqueles que o Alcorão chama de Rabban’iyun, a instituição rabínica. Era a revelação de Maomé algo comparável ao que tinha sido descoberto no Templo de Jerusalém, no reinado de Josias, os escritos do sacerdote Esdras, que por milagre se tinham preservado durante o tempo do exílio na Babilónia? E com que direito Maomé mutilava e alterava a Torá, ao tornar Ismael (Ism’ail), e não Isaac, quem Deus ordenou a Abraão o sacrifício do filho? Ism’ail estava exilado no deserto com Agar. E era preciso ter muito descaramento para insistir que os autores da Torá eram charlatães e forjadores, e por isso, merecedora de uma adequada emenda feita pelo Alcorão. Os irados guardiães da tradição judaica, em Medina, não se furtaram a propalar a enormidade da heresia. Além disso, fizeram-no através do clássico expediente árabe da poesia pública, declamada diariamente nos mercados a céu aberto de Medina. Os beduínos tinham uma longa tradição de fazer essas declamações versificadas, e esse foi um dentre outros costumes árabes que os judeus adotaram com facilidade.

As coisas mudaram drasticamente em Medina. Irritado com a rejeição dos judeus, Maomé mudou o sentido da qibla, a direção para onde deviam ser dirigidas as orações. Deixou de ser para Jerusalém. E passou a ser para Meca. Em 622, já era muito evidente que Maomé assumiria uma postura radicalmente antagónica aos clãs judeus mais antigos e poderosos, todos eles perigosamente aliados, de uma forma ou de outra, dos seus adversários. Mas os judeus acabaram por ser chamados Povo do Livro. Expulsos de Medina, os judeus de Banu Nadir foram para Khaybar, no Norte, onde muitos deles já possuíam terras. A historiografia muçulmana faz da batalha de Khaybar uma epopeia decisiva, com Maomé infiltrando falsos convidados dentro das muralhas, para que atacassem e matassem os anfitriões durante as festas. Assassinaram Huyayy ibn Akhtab, o chefe do clã Banu Nadir. Mataram o genro e fizeram refém a filha Safiyya, que se tornou a segunda mulher de Maomé. Um primo e genro, Ali, atacou Marwab, o mais temível guerreiro judeu. 

Segundo fontes muçulmanas, Maomé decidiu expulsar os judeus de Khaybar, pela audácia de eles se aliarem aos inimigos. Depois da rendição, porém, e talvez pensando em outros meios de pacificação, diz-se que Maomé concordou com a proposta dos próprios judeus: terem permissão de ficar e praticar a sua religião, em troca da metade de suas colheitas. Seja isso historicamente verídico ou não, não resta dúvida de que a submissão de Khaybar tornou-se um modelo para os acordos que o islão iria impor às populações que subjugou. E tudo tão rápido e com uma energia espantosa. Contudo, o mais capaz dos califas guerreiros, Omar I, em muitos sentidos o arquiteto do império militar e religioso islâmico, revogou o pacto de Khaybar ao declarar, em 642, que Maomé, antes de morrer, dez anos antes, insistira em que só podia haver uma fé na Arábia. Todos os incréus (cristãos e judeus) teriam de sair. Se não fosse pelo seu pé, então teriam de ser expulsos por qualquer meio que se tornasse necessário. Mediante um decreto, os judeus foram postos para fora da Arábia, onde tinham vivido pelo menos meio milénio.

Muitos judeus acabaram por se converter ao islão. Mas, sobretudo no Himiar, lá permaneceram alguns até à Segunda Guerra Mundial, como se disse atrás. Foram encontrados vestígios dos séculos XI e XII entre o material do depósito conhecido como Guenizá do Cairo, e sinagoga Ben Ezra de judeus palestinos em Fustat, na cidade velha do Cairo. O viajante Benjamim de Tudela, do século XII, referiu-se às “recabitas”, comunidades nómadas de guerreiros, criadores e pastores judeus, cujo líder, ou nasi, vestia-se de preto, não comia carne nem bebia vinho, mas guardava as festas e jejuns tradicionais.

Nas gerações que se seguiram às conquistas de Maomé, e dos seus sucessores - Abu Bakr, e Omar - alguns judeus deslocaram-se para a Síria, Palestina e Egito. E outros foram para cidades da Mesopotâmia e da Pérsia. Foi por estas paragens que o Talmude recebeu acrescentos e aperfeiçoamentos. Como era impossível dizer quem era judeu e quem era muçulmano pelo aspeto físico, exigia-se que os judeus usassem trajes característicos, de cor mostarda, e proibia-se que usassem turbantes ou outro tipo de adereço muçulmano digno. Os chapéus dos judeus tinham forma e estilo determinados, e um distintivo amarelo foi imposto pelo califado abássida em Bagdade. Além disso, os judeus não podiam usar cinto, apenas uma faixa de pano, como sinal de serem pessoas submissas e desarmadas.

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