segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Soljenitsin e o pós-estalinista Khrutchev





Khrutchev não divulgou nenhum documento ao longo da batalha contra os estalinistas que se opunham às suas reformas. Talvez ele não tivesse força suficiente para isso, ou talvez esses documentos acabassem por revelar a sua própria participação na repressão do tempo de Stalin. Em vez disso, Khrutchev usou uma nova tática, ampliando o debate público sobre Stalin para além do Partido, e disseminou-o pelo mundo literário. Parece ter sido essa a razão para permitir o lançamento de “Um dia na vida de Ivan Denisovich”, de Aleksandr Soljenitsin, um romance sobre o Gulag. Aos poucos, nomes banidos começaram a reaparecer em publicações oficiais, sem que se explicasse porque se tinham eclipsado e agora reaparecido.

Graças à sua importância na literatura, e ao papel que desempenhou ao divulgar no Ocidente a existência do Gulag, Aleksandr Soljenitsin certamente merece menção especial na história dos campos soviéticos. Mas a sua breve carreira de autor soviético "oficial", famoso e amplamente publicado, também merece ser contada, pois ela marca um importante momento de transição. Quando Ivan Denisovich foi impresso pela primeira vez, em 1962, o Degelo estava no auge, havia poucos prisioneiros políticos, e o Gulag parecia coisa do passado. No verão de 1965, quando um jornal do partido descreveu Ivan Denisovich como "uma obra indubitavelmente controversa do ponto de vista ideológico e artístico", Khrutchev já tinha sido expulso. Os colegas de partido retiraram-no do poder em 1964, substituindo-o por Leonid Brejnev como primeiro secretário e Alexei Kossygin como primeiro-ministro. 
A quantidade de presos políticos voltou a aumentar a uma velocidade estonteante. Em 1974, quando O Arquipélago Gulag surgiu na Inglaterra - a história do sistema de campos narrada em três volumes por Aleksandr Soljenitsin, ele tinha sido expulso do país e os seus livros só eram publicados no exterior. A instituição dos campos de prisioneiros havia sido firmemente restabelecida e o movimento dissidente estava em plena atividade.

A carreira de Soljenitsin na prisão tinha começado da maneira típica entre os zeks de sua geração. Depois de entrar na escola de oficiais, em 1941, ele lutou na frente ocidental no outono e no inverno de 1943. Tinha escrito algumas críticas a Stalin numa carta enviada a um amigo em 1945 - e foi preso logo depois. Até então um comunista mais ou menos crente, o jovem oficial ficou atordoado com a brutalidade e a crueza com que foi tratado. Mais tarde, ele ficaria ainda mais chocado diante do tratamento agressivo dispensado aos soldados do Exército Vermelho que tinham sido capturados pelos nazis. Em sua opinião, esses homens deveriam ter sido recebidos como heróis.

Nos campos especiais em Karaganda, onde Soljenitsin esteve preso, ele serviu de informador antes de cair em si. Depois trabalhou como pedreiro. Foi essa a profissão que escolheu para Ivan Denisovich, o zek "comum" que protagonizou o seu primeiro romance. Depois da libertação, passou a dar aulas em uma escola de Ryazan e começou a escrever sobre as suas experiências. Isso também não era comum: as centenas de memórias do Gulag que foram publicadas desde a década de 1980 são um testemunho da eloquência e do talento dos ex-prisioneiros soviéticos, entre os quais muitos escreveram em segredo durante anos. No final, o que tornou Soljenitsin verdadeiramente único foi o facto de sua obra ter sido publicada na União Soviética enquanto Khrutchev estava no poder. O romance era bastante direto: registava um dia na vida de um prisioneiro comum. Os leitores atuais - mesmo os russos - podem achar difícil entender porque o livro gerou tanto furor nos meios literários de Moscovo. Mas ele teve o impacto de uma revelação para quem o leu em 1962. Ivan Denisovich descrevia sem rodeios a vida nos campos, um assunto que até então não havia sido discutido em público.

Ao mesmo tempo, o estilo de Soljenitsin - em particular a utilização da gíria dos campos - e a descrição do tédio e do desgosto da vida na prisão contrastavam vivamente com a ficção vazia e falsa que se publicava. O credo oficial da literatura soviética, o "realismo socialista", não era realismo de facto, mas uma versão literária da doutrina política de Stalin. A literatura das prisões não havia mudado desde os dias de Gorki. Se houvesse um ladrão num romance soviético, ele veria a luz e se converteria à verdadeira fé soviética. O herói podia sofrer, mas no final o Partido lhe mostrava o caminho. A heroína podia verter lágrimas, mas assim que aprendia o valor do Trabalho, descobria o seu papel na sociedade.

Ivan Denisovich, ao contrário, era genuinamente realista: não era otimista nem dava lições de moral. O sofrimento dos heróis era inútil. Seu trabalho era extenuante, e eles tentavam evitá-lo. O Partido não triunfava no final, e o comunismo não emergia vencedor. Essa honestidade, tão rara num escritor soviético, foi precisamente o que admirou Tvardovsky, quando disse a Kopelev que a história "não tinha um pingo de falsidade". E essa foi precisamente a qualidade que perturbou muitos leitores, em especial os do establishment soviético. Até mesmo um dos editores da Novyi Mir considerou a franqueza do livro perturbadora. Nos comentários sobre a obra, ele escreveu que "ele mostra a vida por um único ângulo, distorcendo involuntariamente as proporções". Para as pessoas acostumadas a conclusões simplistas, o final do romance parecia terrivelmente aberto e amoral. Tvardovsky desejava publicá-lo, mas sabia que se mandasse uma cópia datilografada aos censores eles a baniriam de imediato. Em vez disso, ofereceu Ivan Denisovich a Khrutchev, para que ele o usasse contra os inimigos. Segundo Michael Scammel, Tvardovsky escreveu um prefácio que apresentava o livro exatamente sob essa luz e começou a distribuí-lo a pessoas que poderiam entregá-lo ao próprio Khrutchev.

Depois de muitas idas e vindas, muita discussão e algumas alterações no manuscrito - Soljenitsin foi persuadido a acrescentar pelo menos um "herói positivo" e a incluir uma subtil condenação ao nacionalismo ucraniano. Finalmente, o romance acabou por chegar a Khrutchev, que o aprovou. Chegou até a elogiar o livro por ter sido escrito "no espírito do XXII Congresso do Partido", o que presumivelmente significa que, em sua opinião, ele iria incomodar os inimigos. Finalmente, o romance apareceu impresso na edição da Novyi Mir - novembro de 1962. "O pássaro está livre! O pássaro está livre", Tvardovsky teria gritado com um exemplar nas mãos. A princípio, o elogio da crítica foi fastidioso, principalmente porque o enredo ia ao encontro da linha oficial do momento. O crítico de literatura do Pravda desejou que daquele momento em diante "a luta contra o culto à personalidade continue a facilitar o aparecimento de obras de arte notáveis pelo valor artístico inesgotável". O crítico do Izvestiya disse que Soljenitsin "havia se mostrado um verdadeiro colaborador do Partido numa causa sagrada e vital - a luta contra o culto à personalidade e suas consequências". 

No entanto, não foi bem essa a reação dos leitores comuns que afogaram Soljenitsin em cartas nos meses seguintes à publicação da Novyi Mir. O paralelo com a nova linha do Partido não impressionou os ex-prisioneiros que lhe escreveram de todo o país. O que aconteceu e que eles ficaram muito satisfeitos de ler algo que refletia a própria experiência e os próprios sentimentos. Pessoas temerosas de deixar escapar uma palavra aos amigos mais próximos de repente se sentiram libertas. Uma mulher descreveu a sua reação assim: "Meu rosto se encheu de lágrimas. Não as enxuguei porque naquelas poucas páginas da revista estava o retrato de todos os dias dos quinze anos que passei nos campos".
Outra carta endereçada ao "Caro amigo, camarada e irmão" Solienitsin dizia: "Lendo sua história eu me lembrei de Sivaya Maska e Vorkuta [...] as geadas e as nevascas, os insultos e as humilhações [...] Eu chorei enquanto lia - os personagens eram todos familiares, como se fossem da minha brigada [...] Obrigado mais uma vez! Continue assim - escreva, escreva".

As reações mais fortes vieram daqueles que ainda estavam presos. Leonid Sitko, que então cumpria a segunda pena, soube da publicação no distante Dubravlag. Quando um exemplar da Novyi Mir chegou à biblioteca do campo, os administradores o retiveram por dois meses. Finalmente, os zeks conseguiram um exemplar e formaram um grupo de leitura. Sitko recordou: «Os prisioneiros ouviam sem respirar. Depois que a última palavra foi lida, houve um silêncio mortal. Então, após dois ou três minutos, a sala explodiu. Todos tinham vivido aquela história dolorosa.»

As próprias lideranças do Partido começaram a ficar muito inquietas. Talvez o retrato honesto que Soljenitsin pintou da vida nos campos tenha sido demais para eles: ele representava uma mudança significativa demais, sua publicação foi rápida demais para homens que ainda temiam que a própria cabeça fosse a próxima a rolar. Ou talvez já estivessem cansados de Khrutchev, talvez pensassem que ele já tinha ido longe demais e usaram o romance de Soljenitsin como desculpa. De facto, Khrutchev foi deposto pouco tempo depois, em outubro de 1964. Seu substituto, Leonid Brejnev, era o líder dos neo-estalinistas - reacionários, oponentes da mudança e do Degelo.

A rapidez da mudança refletia a postura ambivalente da União Soviética em relação à própria história - ambivalência que não foi resolvida até hoje. Para a elite soviética, aceitar que o retrato de Ivan Denisovich era autêntico significava admitir que pessoas inocentes haviam sofrido inutilmente em vão. Se os campos fossem realmente estúpidos, e dispendiosos, e trágicos, então a União Soviética também era estúpida, e dispendiosa, e trágica. Para os cidadãos soviéticos fossem eles membros da elite ou simples camponeses, era e ainda é difícil aceitar que sua vida foi guiada por um amontoado de mentiras.

No final - por meio de táticas que viriam a ser repetidas anos depois - o establishment recorreu a insultos pessoais. Em uma reunião do Comité do Prêmio Lenine, o chefe da Komsomol, Sergei Pavlov, levantou-se e acusou Soljenitsin de se ter se rendido aos alemães durante a guerra e de ter sido condenado como criminoso. Tvardovsky fez Soljenitsin ir buscar a certidão de reabilitação, mas era tarde demais. Ele continuou escrevendo, mas nenhum de seus romances subsequentes foi publicado na União Soviética - pelo menos não legalmente - até 1989. Em 1974, foi expulso do país e acabou por fixar residência em Vermont. Até à era Gorbatchev, apenas um minúsculo grupo de cidadãos soviéticos - aqueles que tinham acesso a cópias clandestinas datilografadas ou exemplares contrabandeados - lera O Arquipélago Gulag, o seu relato do sistema de campos de trabalho e concentração.

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