domingo, 19 de novembro de 2023

Duas bíblias com iluminuras, editadas na Corunha: Bíblia de Kennicott + Bíblia de Cervera




Bíblia de Kennicott

A Bíblia de Kennicott, é uma cópia da Bíblia em língua hebraica manuscrita na cidade da Corunha em 1476. É uma iluminura obra prima da ilustração medieval. Manuscrito sefardita, muito luxuosamente ilustrado, redigido pelo calígrafo Moisés Ibn Zabarah e ilustrado por José ibne Haim. O seu nome deriva de 
Benjamin Kennicott, cónego da catedral da Igreja de Cristo de Oxford. Foi adquirido pela Biblioteca Bodleian em 1872. Na época, a cidade galega da Corunha contava com uma próspera comunidade judia que, segundo Cecil Roth, era uma das comunidades hebraicas mais ricas da Península Ibérica. Esta comunidade judia da Corunha possuía várias bíblias escritas em língua hebraica, entre as quais é citada uma outra Bíblia conhecida por Bíblia de Cervera, produzida por volta de 1300 pelo escriba Samuel ben Abraão ibn Natan, decorada pelo iluminador francês Joseph Hazarfati, e com micrografias de um certo Abraão ibn Gaon. A Corunha, para além da prosperidade económica, tinha uma relevante atividade cultural, destacando a maior escola de ilustradores judeus da Europa.



Bíblia de Cervera

Sucede que em 1492 os Reis Católicos assinaram em Granada o Decreto de Alhambra. Os judeus e pessoas que professassem a religião judaica tinham que abandonar a Espanha. Ou então só tinham como alternativa converter-se ao cristianismo. Este facto provocou o exílio de muitas famílias hebraicas. Foi assim que apelidos sefarditas começaram a aparecer por diferentes partes da Europa, bem como na Turquia e Palestina. Todavia, já em 1478, o Papa havia autorizado os monarcas espanhóis a nomear inquisidores. Nessa altura os judeus não convertidos não ficaram preocupados visto que a Inquisição só lidava com cristãos conversos, e não propriamente com os judeus. De facto, quando a Inquisição começou a atuar em Sevilha, houve de imediato uma fuga em massa de conversos para cidades e aldeias mais distantes, fora do alcance dos inquisidores. Mas também é certo que os próprios judeus caíram na tentação de se vingar de ex-vizinhos que tinham deixado a religião. Alguns judeus não perdoavam os apóstatas, a ponto de se disporem a intervir e prestar informações sobre eles aos inquisidores. É improvável que, quando Fernando e Isabel pediram ao papa Sisto IV que autorizasse a nomeação de inquisidores, alguém, inclusive os monarcas, tenha previsto a máquina de tortura monstruosa em que se tornou a Inquisição.

A Inquisição tinha independência para julgar, constituindo um Estado dentro do Estado, não subordinado a ninguém exceto ao Papa, à Coroa e a seu próprio conjunto de normas burocráticas. Além dos inquisidores e dos membros dos tribunais de interrogatório, havia um imenso exército de “irmãos do Santo Ofício” que era responsável pelo trabalho burocrático que oleava a máquina de terror. Por exemplo, eram tantas as normas, planeadas com esmero, que prescreviam a aplicação da tortura. D
epois que um inquisidor ter sido assassinado na catedral de Saragoça, por um grupo desesperado de conversos, Tomás de Torquemada nunca mais viajou sem ser escoltado pela sua própria segurança, uma espécie de exército em miniatura. 
Concedia poderes praticamente ilimitados para se extrair por tortura uma confissão  comprometedora. 

Surgiu assim na história o Estado dos denunciantes: criados, parentes e vizinhos eram intimidados e adulados para se tornarem informadores e espiões. E a Inquisição também inventou, num grau jamais visto desde os romanos, o espetáculo de punição pública como diversão de massa. Os dias de auto de fé foram declarados dias festivos e feriados, para que o maior número possível de pessoas pudesse assistir à procissão dos condenados impenitentes que não se reconciliavam com a Igreja. Eles caminhavam pelas ruas descalços, com o chapéu cónico e o sambenito, hábito em forma de saco, decorados com chamas, pois, como os inquisidores hipocritamente lembravam aos infelizes, era melhor serem consumidos pelas chamas neste mundo do que condenados a queimar no inferno por toda a eternidade. A aristocracia, e às vezes até o rei e a rainha, comparecia a essas cerimónias elaboradas, mordiscando guloseimas e levando uma caixinha de perfume ao nariz quando o cheiro se tornava desagradável. Quando se começou a exumar os ossos de hereges, muitas vezes às centenas, e queimá-los junto com os corpos vivos, o ar das cidades de imolação era um espesso manto de cheiro nauseabundo.

O jovem Isaac Braga deve ter-se sentido fascinado, quando em 1476 contemplou pela primeira vez o resultado da sua encomenda: a Bíblia de Cervera. Um texto bíblico manuscrito e iluminado por volta do ano1300. Foi executada em Cervera, província de Lérida, que atualmente se encontra na Biblioteca Nacional de Portugal. 




A obra encontrava-se no início do século XIX nos Países Baixos, para onde muitos judeus de Portugal tinham emigrado durante o reinado de Dom Manuel I, principalmente depois do Massacre de Lisboa de 1506. Entrou em Portugal por iniciativa de António Ribeiro dos Santos, Bibliotecário-Mor da Real Biblioteca Pública da Corte, fundada em 1796.Um livro paradisíaco, viajara muito, passando algum tempo em Córdoba no fim do século XIV, antes de ir parar à Corunha à família de Salomão Braga, pai de Isaac Braga 

A Bíblia de Cervera, a que os hebreus preferem chamar Tanakh, é a coleção dos principais textos sagrados do judaísmo, para além do tratado Sefer Mikhlol, do letrado David Kimchi, sobre gramática hebraica bíblica, que o escriba, Moisés ibn Zabara, fez questão de incluir. Pela antiguidade e excelência do trabalho é a mais importante obra do género existente em Portugal, e das mais importantes a nível mundial. Foi peça central durante a exposição: Medieval Jewish Art in Context no Metropolitan Museum of Art, de 22 de novembro de 2011 a 16 de janeiro de 2012. 

Se em muitos aspetos a Bíblia de Cervera tem um ar encantadoramente arcaico, isso ocorre também porque o cliente e o escriba queriam, ao que se presume, dizer alguma coisa a respeito da vitalidade da tradição. O trabalho fulge com cores intensas e brilhantes de ouro e prata, lápis-lazúli e encarnado, como também de impetuosa animação narrativa com falanges de gatos a darem caça aos camundongos inimigos. Seria bom imaginar aquele júbilo do jovem Isaac com a Bíblia de Cervera na posse da família Braga, sem o mau augúrio do que os Reis Católicos estavam a cogitar. Em 1483, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, unidos como rei e rainha da Espanha desde 1474, levavam por diante a grande extinção da vida judaica na Hispânia sefardita. Houve promotores, como foi o caso do dominicano Vicente Ferrer e do franciscano Alonso de Espina.

Ambos estavam convencidos de que os cristãos-novos sempre estariam tentados a se reconverter ao judaísmo enquanto houvesse judeus por perto. Como a Igreja estava mortalmente ameaçada pela presença desses cristãos de fé vacilante em seu seio, os Reis Católicos fizeram com que todos os judeus fossem expulsos da Andaluzia (Córdoba e Sevilha), considerada a província, como eles diziam "mais infetada pela peste judaizante". Toledo tinha-se tornado um dos lugares mais fecundos da coexistência cultural entre o islão e o judaísmo. Era a filosofia e a ciência, bem como a literatura da cultura árabe e hebraica. 

Os judeus tiveram que se retirar, quase da noite para o dia, de cidades onde estavam radicados havia muito tempo. Foi dado apenas um prazo de oito dias. As autoridades designaram novas áreas onde eles teriam de residir, quase sempre na periferia da cidade, onde se encontravam os bairros mais pobres e sórdidas das cidades. Para além disso eram deslocados deliberadamente para zonas distantes das lojas e oficinas onde trabalhavam e comerciavam. A intenção era arruiná-los para os obrigar à conversão. Eles foram forçados a vender as suas propriedades ao peço da chuva.

Talvez não fosse isso que a família Braga na Corunha, e outros judeus em Toledo, Córdoba, Saragoça e Girona, estivessem à espera dos novos monarcas. Isso era típico de reinados com soberanos fracos, o que não parecia o caso, com 
Aragão e Castela unidos, e Fernando e Isabel aparentemente simpáticos a conversos. Mas a expulsão era o sonho dos cristãos fanáticos. Como o reino poderia se haver sem o dinheiro judeu quando estava para lançar uma cruzada contra o reino fortificado e obstinadamente inconquistável de Granada? Assim, embora as ideias do confessor de Isabel, Tomás de Torquemada, fossem bem conhecidas e assustadoramente alinhadas com a solução judaica de Espina, nada havia na década de 1470 que induzisse pânico nos judeus, como a expulsão do reino de Espanha.

Desde 2015, a comunidade judia galega, principalmente mediada pela Comunidade Judia Bnei Israel da Galiza, reclamou o regresso do manuscrito original da 
Bíblia de Kennicott, à cidade da Corunha, sendo um dos assuntos tratados pela comunidade judia galega durante a visita à cidade do tesoureiro da delegação europeia da União Mundial do Judaísmo Progressista David Pollak em 2015. A Corunha conta com um exemplar fac-símile que foi adquirido pela Junta da Galiza e que se encontra exposto na Academia de Belas Artes. A Comunidade Bnei Israel defende a devolução à cidade do manuscrito fundamentando na justiça moral e histórica e o valor histórico que o livro tem para a cidade.


Sem comentários:

Enviar um comentário