quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Ideologia



A ideologia não é uma excentricidade inofensiva. Nem um substituto da religião. Pode ameaçar exatamente a estrutura do pensamento e da ação racional. O primeiro efeito da ideologia no poder é marcar o terreno da discussão política. Pode ser um campo onde se defronta o poder com a oposição. Ela elimina o elemento da escolha racional das decisões políticas como se tratasse de ciência. Remove o exercício da isenção e da imparcialidade. 

A incapacidade de discutir com oponentes, de abrir a mente para a dúvida e para a hesitação é uma característica das ideologias acantonadas nos extremos do campo político. É numa ideologia que as pessoas partilham 
as mesmas ilusões fundamentais. Uma ideologia revolucionária posiciona-se  acima de qualquer lei e considera todas as pessoas apenas como um meio para o supremo objetivo revolucionário da " justiça social". Não há ideologias sem líderes que se podem tornar heróis ou serem proscritos. A menos que tenham sido canonizados como Heróis Revolucionários, são esquecidos assim que deixam o cargo, e não existe procedimento nem para elegê-los nem para removê-los. O poder é a única substância palpável. E é um poder que está além de toda a avaliação racional. O avanço impessoal do poder movido por uma ideologia não é da responsabilidade de ninguém. Assim, não há como responsabilizar a entidade de corpo e alma. 

Em democracia, o eleitor não deve ignorar as consequências dos seus atos quando se despede da razão e se deixa arrastar pela emoção desvalorizando o seu legítimo poder enquanto tal. 
Por exemplo, o efeito da ideologia marxista é precisamente colocar uma abstração com o nome de Estado no caminho da dominação. Nesse caso, ninguém sabe como pará-lo, já que nenhuma razão para pará-lo pode ser proferida sem penalidade instantânea. No tempo da União Soviética a ideologia do comunismo sustentou que a obra do comunismo seria finalizada quando o comunismo tivesse triunfado em todos os lugares. Embora a Ocidente não se tenha acreditado nisso, a verdade é que há sempre alguém que acredita em amanhãs que cantam.

A máquina de Estado comunista mostrou que o poder, quando é impessoal, fica fora de controlo. A força necessária para opor-se tem de ser sempre maior, mas a vontade para tentar é sempre menor. Os marxistas de boa-fé, argumentam que a estrutura totalitária do governo comunista estalinista não tinha que ser uma consequência inevitável das concepções marxistas. No entanto, sob sua justificada vigilância, o compromisso, a Constituição e as instituições da sociedade civil foram firmemente degenerados ou abolidos. A forma resultante de governo, à qual faltam os dispositivos corretivos de liberdade de expressão, independência judicial e oposição parlamentar, está estribada em um curso que, ainda que irracional, não pode ser pacificamente alterado.

O problema poderia ser colocado assim: as formas de governo democráticas, fundadas na representação, na lei e nas instituições autónomas que medeiam o indivíduo e o Estado, são formas de governo de pessoas para pessoas. O Estado não como uma coisa, mas uma comunidade. Isto é verdadeiro não somente no sentido legal, mas em um sentido mais profundo, mais amplamente e mais discretamente através do Estado de direito. Como toda pessoa, o Estado é responsável perante outras pessoas: o sujeito individual, as corporações e outros Estados.

É também responsável perante a lei. Tem direitos contra o indivíduo e deveres em relação a ele; é tutor e companheiro da sociedade, o alvo de nossas piadas e o recipiente de nossa raiva. Ele estabelece conosco uma relação humana, e esta relação está sustentada e justificada pela lei, diante da qual ele se porta como uma pessoa como as outras, em pé de igualdade com seus sujeitos. Um tal Estado pode comprometer-se a negociar. Está disposto a reconhecer que ele deve respeitar as pessoas, não apenas como meios, mas também como fins em si mesmas. Ele tem de acomodar toda a oposição.
 A imensa realização humana representada por um tal Estado não é nem respeitada nem percebida pelo extremista. Curvado sobre o trabalho da destruição, ele vê por trás da máscara de toda a instituição a hedionda maquinaria do poder.

A ideologia como devoção, a despeito de tal devoção por objetivos - uma devoção que está em si mesma em desacordo com o espírito do direito e do governo, é extremamente radical. A esquerda devia pensar mais seriamente sobre a nova sociedade. Isto não a faz nem um pouco menos desejável ou necessária, nem no momento atual menos urgente. Não sabemos nada do futuro socialista, salvo que ele tem de ser renovado. Mas a nossa preocupação não se pode esgotar no caso "extremista" contra o presente, que nos leva a destruir o que não sabemos como substituir. 

Uma fé cega arrasta o radical de "luta" em "luta", em nome da "justiça social" em busca do puro, mas incognoscível, Reino da Utopia. Este salto para o Reino da Utopia é um salto do pensamento, que nunca pode ser espelhado na realidade. A "práxis revolucionária" confina-se, então, à obra da destruição, não tendo nem o poder nem o desejo de perceber, em termos concretos, o fim em busca do qual ela trabalha. Por uma inevitável transição, então, a "doutrina armada" do revolucionário, lançada em busca da liberdade ideal, produz um mundo de real escravidão, cujos acordos brutais são incongruentemente descritos na linguagem de pau: "igualdade". Proferidas sem um sorriso triste e sarcástico.

O que disse é óbvio para aqueles que não sucumbiram à tentação ideológica da esquerda. Mas as consequências não são sempre aceites. A "direita", que neste contexto significa aqueles que defendem menos Estado, mais iniciativa privada e instituições independentes das clientelas partidárias, não me cabe defender.

Este pressuposto passa por uma correção a priori da esquerda, com o reconhecimento dos pontos onde tem sido incompetente. Um formidável desafio para a paciência do eleitor. Ao engajar-me com a esquerda, não ignorei o seu caráter efémero no processo de transformação que remonta, pelo menos, até às primeiras leituras da República de Platão sentado nos bancos do Liceu. Termo que, afinal, foi inventado por Aristóteles.

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