quinta-feira, 30 de novembro de 2023

O Tratado de Sèvres e as sequelas do fim do Império Otomano que ainda se fazem sentir no século XXI



Após a Primeira Guerra Mundial, deu-se o desmembramento do Império Otomano no Tratado de Sèvres. Em junho de 1920, assim que os termos foram divulgados, na Índia ainda havia um vice-rei - lorde Chelmsford. E os soldados muçulmanos da Índia não lutaram para infligir punição em seu próprio califa, o sultão otomano. Muçulmanos e hindus, como um todo, perderam a fé na justiça e na honra britânicas. O Tratado de Sèvres logo se tornou letra morta, o único produto da Conferência de Paz de Paris a nunca ser ratificado nem implementado, não em função da indignação muçulmana diante da perda de Meca pelo califa Hussein, o rei hachemita do Hejaz, mas pela indignação turca habilmente mobilizada e liderada por Mustafá Kemal. 

Como a Conferência de Paz de Paris havia sancionado a criação de uma série de novos países nas regiões central e leste da Europa, nenhum dos quais era forte o suficiente para se defender, em um sentido estrutural, a Europa do pós-guerra dependia mais do que qualquer outra parte do mundo do cumprimento da visão de Wilson sobre uma Liga das Nações robusta, que proporcionasse segurança coletiva a seus membros. Desde o início, a França duvidou que a Liga pudesse cumprir essa promessa, mesmo para as principais potências, motivando Clemenceau a buscar garantias em uma aliança paralela que comprometesse Grã-Bretanha e Estados Unidos a vir em auxílio da França se a Alemanha atacasse novamente. 

A aliança defensiva anglo-franco-americana teria sido uma característica central do cenário internacional pós-guerra se não tivesse morrido em uma comissão no Senado dos Estados Unidos, antes mesmo de chegar a uma votação; Lloyd George, tendo condicionado astutamente o seu compromisso para com os franceses ao compromisso dos Estados Unidos, deixou a Grã-Bretanha sem obrigação bilateral de apoiar a França. Os britânicos tampouco estabeleceram qualquer compromisso com a Bélgica, que colocou suas esperanças em uma aliança com a França (pelo menos até 1936, quando regressou à sua tradicional neutralidade). 

Voltando para o leste, os franceses procuraram compensar o desaparecimento de seu aliado imperial russo montando um contrapeso no Leste Europeu a uma Alemanha revivida. A França concluiu acordos bilaterais com Polónia, Checoslováquia, Roménia e Jugoslávia, e também patrocinou a “Pequena Entente” que ligava as três últimas, mas (devido ao colapso do regime de reparações) não dispunha do capital para fortalecer esses países subdesenvolvidos como tinha feito com a Rússia antes de 1914. 

A chamada “Guerra Turca de Independência”, movimentada por Mustafá Kemal, registou o primeiro êxito em novembro de 1920, na derrota da República Democrática da Arménia, estabelecendo a fronteira da Turquia moderna no Cáucaso; o Exército Vermelho invadiu o que restava da Arménia no mês seguinte e, em 1922, ela se tornou uma República da União Soviética. O fim do conflito entre turcos e arménios permitiu a Kemal concentrar os seus exércitos contra os gregos a oeste nos Balcãs, onde, depois de quase dois anos de luta acirrada, eles retomaram Esmirna em setembro de 1922 – uma vitória que resultou em um armistício greco-turco e na fuga de Mehmed VI, o sultão testa de ferro, de Constantinopla. 

No Tratado de Lausanne (24 de julho de 1923), Grã-Bretanha, França e Itália se juntaram à Grécia no reconhecimento das fronteiras da República da Turquia e os turcos renunciaram a suas reivindicações a todo o território restante que outrora pertencera ao Império Otomano. O Bósforo e Dardanelos foram desmilitarizados sob comando de uma comissão da Liga das Nações, mas, finalmente, em 1936, retornaram à soberania turca. O evento mais dramático veio na troca de populações grega e turca, eliminando comunidades turcas centenárias na Trácia ocidental e nas ilhas do mar Egeu, e comunidades gregas na Ásia Menor que datavam da Antiguidade. A troca marcou a primeira aplicação ampla de um conceito que os Aliados vitoriosos não tinham cogitado na Conferência de Paz de Paris, mas que seria uma característica comum na Europa Central e do Leste no final da Segunda Guerra Mundial: dada a impossibilidade de definir fronteiras geográficas “segundo linhas de nacionalidade claramente reconhecíveis”, as fronteiras desejadas foram estabelecidas antes, e depois as pessoas se mudaram.

Assim, Mustafá Kemal, um homem produzido pela Primeira Guerra Mundial, merecia ser chamado de Atatürk (“pai dos turcos”), apelido que ele adotou formalmente como sobrenome em 1934, quatro anos antes de morrer. No final de sua presidência ditatorial, a República da Turquia já era saudada como exemplo de como um país moderno e secular poderia ser criado no Médio Oriente muçulmano, mas, até ao século XXI, manteve-se única nesse sentido. O legado de Atatürk teve seu lado desagradável, na negação pela Turquia, não apenas do genocídio arménio, mas também do caráter e da cultura nacionais distintos de seus cidadãos arménios sobreviventes; ironicamente, ele aplicou a mesma política aos curdos, cúmplices ávidos dos turcos na perseguição aos arménios durante a guerra, que também não tiveram escolha a não ser a assimilação no Estado nacional turco. Por fim, Atatürk implantou a sua visão revolucionária a um custo terrível em vidas humanas. Talvez 5 milhões de habitantes da Ásia Menor tenham morrido entre 1914 e 1922, como resultado da Primeira Guerra Mundial, do genocídio arménio, da guerra turca contra arménios e gregos, da troca de populações greco-turca e de doenças epidémicas em todo o período. O primeiro Censo de Atatürk, em 1927, registou uma população de menos de 14 milhões.

Em termos históricos mundiais, o fim do califado islâmico é uma das consequências mais dramáticas da Primeira Guerra Mundial fora da Europa. Depois de Mehmed VI abdicar como sultão, a nova Assembleia Nacional em Ancara aceitou o seu primo e herdeiro, Abdulmecid II, como califa, mas, em 1924, reagindo contra a agitação estrangeira (de maioria indiano-muçulmana) em nome de Abdulmecid, Atatürk declarou o califado abolido. Apesar de Hussein, xarife de Meca, ter declarado a independência religiosa e política dos povos árabes em relação ao sultão-califa em 1916, até a destituição de Abdulmecid II, a maioria dos muçulmanos sunitas do mundo continuava a reconhecer a liderança espiritual do califado otomano. Na verdade, eles o consideravam como sucessor legítimo das mais antigas linhagens de califas que remontam à morte do profeta Maomé, em 632. Hussein proclamou-se califa, logo que Atatürk depôs Abdulmecid, mas poucos muçulmanos reconheceram o título fora de seu próprio reino do Hejaz e dos domínios de seus filhos, Iraque e Transjordânia. 

Em qualquer caso, a sua reivindicação perdeu a validade no ano seguinte, 1925, quando Ibn Saud marchou sobre Meca, derrubou Hussein e estabeleceu a sua própria dinastia como guardião da cidade santa. No tumultuado Médio Oriente pós-Otomano, os filhos de Hussein se saíram um pouco melhor do que o pai. Em 1932, o reino de Faisal no Iraque se tornou o primeiro dos mandatos da Liga das Nações a alcançar a independência e, em 1946, o emirado da Transjordânia, de Abdullah, tornou-se o reino da Jordânia depois do fim do mandato britânico. A monarquia hachemita sobreviveu até 1958 no Iraque, e continua a sobreviver na Jordânia, no século XXI. 

Ao longo das mesmas décadas, nas periferias do Médio Oriente, outros homens, cujas carreiras foram forjadas durante a Primeira Guerra Mundial, reinaram por muito tempo no pós-guerra. A guerra estabeleceu Sayyid Idris como líder dos sanusis e emir da Cirenaica; ele passou a apoiar a Grã-Bretanha contra a Itália de Mussolini na Segunda Guerra, e depois reinou como rei da Líbia, sob o nome de Idris I, até o coronel Muammar al Kadafi o derrubar em 1969. Haile Selassie durou ainda mais. Governante de facto da Abissínia/Etiópia após a ascensão ao trono da imperatriz Zewditu durante a guerra, ele a sucedeu após sua morte em 1930 e, com exceção de um breve exílio exigido pela conquista de seu império por Mussolini (1935-1940), reinou até ser deposto, em 1974. Entretanto, dadas as divisões existentes no mundo muçulmano e no mundo árabe dentro dele, o califado islâmico continua vago no século XXI, apesar dos apelos periódicos por sua restauração (mais visivelmente por parte de Osama bin Laden na década de 1990).

A Primeira Guerra Mundial, é claro, também deu origem ao moderno conflito entre árabes e israelitas, nas contraditórias promessas feitas pela Grã-Bretanha aos árabes e ao movimento sionista sobre os destinos da Palestina no pós-guerra. Animados com a promessa da Declaração de Balfour, colonos judeus começaram a chegar à Palestina, assim que a paz tornou viável a imigração, com mais de 10 mil entrando no mandato apenas no período de 1919 e 1920. Já em maio de 1921, o afluxo de judeus gerou uma revolta de árabes em Jaffa, seu principal porto de entrada, gerando um ciclo de violência que só piorou com o passar dos anos. 

Havia 55 mil judeus na Palestina no final da Primeira Guerra Mundial; os britânicos permitiram que outros 106 mil imigrassem durante a década de 1920, seguidos por mais 257 mil nos anos 1930. Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial a população árabe na Palestina cresceu de 668 mil (1922) para 1 milhão (1937), mas a sua alta taxa de natalidade não conseguiu acompanhar o ritmo da imigração de judeus, e a duplicação da população total da Palestina em menos de duas décadas só aumentou a competição por terras aráveis e recursos hídricos. A questão da terra e da água tornou-se uma questão vital entre árabes e israelitas depois de 1945.

Muito antes da retirada britânica da Palestina levar os sionistas a proclamar o Estado de Israel em 1948, os nacionalistas árabes, frustrados com o sistema de mandato, viam o fenómeno da colonização judaica como um exercício de colonialismo europeu moderno, e esperavam o dia em que as circunstâncias lhes permitissem eliminá-lo.

O sistema que passou a reger as relações internacionais depois de 1919 tinha pouca semelhança com o seu predecessor de antes de 1914. A
 Liga das Nações tornou-se o ponto focal da diplomacia entre países, como fora a intenção de Wilson, mesmo após a rejeição do Tratado de Versalhes pelo Senado dos Estados Unidos. Isso deixou as outras potências vitoriosas, Perincipalmente a Inglaterra e a França, mais à vontade na tarefa de fazer a organização funcionar. depois de 1945 veio a Organização das Nações Unidas (ONU), tão ou mais forte que a Liga, quanto seus membros quisessem que fosse.

O Conselho da Liga das Nações se reuniu pela primeira vez em Paris, em janeiro de 1920, pouco antes de a Conferência de Paz ser oficialmente suspensa. A Assembleia, com 41 países representados (todas as ex-potências Aliadas e associadas, exceto os Estados Unidos, além de dez dos países neutros da Primeira Guerra), reuniu-se para a sua primeira sessão em novembro de 1920, em Genebra, sede permanente da organização. Contando as colónias e os mandatos dos Estados-membros, os únicos países do mundo a jamais pertencer à Liga das Nações foram Estados Unidos, Arábia Saudita, Islândia e os Estados himalaios do Nepal e do Butão. 

O Conselho de Segurança da ONU após a Segunda Guerra Mundial, tinha como cinco membros permanentes as principais potências Aliadas recentemente vitoriosas, complementada por membros não permanentes com mandatos fixos. O secretariado da Liga servia como burocracia permanente da organização, que incluía uma série de entidades de importância duradoura. O Tribunal Permanente de Justiça Internacional, como seu sucessor, o Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas, tinha sede em Haia, onde examinou 66 casos e emitiu 27 pareceres entre 1923 e 1940. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobreviveu para passar aos auspícios da ONU depois da Segunda Guerra, assim como a Organização de Saúde da Liga, que ressurgiu depois de 1945 como Organização Mundial da Saúde. A Comissão Internacional de Cooperação Intelectual da Liga foi precursora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). 

Outras comissões da Liga tratavam de desarmamento, refugiados, administração dos mandatos e escravidão, no último caso, definida de forma ampla para incluir a prostituição forçada e o tráfico de seres humanos de todos os tipos. O Comitê Central Permanente sobre o Ópio serviu como precursor de iniciativas do final do século XX contra o tráfico internacional de drogas, e o Comité para o Estudo da Situação Jurídica da Mulher da Liga prenunciava o trabalho da ONU pela promoção internacional da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres. Para lidar com a repatriação de prisioneiros de guerra ainda na Rússia em 1920, bem como o grande número de refugiados gerado pelas mudanças territoriais na Europa do Leste e na Ásia Menor, a Liga criou o Passaporte Nansen para apátridas, assim batizado em função do explorador polar norueguês Fridtjof Nansen, chefe da comissão sobre os refugiados, cujos esforços proporcionaram o marco jurídico internacional para as iniciativas da ONU em nome de “pessoas desalojadas” após a Segunda Guerra Mundial.

O maior sucesso da Liga em matéria de desarmamento, o Protocolo de Genebra de 1925, tornou ilegal o uso de armas químicas e biológicas (mas não seu desenvolvimento nem sua posse). Embora todos os beligerantes tenham mantido grandes estoques durante a Segunda Guerra, o gás venenoso foi usado muito raramente como arma em campo de batalha depois de 1918. O Protocolo de Genebra (que permanece em vigor no século XXI, com mais de 130 países como signatários) teve como precursor o Tratado de Washington sobre o Uso de Submarinos e Gases em Tempo de Guerra, assinado em 1922 pelas cinco potências que participam da Conferência Naval de Washington: Grã-Bretanha, Estados Unidos, Japão, França e Itália. As mesmas cinco potências posteriormente assinaram o Tratado Naval de Washington, concordando em limitar seu número de navios capitais (couraçados e cruzadores de batalha), bem como porta-aviões, ficando estabelecido que Grã-Bretanha e Estados Unidos teriam a mesma tonelagem, seguidos por Japão, que teria 60% de tonelagem do total dos dois primeiros, e França e Itália, com 35%. 

Talvez a falha mais trágica do sistema internacional nos anos imediatamente posteriores à Primeira Guerra tenha estado na área de crimes de guerra. Em janeiro de 1920, o governo holandês, como esperado, recusou o pedido para entregar Guilherme II aos Aliados para julgamento; dois meses depois, a rainha Guilhermina declarou o ex-imperador “internado” e o assunto morreu. Em fevereiro de 1920, um acordo permitiu que os alemães realizassem seus próprios julgamentos de pessoas que os Aliados haviam identificado como criminosos de guerra; observadores estrangeiros participaram do processo, realizado em Leipzig a partir de maio de 1921, mas os poucos homens condenados não incluíam figuras de destaque durante a guerra, todas as sentenças foram lenientes, e a maioria dos países logo retirou seus observadores para protestar contra a farsa. 

A França acabou julgando e condenado 1.200 criminosos de guerra alemães à revelia, a Bélgica, 80, em processos que permaneceram puramente simbólicos, já que nenhum dos condenados jamais foi tolo o suficiente para voltar a pôr o pé nesses países. Assim, a Primeira Guerra Mundial nada fez para promover a causa do direito internacional em matéria de crimes contra a humanidade relacionados à guerra, deixando que os julgamentos de crimes de guerra em Nuremberg e Tóquio, depois de 1945, estabelecessem os precedentes legais para a ação futura.

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