quarta-feira, 15 de novembro de 2023

O que diria Hannah Arendt hoje em Jerusalém




Hannah Arendt ingressa na Universidade de Berlim em 1924, numa época de grande efervescência intelectual na República de Weimar. Lá foi aluna de Heidegger e Jaspers, grandes influências em sua vida e obra. Forçada à emigração quando Hitler ascende ao poder, primeiro vai para França, e depois para os Estados Unidos, entrando na New School for Social Research, em Nova York, como docente. 
Foi presa pela polícia alemã em 1933 por suas atividades ilegais no envolvimento com o movimento sionista, e investigações sobre o antissemitismo na sociedade alemã. Refugiada sem documentos, no Campo de Gurs em França, daí fugiu para Lisboa a fim de obter visto de ingresso nos Estados Unidos da América. Morre em 1975 de um ataque cardíaco, quando jantava com amigos. Os seus convivas para o jantar eram o seu velho amigo, o historiador Salo W. Baron, e sua mulher Jeanette. Como se lê no depoimento de Jeanette Baron, o tema do jantar foi a situação de Israel e o projeto de publicação, a ser patrocinado pela Jewish Social Studies, de uma coletânea de ensaios do historiador judeu Phillip Friedmann, falecido em 1960 e que Hannah Arendt considerava “o pai da historiografia do holocausto”.

A Heidegger Hannah Arendt deve a sua visão da relação entre o ser e a temporalidade. E também é tributária da influência de Karl Jaspers. Só se dispôs efetivamente a fazer uma crítica profunda a Heidegger naquilo que veio a ser 'The life of the mind', mais precisamente em 1974, quando reviu os textos de suas “Gifford lectures” e estava certa de que Heidegger, aos 85 anos, velho e próximo da morte, não mais a leria. O início de seu contacto com Karl Jaspers, também o deve a Heidegger. Tal encontro só aconteceu depois de ter seguido os cursos de Husserl em Freiburg. Em Jaspers, Hannah Arendt encontrou uma personalidade de excepcional estatura moral, em plena maturidade intelectual e que não foi apenas o diretor de sua tese de doutoramento sobre Santo Agostinho, defendida e apresentada em Heidelberg. Foi também, e sobretudo, a pessoa que, através de sua atitude exemplar nos tempos obscuros dos desastres morais do nazismo, permitiu a Hannah Arendt, posteriormente, reconciliar-se com aquela dimensão da tradição germânica que era legitimamente sua. Daí o papel que Hannah Arendt sempre lhe atribuiu, com filial reverência, gratidão e amizade, de esclarecedor das coisas e de orientador em matéria de discussão racional. Colaboraram intelectualmente de maneira intensa e permanente, depois da Segunda Guerra Mundial, e Hannah Arendt sentiu a morte de seu mestre em 1969, como Jaspers também sentira a de Max Weber em 1920. 

A efervescência e a criatividade intelectual da cultura da República de Weimar é algo que não pode ser ignorado na obra de 
Hannah Arendt. Ela deve à universidade alemã do tempo de estudante o seu método: uma espécie de fenomenologia, que assume a palavra como ponto de partida, ao detectar na historicidade dos seus significados o reportório das percepções passadas. Essa hermenêutica não se perde, no entanto, em abstrações conceptuais, por força do seu gosto pelo concreto. Ela se vê complementada pela análise dos factos. Estes, na metodologia de Hannah Arendt, iluminam o passado e esclarecem o presente sem a camisa-de-força de rígidos determinismos. São estudados como cristalizações percebidas como uma organização de relações inteligíveis, próprias a um conjunto histórico e a uma sucessão de acontecimentos. É o caso, por exemplo, do antissemitismo e do imperialismo totalitário.

Com efeito, a tradição da vida contemplativa, na qual Hannah Arendt se formou, é a do distanciamento das coisas como condição de reflexão. Esse distanciamento, no entanto, afasta o filósofo da experiência do mundo e tende a nele provocar uma visão de cima e de fora da política, que distorce a realidade. Hannah Arendt não incidiu nesse equívoco porque se viu confrontada com o mundo por força da questão judaica — tema sobre o qual começou a pensar, efetivamente, desde 1926, quando conheceu Kurt Blumenfeld numa conferência sobre sionismo em Heidelberg, promovida pelo seu amigo e colega Hans Jonas.

Kurt Blumenfeld (1884-1963) foi uma eminente figura do sionismo alemão, cuja análise sobre as dimensões psicológicas e sociológicas da resposta judaica ao antissemitismo marcaram Hannah Arendt e aguçaram o seu sentido de identidade. Converteu-se, a partir desse encontro em 1926, num grande amigo e interlocutor, a quem Hannah Arendt muito deve em matéria de análise política. Esse débito foi sempre reconhecido, inclusive publicamente, quando ela dedicou à sua memória a edição francesa, que é de 1973, de seu livro Sobre o antissemitismo que constitui a primeira parte de As Origens do Totalitarismo.

Hannah Arendt nunca se sentiu talhada, por temperamento e inclinação, para a vida pública. Experimentou, no entanto, a ação graças à sua militância na política judaica, sobre a qual largamente refletiu. Testemunham sua militância as atividades que exerceu na França, na década de 1930, como uma das responsáveis pela imigração de jovens judeus para a Palestina (Youth Aliyah) e nos Estados Unidos, na década de 1940 e início dos anos 1950, nas suas funções como diretora da Conference on Jewish Relations e diretora executiva da Jewish Cultural Reconstruction, além de suas responsabilidades intelectuais na Schocken Books, importante editora nova-iorquina, especializada em temas judaicos. Testemunham a sua reflexão não apenas as discussões sobre a questão judaica e o antissemitismo que permeiam As Origens do Totalitarismo, ou o polémico livro sobre o processo Eichmann e a banalidade burocrática do mal no regime nazi, como também a biografia de Rahel Varnhagen e muitos artigos esparsos sobre política e identidade judaicas, hoje em parte recolhidos no livro postumamente editado em 1978 por Ron A. Feldmann intitulado The Jew as Pariah.

O holocausto e o genocídio dos judeus pelos nazis determinaram a visão de vocação universal de Hannah Arendt sobre o mal e a sua pesquisa do vínculo entre o bom homem e o bom cidadão. Daí a pergunta que informa a sua reflexão: como construir uma polis em que o homem — qualquer homem — não seja visto como supérfluo? A liberdade e a justiça, dizia Hannah Arendt no seu documento de 1942, são os princípios da política. Esta, como condição de dignidade, exige a pluralidade e requer a rejeição da ação vista apenas como um processo de meios e fins. Com efeito, o entendimento da ação como um jogo de meios e fins estrutura uma relação manipulativa, que aguça interações do tipo dominantes/dominados e provoca nas lideranças, mesmo nas melhores, uma perda do senso comum. O senso comum só pode subsistir numa partilha de valores compartilhados em liberdade e pensamento.

Hannah Arendt, como ela mesma disse numa carta de 1963 a Gershom Scholem, a propósito da polémica em torno de seu livro sobre Eichmann, não foi uma intelectual que teve a sua origem na esquerda alemã. Teve, no entanto, acesso privilegiado às experiências e às pessoas da esquerda alemã. O primeiro marido de Hannah Arendt foi Günther Anders, com quem casou em 1929 e de quem se separou em 1936. Günther Anders — um intelectual de talento que se doutorou com Husserl e cujos projetos de carreira universitária, em Frankfurt, esbarraram na má vontade de Adorno — acabou se convertendo em jornalista incumbido da secção cultural do Börsen-Courrier, de Berlim, graças ao apoio inicial de Brecht. 
É depois de 1936 o início do romance de Hannah Arendt com Heinrich Blücher, que veio a ser o seu segundo marido e de quem enviuvou em 1970.

O círculo de amigos de Günther Anders em Berlim era integrado por artistas, jornalistas e intelectuais que gravitavam em torno do Partido Comunista. Esse círculo complementava os contactos de Hannah Arendt, que na época frequentava os círculos sionistas onde era conhecida pela pouco sionista alcunha de Palas Atenas. Datam de 1931 as primeiras leituras de Hannah Arendt de Marx e Trotski e o seu interesse pela cena contemporânea. Hannah Arendt havia sido apresentada a Brecht e a Arnold Zweig por Anders. E graças à amizade com Raymond Aron, frequentou os célebres seminários de Alexandre Kojève sobre Hegel na École de Hautes Études, onde conheceram Sartre, de quem nunca foram próximos, e Alexandre Koyré, que posteriormente se tornou grande amigo de Hannah Arendt. Anders era primo distante de Walter Benjamin e o casal intensificou relações quando já tinham saído da Alemanha e viviam todos em Paris. 

Em 1936 Hannah Arendt começou a participar de um grupo de estudos de pessoas formadas na escola marxista da teoria e da práxis. Esse grupo, que geralmente se reunia no apartamento de Walter Benjamin, 10 Rue Dombasle, incluía, além do próprio Benjamin e ocasionalmente seus colegas, membros do Institut für Sozialforschung, de Frankfurt: Erich Cohn-Bendit, advogado e pai do famoso Daniel Cohn-Bendit da revolução estudantil francesa de maio de 1968; o psicanalista Fritz Fränkel; o pintor Karl Hendenreich; Chanan Kienbort, o único judeu da Europa oriental entre esses berlinenses, e Heinrich Blücher, que ao contrário de Anders, não era escritor. Vinha de família proletária, tinha sido spartaquista e membro do Partido Comunista alemão e era, naquela época, um refugiado político sem trabalho e documentos. Blücher — um autodidata de forte personalidade, sedutor nas suas relações com as mulheres, grande orador e conversador e que nos Estados Unidos virou professor do Bard College — marcou decisivamente a vida e a obra de Hannah Arendt. Intelectualmente, ela deve ao pensamento político e à observação histórica de Heinrich Blücher a sua visão cosmopolita, pois, antes do seu encontro com ele, a sua preocupação política concentrava-se na questão judaica. Essa afirmação, que é da própria Hannah Arendt numa carta a Jaspers, dez anos depois de seu encontro com Blücher,

Hannah Arendt, em 27 de junho de 1968, escreveu uma carta de apoio a Daniel Cohn-Bendit, dizendo-lhe que seu pai, um companheiro e amigo do casal, Erich Cohn-Bendit, teria visto com satisfação as atividades do filho. E oferece ao jovem revolucionário, caso necessitasse, auxílio e dinheiro. Uma revolução não é uma omelete para a qual se quebram ovos impunemente. Daí a brilhante crítica de Arendt, no seu estudo sobre a violência, a Marx, Sorel e Sartre, e a ênfase que dá à efetividade da ação não violenta e ao poder visto não como força, mas sim como um recurso que deriva da criatividade da ação conjunta de homens livres.

O primeiro curso de Hannah Arendt como professora na New School for Social Research, de Nova York, em 1967, intitulava-se “Experiências políticas do século XX”. 
Durante dezoito anos — de 1933, data da fuga da Alemanha nazista, a 1951, ocasião em que se converteu em cidadã americana — Hannah Arendt foi, juridicamente, uma apátrida. A experiência da privação da cidadania — que significa a perda do direito a um espaço público em virtude da inexistência do vínculo jurídico com um Estado — marcou muito o modo de ser de Hannah Arendt. Quando as pessoas não pertencem a uma comunidade política, não têm mais direitos humanos. Na inexistência da tutela jurídica organizada, são os acidentes da simpatia, a força da amizade ou a graça do amor os únicos elementos que oferecem a um refugiado a base precária que confirma a sua dignidade humana. Hannah Arendt tinha a vocação da amizade, que a experiência de refugiada, acima mencionada, aguçou e reforçou. O casal Blüncher organizou e manteve, em torno de si, uma tribo de amigos. Estes incluíam, na condição de predecessores, a amiga de adolescência de Hannah, Anna Mendelsohn Weil — a quem a biografia de Rahel Varnhagen é dedicada — e o companheiro de juventude em Berlim de Heinrich, o compositor e poeta Robert Gilbert; abrangia os amigos da Europa, transplantados para os Estados Unidos, como o filósofo Hans Jonas e o eminente especialista de relações internacionais Hans Morgenthau; e incorporava também os que, nos Estados Unidos, foram se agregando, por força das afinidades, filosóficas, literárias ou políticas, como Randall Jarrell, Alfred Kazin, Dwight MacDonald, Philip Rahv, Robert Lowell, Harold Rosenberg, J. Glenn Gray e Mary McCarthy. 

Os manuscritos de Walter Benjamin, que haviam sido confiados a Heinrich Blücheros, foram entregues a Adorno, em Nova York, por vontade de Benjamim. A demora de Adorno em publicar os manuscritos de Benjamin — que só foram reunidos em livro em 1955 — e de quem Hannah Arendt não gostava, desde o tempo em que dificultou a carreira universitária de seu primeiro marido, Günther Anders, em Frankfurt, irritou-a profundamente. Ela também se ressentia do facto de que, em vida de Benjamin, os frankfurtianos o consideravam um mau marxista, não suficientemente dialético, tendo Benjamin revisto alguns de seus textos para apaziguá-los. É esse o contexto, que não discutiu publicamente, a partir do qual, com admiração combinada a lealdade, ela editou, em 1968, um volume em inglês de textos de Benjamin — Illuminations — para o qual escreveu um fundamental e inspirado estudo introdutório, também incluído neste livro. Em 1975, ano de sua morte, em plena redação de The life of the mind, Hannah Arendt estava trabalhando na edição, em inglês, de um segundo volume de textos de Benjamin — Reflections.

É ainda a amizade, sob o signo da lealdade, que fez Hannah Arendt preparar e apresentar, em 1955, com importante estudo introdutório — igualmente presente neste livro —, a edição em alemão, publicada na Suíça, dos ensaios do romancista e pensador austríaco Hermann Broch. Hannah Arendt conheceu Broch em Nova York, em 1946, e ficaram amigos próximos até sua morte, em 1951. Hannah Arendt o admirava sobretudo como romancista, considerando-o uma espécie de elo entre Proust e Kafka. Foi, sem dúvida, no mesmo espírito de lealdade e amizade que Mary McCarthy editou os manuscritos de Hannah Arendt, preparando a edição póstuma do seu testamento filosófico: The life of the mind. Enquanto modo de ser, Hannah Arendt sempre se sentiu constrangida em ser tida como uma mulher excepcional. A posição de exceção lembrava-a da situação de alguns judeus na sociedade europeia do século XX, que ela estudou em 'As Origens do Totalitarismo'.

Hannah Arendt tinha, no campo dos amores, a abertura de quem viveu em Berlim na época da República de Weimar. 
Sempre discreta nesses assuntos, revelou, privadamente, uma simpatia e uma boa vontade não convencional para com a vida e os amores mais complexos do seu círculo de amigos e até mesmo, embora com algumas nuvens, do seu próprio marido. Para Hannah Arendt a velhice é o tempo da meditação. Não é acidental, por isso mesmo, que seu último livro tivesse sido uma volta à vida contemplativa e um ajuste com a tradição filosófica da qual se originou. Hannah Arendt sempre viu o reconhecimento público como uma tentação que dificulta o juízo. Não era, evidentemente, uma pessoa fácil, mas foi sem dúvida uma personalidade fascinante. Sempre teve a capacidade de maravilhar-se diante do espetáculo do mundo.

Sem comentários:

Enviar um comentário