sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Leis da apostasia em alguns países islâmicos


Nem todos os países são amigáveis para aquelas pessoas que deixaram de acreditar na religião que lhes foi transmitida à nascença e desejam sair. O mapa anexo mostra os países onde de alguma maneira as pessoas são punidas: nos países pintados a vermelho, um apóstata é punido com a morte; pintados a castanho, sofre pena de prisão e perda da custódia dos filhos e do matrimónio; pintados a laranja, comete crime quem tentar converter um muçulmano a outra religião, com pena agravada se for para ateísmo.

A Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos considera a mudança de religião um direito humano legalmente protegido pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. A Comissão observa que a liberdade de "ter ou adotar" uma religião ou crença implica necessariamente na liberdade de escolher uma religião ou crença, incluindo o direito de substituir a sua religião ou crença atual por outra ou para adotar pontos de vista ateístas (Atos de coação que prejudique o direito de ter ou adotar uma religião ou crença, incluindo o uso de ameaça de força física ou sanções penais para obrigar crentes ou não-crentes a aderir a determinadas crenças religiosas e congregações, ou a abjurar de sua religião ou crença, ou se converter).

Etimologicamente ‘apostasia’, do grego “estar longe” tem o sentido de um afastamento definitivo e deliberado de alguma coisa, uma renúncia de sua anterior fé ou doutrinação. Ao contrário da crença popular, não se refere a um mero desvio ou um afastamento em relação à sua fé e à prática religiosa. Pode manifestar-se abertamente ou de modo oculto. Dependendo de cada religião, um apóstata, afastado do grupo religioso no qual era membro, pode ser vítima de preconceito, intolerância, difamação e calúnia por parte dos demais membros ativos. Os casos daqueles países islâmicos são casos extremos, como por exemplo a Arábia Saudita.

O direito canónico católico diferencia a apostasia da heresia e do cisma. Enquanto a heresia diz respeito a crenças apócrifas, e o cisma a uma dissidência quanto à autoridade, a apostasia é o afastamento definitivo, muitas vezes com estrondo e grande mal-estar. Mas estes conceitos deixaram de ter interesse para o Papa a partir do Concílio Vaticano II, na medida em que passou a reconhecer a liberdade das pessoas de escolherem uma ou nenhuma religião, de acreditar ou não acreditar.

Ainda assim, em 2010, a Associação Ateísta Portuguesa, promoveu uma campanha de apostasia coincidindo com a vinda de bento XVI a Portugal. Alegava que havia ainda algumas pessoas batizadas que não se sentiam confortáveis com a conotação católica. Assim, fizeram circular uma minuta que os candidatos a apostasia podiam preencher e enviar para a respetiva paróquia, onde supostamente o seu nome seria riscado dos livros de batismo.

Há muitas pessoas que não vão tão longe, dar o passo da apostasia, dizendo apenas que são católicos embora não praticantes. Mas Frei Bento Domingues diz que já não faz sentido distinguir entre católicos praticantes e católicos não-praticantes. Não praticantes de quê? De ir à missa? De rezar e fazer o sinal da cruz? Ou apenas de receber os sacramentos?

Diz-se que hoje vigora um paradigma pós-secular. As pessoas até podem acreditar num ser divino que está para além de nós e nos ultrapassa. Todavia, não praticam uma religião. Pós-secular é mais um jargão académico para significar que já não faz sentido a dicotomia religioso/secular. Isso foi no tempo do processo de secularização das sociedades ocidentais e que ainda não era reconhecida a categoria de “crente sem religião”. Num inquérito realizado no fim do século XX, em Portugal 80% das pessoas eram católicas porque a hipótese “crente sem religião não existia. E assim a melhor acomodação era ser católico pela tradição do país.

Hoje já há em Portugal uma larga camada de população que fazem uma socialização católica primária e depois se distanciam sem mais nenhum questionamento. Predomina a indiferença e falta de fé. Por outro lado, surgiram novas formas esotéricas de vivência espiritual que ainda não recebera o devido reconhecimento público para serem faladas abertamente.



Cristóvão Ferreira (c. 1580-1650), o jesuíta português que inspirou o filme “Silêncio” de Martin Scorsese, 2016, cometeu apostasia após ser torturado nos expurgos anticristãos do Japão, chocou os jovens jesuítas ao ponto de não acreditaram que ele, o último chefe da Companhia de Jesus no Japão, não tenha querido morrer como um mártire, à semelhança de muitos outros missionários. Nascido por volta de 1580, em Zibreira, Torres Vedras, foi enviado para a Ásia, onde foi missionário no Japão de 1609 a 1633, tornando-se o chefe dos jesuítas sob a opressão do shogunato Tokugawa. Em 1633, Cristóvão Ferreira foi capturado e cometeu apostasia depois de ser torturado por cinco horas. Tornou-se o mais famoso dos "padres caídos", mudando seu nome para Sawano Chuan. Em 1636 escreveu um livro intitulado A Deceção Revelada, e participou em julgamentos governamentais de outros jesuítas capturados. Morreu em Nagasaki em 1650.

Em A Deceção Revelada, ele afirmou que Deus não criou o mundo e que além disso o mundo nunca tinha sido criado. Nem o inferno, o paraíso ou a predestinação. O cristianismo foi uma invenção. Pagamento de missas e indulgências, excomunhão, leis dietéticas, a virgindade de Maria, eram tudo disparate. A Ressurreição de Jesus foi um conto desprovido de razão, ridículo, escandaloso, uma brincadeira; sacramentos e confissões não tinham sentido; a Eucaristia uma metáfora, o Juízo Final uma ilusão inacreditável.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Ler Heródoto e ver pintura de Gérard David em Bruges. Sisamnes – o juiz esfolado vivo às ordens de Cambises II


Segundo Heródoto, Sisamnes era um juiz real, corrupto, da época do reinado de Cambises II da Pérsia. Ele aceitou um suborno num julgamento e pronunciou uma sentença injusta. Como resultado, Cambises ordenou que fosse preso e a seguir que fosse esfolado vivo. A pele foi usada para estofar o assento da cadeira onde Sisamnes se sentava para proferir as sentenças, cadeira onde o filho teve de se sentar, substituindo-o no seu lugar. Assim, Ótanes levaria em conta a origem da pele sempre que tivesse de deliberar e dar as suas sentenças.

Sisamnes foi o tema destas duas pinturas de Gérard David – O Julgamento de Cambises e A Pele de Sisamnes, ambos de 1498. Juntos, formam o díptico de Cambises. É uma pintura a óleo sobre carvalho, que se encontra em Bruges, no Museu Groeninge. Serviu de referência aos magistrados e funcionários da câmara para os encorajar a serem honestos. Uma apologia pública à detenção do imperador Habsburgo, Maximiliano I, em Bruges, 1488. Na zona superior direita da cena do esfolamento, pode observar-se o filho de Sisamnes e a cadeira, agora envolta com a pele esfolada.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Húbris


Hoje já não é possível a classe política só ter contas a prestar aos seus eleitores como no tempo em que nem os juízes nem os jornalistas exerciam sobre ela qualquer vigilância ameaçadora. Por savoir-vivre ou por educação, a corrupção não era o objetivo principal do meio político. Os casos de enriquecimento ilícito eram raros.

Aristóteles definiu húbris como uma humilhação para a vítima, não por causa de qualquer coisa que tenha acontecido ou que ela tenha feito ou pudesse fazer contra si, mas meramente por desprezo seu em relação a ela. Húbris não é acerto de contas, isso é vingança. Húbris é arrogância, indiferença, cinismo, devassidão, libertinagem.

Fosse por causa e efeito, ou fosse lá porque fosse, a santa aliança entre juízes e jornalistas é coetânea dos grandes casos de corrupção na política. Domesticados lado a lado durante décadas, insurgiram-se em conjunto. Os membros dos sindicatos da magistratura e as novas gerações de jornalistas tornaram-se quase permutáveis. Juízes de espírito missionário e jornalistas impregnados de profissionalismo à americana estão convencidos de que constituem, por si sós, o contrapoder. O juiz de instrução e o jornalista de investigação são, em conjunto, o eixo deste sistema. O primeiro, quando é o procedimento judiciário a marcar o ritmo e este utiliza a imprensa como caixa de ressonância; o segundo quando o inquérito tem início no terreno jornalístico e a justiça se contenta em seguir as suas revelações. Isso permitiu que o tribunal da opinião pronunciasse o seu veredicto: “condenado!” Quem tem a última palavra é a opinião pública.

Apanhados no turbilhão inesperado da glória, havia que alimentar o moinho da comunicação social, fornecendo-lhe mais, e sempre cada vez mais grão para moer. Sempre mais casos, sempre mais inquéritos com interesse para o grande público, sempre mais processos de prestígio, sempre mais prisões preventivas iconoclastas, sempre mais surpresas.

O terceiro ato da húbris chegou durante as manhãs e tardes à praça das TVs generalistas; e à noite aos areópagos futebolísticos das TVs por cabo. A primeiras com a rubrica criminal, os casos de polícia e a loucura judiciária empacotada no comentário dos especialistas. As segundas com os comentários obscenos e obscuros acerca do sexo dos anjos fora das quatro linhas. É a escalada mediática, em termos de “tele-realidade”, desde que as câmaras entrem, de um lado os casos e os processos transformados em folhetins de sucesso para satisfazer o prazer na crónica feminina. E do outro, a violência das grandes emoções coletivas nos estádios para gáudio do macho guerreiro.

Pela imprensa tabloide e amplificada pelas redes socias, a sacrossanta proteção da vida provada foi deitada às urtigas. E de caminho e por arrasto a própria democracia. É a obsessão pela transparência levada ao extremo pelos devotos da pureza movidos pelos piores instintos da espécie humana.

A relação pendular entre as civilizações chinesa e europeia


          O meu raciocínio com a expressão “oscilação {China/Europa – Europa/China}” baseia-se no seguinte: do lado do que se convencionou na Europa chamar Oriente, portanto na Ásia, aconteceu emergir apenas uma nação forte. É inevitável quando assim acontece: uma nação forte contra nações fracas. Na Europa aconteceu o contrário, a oposição entre várias nações fortes. A Ásia estagnou na escravidão e a Europa emancipou-se na libertação. O que faltou na Ásia não foi o comércio, nem mesmo a ciência. O que faltou foi a criação de algumas instituições que deu voz à sociedade civil. No entanto, se no ano de 1420 tivéssemos ido à Inglaterra e viajado rio Tamisa acima, e depois fôssemos à China e viajado pelo rio Iansequião, teríamos ficado espantados com o contraste.
          Nenhuma civilização dura para sempre. Adam Smith, apesar de ter escrito que a China parecia estar desde há muito parada, ainda assim considerava a China um dos países mais ricos do mundo. A Cidade Proibida (Gugong) havia sido construída entre 1406 e 1420 para a qual Yongle, o imperador da Dinastia Ming, havia recrutado um milhão de trabalhadores para a construção de quase mil edifícios decorados de modo a evidenciar o poderio da Dinastia Ming. E, todavia, menos de um século depois o declínio era já visível enquanto os pequenos e pobres países da Europa, até aí devastados pelos conflitos, se erguiam para dominar o Oriente sucumbido.
          Porque é que em 1500, digamos assim, a China soçobrou e a Europa progrediu? Para Adam Smith foi a China não ter beneficiado das vantagens das instituições; e ao mesmo tempo se ter fechado ao exterior. Com isso perdeu o comércio externo, primeiro para as mãos dos árabes, e depois para as mãos dos europeus.
          O Iansequião fazia parte de um vasto complexo fluvial que ligava Nanjing a Beijing, a mais de 750 quilómetros para norte, e Hangzhou a sul. No coração deste sistema de comunicação localizava-se o Grande Canal, substancialmente restaurado ao mesmo tempo que se construía a Cidade Proibida em Beijing e se desviava o rio Amarelo para que o canal se estendesse por mais de 1500 quilómetros. A partir daí o canal passou a ser navegado por barcaças carregadas de cereais, estimando-se doze mil por ano. Nanjing era provavelmente a maior cidade do mundo em 1420, com uma população estimada em um milhão de habitantes, um próspero centro da indústria da seda e do algodão, bem como do conhecimento, com uma biblioteca de mais de onze mil volumes. Ainda assim, Yongle não estava satisfeito com Nanjing. Foi quando resolveu construir uma capital mais espetacular a norte: Beijing, que para nós ocidentais é ainda a atual Pequim. Durante todo o século XV, a China, ainda podia reclamar, sem contestação, o estatuto de civilização mais avançada do mundo. Mas depois, entre os séculos XVI e XX tal reivindicação passou a ser reclamada com legitimidade por parte dos europeus. Mas, e agora, passadas já quase duas décadas do século XXI, o que está de novo a acontecer? Dão-se alvíssaras aos novos profetas apocalípticos.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Liberdade para exprimir e escolher

A democracia quando foi inventada foi mais a pensar na possibilidade de evitar o pior dos mundos do que proporcionar o melhor dos mundos. Isto queria dizer que sem o processo de eleições não seria possível apear o governante que se tornou indesejável.

Para isso era preciso outra condição: a liberdade, tanto de expressão como de escolha. Quanto à liberdade de expressão convém não cair no exagero do “politicamente correto”, que restringe a liberdade de toda e qualquer expressão que possa ofender alguém. Isto acaba em ditadura quando se começa a especificar, porque há sempre alguém que se vai sentir ofendido com uma determinada expressão. Em teoria, e sem falar em casos específicos, todos são verbalmente a favor da liberdade de expressão. Mas depois, na prática, quando se incorpora um qualquer estado de espírito “politicamente correto”, acaba-se por se limitar até à exaustão a liberdade de expressão. Se é politicamente incorreto dizer em público certas coisas que alguém possa não gostar de ouvir, então a ‘liberdade de expressão’ não passará de mero palavreado.

Há, contudo, argumentos para uma exceção, o do tratamento especial quando se trata de religião. As pessoas ainda continuam a matar-se umas às outras por causa dela. O que é seguro dizer-se, por exemplo em Filadélfia pode ser dinamite no Punjabi. Durante a maior parte da história humana, as pessoas sentiram uma tensão entre a religião e a liberdade de expressão, e a maioria da humanidade ainda a sente. Por exemplo, a Irlanda reintroduziu em 2009 um delito de libelo blasfemo. E no Paquistão, a Secção 295C do Código Penal diz agora que “Quem por palavras faladas ou escritas, ou por representação visível ou por qualquer imputação, sugestão, ou insinuação, direta ou indiretamente, conspurcar o sagrado nome do profeta Maomé (que a paz esteja com ele) será punido com a morte, ou com a prisão perpétua, e também ficará sujeito a multa”. E além disso vemos crentes fanáticos tomarem a lei nas suas próprias mãos, cujo veto se estende através das fronteiras.

Pelo que acabei de descrever até parece que vivemos no fim dos tempos. Mas não é nada a que não estejamos habituados. Por exemplo, com a queda do Muro, a que se seguiu a desintegração dos regimes comunistas, que ruíram como um castelo de cartas, para muitos foi a concretização de um sonho de uma forma milagrosa, porque ainda poucos meses antes ninguém ousaria prever uma coisa dessas. Porém, não demorou muito tempo o regresso ao poder dos ex-comunistas através de eleições livres e democráticas. A nobre luta pela liberdade e pela justiça não levara a mais do que um prato de lentilhas. O povo queria comer o bolo e ao mesmo tempo ficar com ele. Queriam a liberdade de viver as suas próprias vidas em segurança, mas sem reivindicar o capitalismo. Aquilo a que aspiravam poderia receber o nome de “socialismo de rosto humano”. Na Hungria as manifestações no domingo chegaram ao número mais alto de participação, com 15 mil pessoas, sob um blackout dos media a unirem uma oposição muito fragmentada, da esquerda à direita nacionalista. “É uma massa significativa, no sentido de que parece ser uma oposição comprometida contra o Governo”, disse ao New York Times o analista Peter Kreko, do centro de estudos Political Capital. No domingo, uma parte dos manifestantes foi até à sede da empresa de rádio e televisão estatal, já nos arredores da cidade, gritando: “fábrica de mentiras”. Os media estatais são o símbolo do apoio a Orbán, enquanto os media privados estão nas mãos de aliados do primeiro-ministro. A emissora ignorou a presença dos deputados e a segurança expulsou mesmo dois dos deputados independentes, Akos Hadhazy e Bernadett Szél. As imagens de Hadhazy a ser agarrado por seguranças por mãos e pés e arrastado com brutalidade para fora do edifício, depois de caído no chão (antes tinha sido agredido) foram “uma exibição rara do controlo de Orbán sobre o acesso dos húngaros à informação.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Jus Soli e Jus Sanguinis


          Há duas maneiras de adquirir a nacionalidade originária, que é aquela que se alcança pelo nascimento: jus soli e jus sanguinis. Pelo jus soli, a nacionalidade originária obtém-se pelo nascimento no território do país pretendido. Logo, não importa a nacionalidade dos pais. O jus sanguinis, pelo direito de sangue, dá direito ao indivíduo adquirir a nacionalidade dos pais. É considerado nacional desde que seja inscrito numa Conservatória do Registo Civil antes de atingir a maioridade.
          Estes dois princípios, que regulam a concessão de nacionalidade, raramente funcionam em separado. Mas a prevalência de um ou de outro revela a abertura ou a tendência protecionista de um país. Portugal é considerado o país com a melhor política de cidadania da Europa. Isso não significa que também em Portugal a discussão sobre o direito à cidadania tenha subido à ordem do dia nos últimos tempos.
          Para além da nacionalidade originária, há outra forma de adquirir a cidadania: por naturalização. Por exemplo, um dos pais ser cidadão português à data do seu nascimento por naturalização. Se o requerente for menor de idade, a prova e o trâmite ficam a cargo de quem possua o poder paternal. A lei de nacionalidade, permite que o indivíduo conserve sua nacionalidade estrangeira original, passando a deter dupla nacionalidade. Os requisitos básicos para adquirir a naturalização portuguesa são: a residência por um determinado período de tempo, seis anos consecutivos com possibilidade de se ausentar do país por menos de seis meses. Ou por ligação ao país, por exemplo, através do casamento com pessoa que seja titular da nacionalidade que se pretende.
          Assim são portugueses de origem, os filhos de mãe portuguesa ou de pai português nascidos no território português; os filhos de mãe portuguesa ou de pai português nascidos no estrangeiro se o progenitor português aí se encontrar ao serviço do Estado Português; os filhos de mãe portuguesa ou de pai português nascidos no estrangeiro se tiverem o seu nascimento inscrito no registo civil português ou se declararem que querem ser portugueses; os indivíduos nascidos no estrangeiro com, pelo menos, um ascendente de nacionalidade portuguesa
do 2.º grau na 
linha/reta que não tenha perdido essa nacionalidade, se declararem que querem ser portugueses, possuírem laços de efetiva ligação à comunidade nacional e, verificados tais requisitos, inscreverem o nascimento no registo civil português; os indivíduos nascidos no território português, filhos de estrangeiros, se pelo menos um dos progenitores também aqui tiver nascido e aqui tiver residência, independentemente de título, ao tempo do nascimento; os indivíduos nascidos no território português, filhos de estrangeiros que não se encontrem ao serviço do respetivo Estado, se declararem que querem ser portugueses e desde que, no momento do nascimento, um dos progenitores aqui resida legalmente há pelo menos cinco anos; os indivíduos nascidos no território português e que não possuam outra nacionalidade. Presumem-se nascidos no território português, salvo prova em contrário, os recém-nascidos que aqui tenham sido expostos. A verificação da existência de laços de efetiva ligação à comunidade nacional, implica o reconhecimento pelo Governo da relevância de tais laços, nomeadamente pelo conhecimento suficiente da língua portuguesa e pela existência de contactos regulares com o território português, e depende de não condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa.
          Só em 1981 é que a lei portuguesa passou a estabelecer como princípio predominante o jus sanguinis, no rescaldo de um processo de descolonização que mudou drasticamente o perfil demográfico do país. Houve também a necessidade de criar proximidade com as crianças da diáspora, descendentes da forte emigração dos anos 60, que de outra forma teriam perdido a conexão cultural com Portugal. O movimento imigratório dos anos 90 e inícios do século XXI, bem como a urgência por naturalizar os chamados imigrantes de segunda e terceira geração que se encontravam num limbo legal, fez com que nova lei em 2006 o jus sanguinis fosse atenuado, dando de novo relevo aos jus soli para facilitar a obtenção da nacionalidade.
          Um novo capítulo está a ser delineado por estes dias, em que não só o Governo está a ultimar a sua proposta de regulamentação às alterações feitas à lei em 2015, como dois partidos de quadrantes opostos apresentaram projetos de novas mudanças, já discutidos no Parlamento e agora à espera de o serem na respetiva comissão. O que determina tais mudanças são em geral os movimentos migratórios e a posição que o país ocupa nesse mapa. Havia uma situação insustentável no nosso país, em especial nas grandes cidades, com bolsas de jovens considerados apátridas de facto. Eram filhos e netos de cidadãos das ex-colónias que tinham a nacionalidade dos pais e não a portuguesa. Ou seja, que não se identificavam com a única nacionalidade a que tinham direito. A lei corrigiu esta anomalia, mas sem nunca deixar de cruzar os dois princípios.
         Tradicionalmente, os partidos mais à esquerda são mais abertos à integração do estrangeiro por via da naturalização e da atribuição da nacionalidade assente no jus soli, porque entendem a cidadania como instrumento de integração. Os partidos mais à direita tendem a ser mais abertos ao reforço das relações com a diáspora nas suas várias gerações. De um ponto de vista ideológico há que reconhecer que, hoje, o jus soli é mais comum nos discursos progressistas e inclusivos, e o jus sanguinis é um princípio mais exclusivo e elitista. Ainda hoje, a maioria dos países americanos adota o jus soli, embora tenha havido crescentes movimentos na direção de limitar certas ações nascidas da imigração ilegal, principalmente nos EUA e Canadá. Alemanha, Hungria, Polônia e Rússia aplicam o jus sanguini mesmo com cidadãos nascidos fora dos territórios nacionais e seus descendentes diretos sem limite de tempo. A cidadania europeia, como complemento da nacionalidade de cada país, existe desde o Tratado de Maastricht, 1992, que instituiu a União Europeia. Instituída a cidadania da União, é cidadão da União Europeia qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União é complementar da cidadania nacional e não a substitui. Isto quer dizer que uma pessoa com nacionalidade portuguesa passa a ser automaticamente um cidadão da União Europeia, com todos os direitos, privilégios e os deveres que isto implica.


segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Será confundir alhos com bugalhos? Aplicação das transições de fase da Física à Sociedade


Um governo, onde atuam inúmeros agentes que interagem segundo as leis das redes de informação, é em si um sistema complexo adaptativo. Da fase criativa – o chamado estado expansivo de novidades – passa-se à fase de incerteza. É esse o destino inexorável de qualquer governo – passar do estado de graça para o estado de desgraça. É no limiar da desintegração do sistema, um estado paradoxal simultaneamente estável e instável, de competição e cooperação, que se estabelece uma dialética evolutiva cujo resultado é sempre imprevisível. Nesta fase da evolução do processo dialético, a tendência é mais destrutiva do que criativa. Até se chegar a uma nova fase que dá lugar a um novo estado de receção a um comando centralizado, o processo de transição corre de forma auto-organizada, pelo que deixa de ser sensível a esse controlo centralizado.

O que são transições de fase na Física? Nas ciências físicas, uma transição de fase ocorre quando um sistema passa de um estado para outro (ex.: de sólido para líquido) com alterações qualitativas no comportamento coletivo dos seus constituintes. Exemplos clássicos: Água a ferver → transição de fase líquida para gasosa. Magnetização de materiais → acima de certa temperatura (ponto de Curie), os átomos deixam de estar alinhados. Supercondutividade ou superfluidez, onde surgem propriedades emergentes com quebra espontânea de simetria. Esses comportamentos coletivos são muitas vezes descritos por modelos estatísticos, como o modelo de Ising.

Aplicação à Sociedade: como isso é feito? Os modelos físicos estatísticos começaram a ser usados para simular e compreender fenómenos sociais, como comportamento coletivo, revoltas, modas, bolhas económicas, polarização política, etc. Alguns conceitos chave: Agentes sociais ≈ partículas. Interações entre agentes ≈ forças locais (amizade, ideologia, pressão de grupo). Estados sociais ≈ fases (consenso, polarização, conflito).

Transições abruptas: uma pequena mudança nas condições externas (ex. uma nova lei, um escândalo político) pode provocar uma mudança súbita e drástica no comportamento coletivo. O modelo de Schelling, precursor nesse campo, mostra como segregação urbana pode emergir mesmo que cada agente só tenha uma preferência moderada pela vizinhança. O sistema evolui para uma fase segregada sem ser essa a intenção dos indivíduos.

O Prémio Nobel da Física de 2016 foi atribuído a David Thouless, Duncan Haldane e Michael Kosterlitz. Eles receberam o prémio pelas suas descobertas sobre transições de fase topológicas e fases exóticas da matéria, como: Supercondutores de filmes finos (2D), Isoladores topológicos, Estados quânticos de Hall fracionário. O Nobel de 2016 não foi atribuído pela aplicação à sociologia, mas sim por descobertas fundamentais na física da matéria condensada com técnicas matemáticas que depois inspiraram outras áreas, incluindo sociologia, ciência das redes, economia, e inteligência artificial. Por exemplo: a Primavera Árabe foi analisada como uma transição de fase social. Uma acumulação de tensão até um ponto crítico. Bolhas financeiras são tratadas como transições de fase com flutuações crescentes perto do “ponto crítico".

A grande contribuição dessas ideias está em modelar o coletivo, onde o todo não é a simples soma das partes. Assim como na Física, propriedades emergentes e ruturas súbitas são centrais para entender sociedades complexas. E os modelos físicos ajudam-nos a reconhecer padrões, limiares críticos e risco de colapso sistémico.

A “epistemologia compreensiva” – como conceito específico das ciências sociais e humanas – por princípio está fora do alcance explicativo das chamadas ciências exatas, duras ou da natureza. Não se pode ver o certo e o errado em Ética, ou o verdadeiro e o falso em História, como se veem os astros e as pedras. Era assim que se pensava dantes porque os fenómenos que resultam da ação humana não são a mesma coisa que equações matemáticas. Um robô foi programado pelo seu construtor para detestar o gosto do limão. E de facto, pondo sumo de meio limão na boca do robô, ele cospe tal como faz a maioria dos seres humanos. O seu programador deu-lhe instruções nesse sentido, imitando as reações humanas. Mas não podemos dizer que realmente o robô sente o gosto do limão. O robô não sente como o humano o sabor do limão (a qualidade subjetiva da experiência mental consciente do sabor a limão). Ainda que viesse a ser dotado de unidades eletrónicas análogas às nossas unidades neurofisiológicas, elas teriam de ser de carne e osso. A unidade eletrónica feita de silício não tem as qualidades fenomenais e generativas da nossa carne. Torna-se intuitivamente plausível a ideia de que essas propriedades se limitam a cérebros biológicos, sendo a sua reprodução por outros meios impossível. Só nós, bem como outros seres vivos conscientes como nós, feitos de carne e osso, são capazes de sentir o verdadeiro gosto do limão.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Cidadania e identidade nacional


          Todos os países têm leis de cidadania nacionais e definições da identidade nacional, assim como as democracias liberais têm a sua própria cultura, em que o principal direito que distingue os cidadãos dos não cidadãos é o direito de voto. Já se devem ser mais valorizados do que as culturas que rejeitam os valores da democracia, os ideólogos da democracia dividem-se. Hoje começa a ser mais claro por que a integração dos recém-chegados à Europa das culturas democráticas falhou.
          A identidade tem de estar relacionada com o respeito por parte dos cidadãos de ideias substantivas como o constitucionalismo, o primado do direito e a igualdade humana. E neste contexto o país tem justificação para excluir da sua cidadania aqueles que as rejeitam. Parece ser um bom caminho para a integração dos imigrantes e para uma sociedade saudável na sua diversidade. Infelizmente os imigrantes não estão bem integrados na maior parte dos países europeus, e a primeira ameaça que isso acarreta é a segurança das pessoas. Infelizmente, o que tem havido nos países democráticos liberais é uma polarização entre uma direita que procura eliminar completamente a imigração, e uma esquerda que afirma uma obrigação de acolher todos os imigrantes, em número praticamente ilimitado e indiscriminado. Isto gerou a ascensão de uma direita populista que sente ameaçada a sua própria identidade.
          Os europeístas convictos são de opinião de que a identidade nacional deveria ser redefinida de modo a ser incorporada nas suas leis de cidadania. Idealmente a EU deveria criar uma cidadania única cujos requisitos se baseariam na adesão a princípios democráticos liberais básicos. Seria uma cidadania que suplantaria as leis de cidadania nacional. Mas agora, com a ascensão de partidos populistas em toda a Europa, isso será impossível. A maior parte dos 28 países da União continuam ciosos das suas prerrogativas nacionais. Assim, qualquer ação que possa vir a acontecer terá de ser ao nível de cada estado membro.
          A dupla cidadania tem-se tornado crescentemente vulgar hoje em dia à medida que os níveis de migração sobem. Mas, por vezes, isto pode causar problemas. Por exemplo, na Alemanha reside uma comunidade turca significativa. E nas eleições alemãs de 2017, Erdogan, o Presidente turco, resolveu encorajar os turcos com cidadania alemã a votarem em políticos mais favoráveis aos interesses turcos, em vez de votarem em consciência naqueles que seriam melhores para a Alemanha. O direito de voto é particularmente importante, visto que dá às pessoas uma parcela do poder do Estado. Mas não passaria pela cabeça de ninguém que um turco pudesse votar em Itália ou no Gana, mesmo que vivesse num desses países.
          A verdade é que o multiculturalismo, que se tem vivido em países como a Alemanha, incutiu na cabeça das pessoas a preocupação de não insinuar que a nossa cultura europeia, por baseada na crença dos valores democráticos e da igualdade liberal, era superior a outros valores culturais, e daí o facto de um turco na Alemanha, com cidadania alemã, não se sentir obrigado a falar de si como um alemão. Ou seja, este entendimento de identidade nacional é baseado na etnicidade. É claro que este ambiente cultural veio dar um conforto involuntário não apenas aos islamistas, mas também à direita que ainda acredita na identidade étnica.
          Acima de tudo, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, há uma obrigação moral para com os refugiados. Mas, como todas as obrigações morais, estes deveres precisam de ser temperados por considerações práticas de escassez de recursos, prioridades concorrentes e a sustentabilidade política de um programa de apoio. As democracias liberais beneficiam largamente com a imigração, tanto económica como culturalmente. Mas isso significa também que os níveis de imigração tê de ser relevados, porque as comunidades imigrantes ao atingirem certa escala tendem a tornar-se disfuncionais com os outros grupos dado o seu desejo de se autonomizarem. Por seu lado, a população autóctone não aceita de ânimo leve que estrangeiros que não são cidadãos legais, e não contribuintes enquanto desempregados, assoberbem os serviços públicos para cuidar deles, enfraquecendo o apoio esperado receber de uma segurança social generosa. Por outro lado, a situação de ilegalidade é agravada porque alguns empregadores ocultam informação acerca dos seus trabalhadores para beneficiarem de trabalho barato.
          Portanto, a solução para o problema do populismo e da ascensão da extrema direita derivado da pressão migratória, tanto na Europa como nos Estados Unidos, passa por políticas públicas de integração bem-sucedidas. Na verdade, apaziguariam pelo menos aquele setor da sociedade que rejeita o imigrante mais por medo e insegurança, do que por racismo ou intolerância do estranho outro. Receiam que as instituições existentes não sejam capazes de arcar com um tão elevado número de pessoas que implica grandes e rápidas mudanças no modus vivendi. Porque em relação ao grupo motivado pelo racismo e intolerância, pouco se pode fazer para que mudem de opinião, a não ser a nossa oposição de caráter moral. Uma política focada na integração, boa para a coesão social, poderia aplacar as preocupações do primeiro grupo, e assim despega-los dos intolerantes racistas.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Relações desiguais de género numa sociedade ainda patriarcal


          Há dois dias, no dia internacional pela eliminação da violência contra as mulheres, centenas de pessoas reuniram-se em marchas pelas principais cidades da Europa. Das declarações às reportagens televisivas, de líderes de alguns movimentos, como por exemplo UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) extraía-se um argumento de peso: “ainda se vive numa cultura patriarcal e machista, assente numa sociedade desigual que historicamente, quanto à desigualdade de género, tem privilegiado os homens em detrimento das mulheres.”
          É claro que a perceção de alguns homens conservadores, os que enfiam a carapuça de machista, não é coincidente, e como é óbvio, não aceitam essa verdade também óbvia. Argumentam que são ideias da esquerda que tem dado vantagens injustificadas às minorias, às mulheres, aos refugiados. Mas a verdade é que ainda é muito elevado o número de mulheres assediadas, agredidas, violadas e assassinadas (nos últimos dez anos, 30 mulheres assassinadas em média por ano).
          Quando a liberdade de expressão se transforma em afronta vergonhosa, agora algumas democracias europeias criminalizam certas expressões, que são vedadas quando proferidas em público, ou por serem humilhantes para certas minorias, ou por instigarem à violência. No entanto estes princípios não se aplicam aos Estados Unidos da América porque a liberdade de expressão está constitucionalmente protegida. Assim, as pessoas podem dizer o que lhes apetece, que o que lhes pode acontecer é apenas um opróbrio moral. Não é assim, portanto, tão extraordinário para os americanos, toda a verborreia bestial de Donald Trump. Inclusivamente, Hillary Clinton, numas declarações aquando da derrota que teve com Trump, chegou a dizer que isso se deveu a um certo eleitorado pacóvio, ou algo semelhante. Ora, de certo modo estas declarações vieram agravar ainda mais a pouca fé que esse eleitorado visado tinha por ela. Apesar de algumas dessas pessoas não apreciarem por aí além a forma como Trump diz as coisas, o certo é que gostam do facto de ele não se deixar intimidar pela pressão do politicamente correto. Pode ser irritante, e até malévolo, mas pelo menos é autêntico. Estes americanos da chamada “América Profunda”, ou do mundo rural, e a que Hillary Clinton chamou pacóvia, ficaram fartos de serem ridicularizados pelas elites das grandes cidades, através dos filmes produzidos em Hollywood, em que quem ficava sempre bem na fotografia eram personagens estereotipadas nas categorias conotadas com lésbicas e gays.
          Apesar de a identidade pessoal ser um aspeto de suprema importância, quando levada ao extremo pode paralisar as sociedades, ao ameaçar a possibilidade de comunicação e de ação coletiva. Por isso, a sociedade como um todo, para prosseguir objetivos comuns, nada beneficia quando protege determinadas identidades de grupo cuja legitimidade pode ser discutível. As pessoas vivem melhor em sociedades mais cosmopolitas, mais democráticas, mais diversificadas, sem que com isso tenham de perder o sentido de identidade nacional, mais ampla e ao mesmo tempo mais integradora.

domingo, 25 de novembro de 2018

O paraíso perdido (3)


          Entretanto na Alemanha dos festejos passou-se ao medo e os xenófobos passaram a fazer mais barulho. Em fevereiro de 2017 Merkel é obrigada a ceder e em setembro a popularidade de Merkel começa a baixar e a AfD a subir. Em junho de 2018 com Merkel mais fragilizada do que nunca depois de seis meses para formar governo, o ministro do interior ameaça agir unilateralmente para restringir o acesso à imigração. Merkel acaba por ceder comprometendo-se com a criação de centros de trânsito para os migrantes em território alemão. Os ataques de Paris haviam acelerado um processo de rápida inversão do que estava já em andamento. Tal como na Grão Bretanha e outros países europeus os franceses tinham semelhantes razões para estarem céticos em relação à retórica que se havia instalado. 
          No verão de 2016 a cidade de Nice apenas passou pelo primeiro de um conjunto de ataques quase diários. Alguns destes ataques foram levados a cabo por pessoas que tinham chegado à Europa durante os anos da recente vaga de imigração. Outros ataques, como o de Munique, foram realizados por indivíduos que tinham nascido na Europa. As pessoas ficavam atrapalhadas quando se perguntava porque estava isso a acontecer. O falhanço da integração era apenas uma parte da resposta. E por outro lado os migrantes mais recentes não explicavam tudo.
          O medo estava-se espalhando, e quantos mais refugiados entrassem num país mais esse medo crescia. Mas por outro lado também se tinha medo de cair ou ser acusado de racismo. E as autoridades ficaram à nora, sem saber o que fazer. Inclusivamente a Noruega passou a oferecer lições aos migrantes, como tratar as mulheres. Estas lições destinavam-se a contrariar o crescente problema das violações na Noruega, explicando aos refugiados que, por exemplo, se uma mulher lhes sorrisse ou se vestisse de forma a mostrar a pele, isso não queria dizer que eles pudessem violá-la. E na Alemanha, ao longo de 2016, a onda de violações e agressões também se espalhou. Mas o medo das consequências de identificar os agressores sobrepôs-se ao empenhamento da polícia no seu dever de não ocultar a identificação dos culpados.
          Agora, com a política de inversão, era sobre a Grécia e sobre os países de receção que pesavam os efeitos dessa inversão. Nem os podiam deslocar para norte, nem os podiam mandar de volta para casa. E o que tinha a dizer Merkel por toda esta confusão ? O que ela disse numa breve palestra enquanto recebia um doutoramento honoris causa pela universidade de Berna, foi que os europeus tinham responsabilidades relativamente aos refugiados. Mas, e então, levantou-se alguém da assistência, “em que posição fica a responsabilidade dos europeus na proteção dos outros europeus?” Merkel, invocando europeus que se tinham ido juntar ao Daesh, os europeus não podiam dizer que nada tinham a ver com eles. Não fora isso que lhe fora perguntado, mas a chanceler continuou: “o medo é mau conselheiro, tanto na vida pessoal, como na vida social.”
          O campo de refugiados da ilha grega de Lesbos é o maior da Europa. É um lugar onde não faltam agressões nem violações. São perto de oito mil pessoas num espaço insuficiente para tanta gente que chega a Mória, onde outrora estava instalada uma base militar. Semanas depois da chegada são chamadas para registo oficial. Mas a etapa seguinte pode demorar meses. Os que chegaram agora só lá para abril terão a entrevista de admissibilidade. E depois, só se passarem é que seguem para a entrevista principal, a de elegibilidade. Se tudo correr bem então é pedida a ajuda internacional. Caso contrário entram na fase de recurso. Se a pessoa for rejeitada, a pessoa é detida e deportada. Ainda pode recorrer, a um tribunal superior, muito difícil de alcançar e caro.
          Há uma casa de banho para cada trinta pessoas, alguns a viver em tendas de lona com paletes cobertas com mantas a fazer de chão. É difícil entrar na parte oficial do campo de Mória. Os jornalistas não têm autorização para entrar nas casas de banho e nos duches, onde as mulheres têm medo de ir porque podem ser violadas. Este centro de registo numa base militar sob a responsabilidade do governo grego e financiado com fundos europeus, não foi planeado para reter refugiados tantos meses, podendo chegar a um ano. Foi planeado para ser um abrigo transitório onde os refugiados não permaneceriam mais de uma semana. À volta do campo há rulotes junto ao muro da base, onde se pode ler “bem-vindo à prisão”, e comerciantes vendem fruta e outras coisas, que regressam a casa ao fim do dia e voltam no dia seguinte.