terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A barbárie sob a lei do pêndulo





Cada indivíduo é virtualmente inimigo da civilização. A civilização é algo que foi imposto há milénios por uma minoria a uma maioria a ela contrária. Assim se insere a contestação às regras de contenção da propagação do vírus da pandemia covid-19 que tem ocorrido na maior parte das capitais dos países supostamente mais civilizados do mundo. Essas pessoas, subjugadas pelas pulsões mais profundas que se possa imaginar, vêm para as ruas das cidades manifestar-se contra as medidas governamentais suportadas na ciência, provocando todo o tipo de desacatos que as polícias tentam travar com muito baixa eficácia.

Porque será que isso acontece? É imputável a duas circunstâncias amplamente difundidas entre os cidadãos: a submissão às pulsões hedonísticas do gozo do prazer; e o desamor ao trabalho. Há uma ineficácia tremenda dos argumentos contra as paixões do corpo. Desde os tempos de Aristóteles que os seres humanos se distinguem das bestas e dos anjos pelo facto de só poderem existir no interior de uma pólis, esse antigo equivalente/arquétipo da ideia moderna de “sociedade. Depois Thomas Hobbes inseriu no senso comum da era moderna uma versão atualizada, ou modernizada, da perceção aristotélica, ao assegurar que, sem coação exercida a partir de cima - homo homini lupus est, (o homem é o lobo do homem) - o homem está condenado a uma vida horrenda, breve e brutal. E onde há coação, isto é, onde as pessoas se veem obrigadas a manter um comportamento diferente daquele que suas inclinações naturais ditam, há insatisfação e dissensão, na maior parte do tempo sufocados, reprimidos ou desviados, mas evidentes de vez em quando.

Há um preço a pagar pelo homem se ter emancipado da existência bestial, por haver obtido aquela segurança confortável e reconfortante que somente o poder da sociedade consegue proporcionar. Se se quer uma coisa, é preciso perder outra coisa. A vida civilizada é um contrato social. O que os indivíduos cedem na transação é uma quantidade nada pequena de satisfações que seus instintos os exortariam a buscar, e que eles buscariam se nada lhes fosse proibido ou impedido pela força. Em troca, eles ganham uma medida considerável de segurança contra os males e os perigos que provêm da natureza, neste caso de uma insignificante forma de quase vida que damos pelo nome de vírus.

Mas nada pode ser considerada solução definitiva para o dilema de equilibrar segurança e liberdade – dois valores igualmente indispensáveis, mas obstinadamente incompatíveis. Uma solução de compromisso, com o subsequente armistício, sempre temporário, sempre até ao próximo aviso, sempre um espinho cravado no corpo das relações entre o indivíduo e a sociedade, que ao longo da história tem oscilado sempre como um pêndulo: ora uma tentação a embarcar em rebeliões anárquicas; ora em golpes de Estado autocráticos/totalitários. Depois de chegar a uma das extremidades, volta a iniciar um outro combate, outra rodada. Outros diretos, outros deveres.

A eutopia, um bom lugar, onde a segurança e a liberdade estariam perfeitamente equilibradas, sem causar insatisfação nem dissensão, é uma utopia. A civilização é um dom ambíguo, que suscita impulsos ambivalentes: é irremediavelmente uma bênção mesclada com uma maldição. A civilização, tudo aquilo em que a vida humana se eleva acima de suas condições animais, e se distingue da vida animal, não pode prescindir da coerção, tampouco pode existir sem gerar resistência contra si mesma.

Não há um caminho benigno, fácil de percorrer e à prova de danos colaterais, que leve as massas a obedecerem às normas da vida civilizada, sem que tenham de passar mais uma vez pelo estado de barbárie. Incerteza, insegurança e desproteção - depois da queda do Muro de Berlim, e a seguir a queda das Torres Gémeas em Nova Iorque - passaram a ser, de longe, o pior mal da civilização atual. O pêndulo dos valores volta a mover-se em sentido contrário, de forma muito acelerada.

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