terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Os Citas segundo Heródoto




Os Citas, na Antiguidade, e os Sármatas, povo com o qual os Citas tinham forte parentesco, dominaram a estepe que ia do Ponto ao Mar Cáspio. No tempo do Império Bizantino os escritores gregos usaram o termo "citas" como arcaísmo para denotar os povos nómadas que encontravam. Depois da tomada de Babilónia, Dario marchou contra os Citas. A Ásia era, então, rica e muito povoada, encontrando-se em situação florescente. O soberano desejava vingar-se dos Citas, que, tendo invadido a Média, bateram as tropas que a eles se opuseram e entraram a violar. Esse povo tinha dominado na Ásia Superior durante vinte e oito anos. Havia ali penetrado perseguindo os Cimérios, arrebatando o império aos Medos.

Depois de uma ausência de vinte e oito anos, conta Heródoto, os conquistadores citas quiseram retornar à pátria; mas para voltar à Cítia não encontraram menores dificuldades do que as que tinham tido para dominar os Medos. Um exército numeroso erguera-se diante deles, impedindo-lhes a entrada; pois enquanto estiveram ausentes, as suas mulheres, entediadas pela longa espera, entregaram-se aos escravos, daí resultando toda uma nova população. Desses escravos e de mulheres citas nasceram muitos jovens, que, tendo conhecimento da sua origem, marcharam ao encontro dos Citas que regressavam da Média. Começaram por dividir o país em duas partes, cavando um largo fosso que ia dos montes Táuricos ao Palos-Meótis, abrangendo vasta extensão. Foram, em seguida, acampar diante dos Citas que procuravam penetrar no país, aos quais ofereceram combate. Houve entre eles várias escaramuças, sem que os Citas pudessem conseguir a menor vantagem.



“Companheiros, que estamos a fazer? — gritou um dos Citas no meio da peleja — se esses homens matam um dos nossos, diminuímos de número; se matamos um deles, diminuímos o número de nossos escravos. Abandonemos os arcos e dardos e marchemos contra eles armados do chicote com que fustigamos nossos cavalos. Enquanto nos virem de armas na mão considerar-se-ão nossos iguais; mas se em lugar de armas nos virem de chicote, lembrar-se-ão de que são nossos escravos, e apercebendo-se da sua baixa origem, não mais ousarão resistir-nos”. A sugestão foi aceita por todos. Os escravos, atemorizados, puseram-se logo em fuga, sem mais pensar em combater. Assim regressaram os Citas à pátria, depois de haverem dominado a Ásia e terem sido dali expulsos pelos Medos. Foi para vingar-se dessa invasão, que Dario levou contra eles poderoso exército. É isso o que dizem os Citas com relação a si próprios e ao seu país. Todavia, os gregos que habitam o litoral do Ponto Euxino dizem que Hércules, conduzindo as boiadas de Gérion chegou ao país hoje ocupado pelos Citas e então deserto. Gérion morava além do Ponto Euxino, numa ilha denominada Erítia pelos gregos e situada perto de Gades, no oceano, adiante das colunas de Hércules. Acreditam esses gregos que o oceano começa a leste e envolve a terra com as suas águas. Mas, nenhumas provas apresentam, em apoio de tal crença.

Há ainda sobre o mesmo assunto outra versão, que de muito boa vontade passo a relatar. Os Citas nômades habitantes da Ásia, batidos pelos Masságetas, com os quais entraram em guerra, atravessaram o Araxo e foram ter à Ciméria — pois o país hoje ocupado pelos Citas pertenceu outrora, ao que dizem, aos Cimérios. Estes, vendo-os invadir suas terras, discutiram a medida a tomar ante tão grave contingência. As opiniões se dividiram em extremos opostos, sendo as dos reis aceitas como as melhores. O povo achava que deviam retirar-se para não se exporem aos azares de um combate contra tão numeroso grupo de invasores, opinando os reis que se desse batalha aos que vinham atacá-los. O povo não queria ceder ante o parecer dos reis, nem estes ante o dos seus súditos. Estes últimos preferiam a desonra à eventualidade de se verem massacrados; aqueles achavam preferível morrer na pátria do que fugir com a população. Por um lado, consideravam as vantagens que haviam desfrutado até ali; por outro lado, previam os males que lhes adviriam fatalmente se abandonassem a pátria.

Como ambos os lados se mantivessem irredutíveis em suas opiniões, a discórdia agravou-se entre eles. Sendo os partidários de uns e de outros equivalentes em número, não tardaram a decidir a questão pela força. Os que pereceram nessa ocasião foram enterrados, primeiro o nome de Agatirso; ao segundo, o de Génolo, e ao mais jovem, o de Cíntio. Lembrou-se, então, das ordens de Hércules e cumpriu-as. Os dois mais velhos, não tendo forças para dobrar o arco, foram banidos do lugar, indo estabelecer-se em outro país. Cíntio, o mais moço, fez o que o pai havia determinado e permaneceu na sua pátria. É, pois, de Cíntio, filho de Hércules, que descendem todos os reis dos Citas, e até hoje esse povo traz presa ao talabarte uma taça como reminiscência da que Hércules trazia pendente do seu, por ocasião da sua aventura naquele país. É assim que os Gregos habitantes do litoral do Ponto Euxino relatam esse fato.

Transpondo-se esse rio, encontra-se primeiramente a Hiléia, na direção do litoral. Acima ficam os Citas agricultores. Os Gregos que vivem às margens do Hípanis chamam-nos Boristênidas, mas denominam a si próprios Olbiopólitos. O país desses Citas agricultores, que fica a três dias de viagem do lado do levante, estende-se até o rio Pantícapes. Atravessando-se essa região chega-se a vastos desertos, além dos quais vivem os Andrófagos, que nada têm de comum com os Citas. Ao norte do território por eles habitado existem apenas desertos — pelo menos não se sabe da existência de nenhum povo ali. A leste da região ocupada pelos Citas agricultores e para lá do Pantícapes vivem os Citas nômades, que não lavram a terra. Toda a região, com exceção da Hiléia, é desprovida de árvores. Os Citas nômades ocupam, a leste, uma extensão correspondente a quatorze dias de jornada até o rio Gerro.

Em toda a região de que acabo de falar, o Inverno é tão rude, e o frio tão intenso pelo espaço de oito meses, que espalhando-se água pela terra não se faz lama, senão quando se acende fogo. O próprio mar gela, assim como o Bósforo Cimeriano; e os Citas da Quersonésia passam com seus exércitos sobre o gelo, conduzindo carroças, para irem ao país dos Sindas. O Inverno mantém-se intenso durante oito meses, sendo que os outros quatro últimos meses também são frios. O Inverno nessas paragens é, aliás, muito diverso do dos outros países. Chove tão pouco durante a estação, que se pode dizer ser ela de completa seca; e no Verão não cessa de chover. Não troveja na época em que costuma trovejar em outros lugares; mas as trovoadas são muito frequentes no Verão; e se as ouvem no Inverno, encaram o fato como algo fenomenal. 

Os Délios falam mais detalhadamente sobre o referido povo. Contam que as oferendas dos Hiperbóreos lhes vinham envoltas em palha de trigo. Passando pelas mãos dos Citas e transmitidas de povo a povo, essas oferendas alcançavam terras distantes, chegando até o Adriático, a ocidente, de onde eram enviadas para o sul. Os Dodoneus eram os primeiros Gregos a recebê-las. Dali desciam até o golfo Malíaco, de onde passavam para a Eubéia, e, seguindo de uma cidade para outra, iam ter a Cariste. Dali, sem tocar em Andros, os Caristeus levavam-nas para Tenos, de onde os Teneus as transportavam para Delos. A dar crédito aos Délios, era assim que essas oferendas chegavam à sua ilha. Acrescentam eles que, nos primeiros tempos, os Hiperbóreos enviavam as oferendas por intermédio de duas virgens — Hiperoquéia e Laodicéia; que, para segurança dessas jovens, os Hiperbóreos faziam-nas acompanhar por cinco cidadãos, a que atualmente se rendem grandes homenagens em Delos sob o nome de Pérferos; mas que, os Hiperbóreos, não os vendo regressar e ante a desagradável possibilidade de virem a perder muitos outros de seus delegados nessa missão, resolveram, depois de certo tempo, levar as oferendas até as fronteiras, envoltas em palha de trigo, de onde eram enviadas aos vizinhos mais próximos, a quem solicitavam remetê-las a outra nação. Dessa maneira, as oferendas iam passando, segundo os Délios, de país a país, até chegarem ao seu ponto de destino.

Os Citas sacrificam em todos os lugares sagrados, procedendo da seguinte maneira: a vítima fica de pé, com os pés dianteiros amarrados. O que deve sacrificá-la coloca-se atrás dela e puxa a corda que lhe prende os pés, fazendo-a tombar, enquanto invoca o deus ao qual vai imolá-la. Em seguida, amarra uma corda em torno do pescoço do animal, apertando-a com auxílio de um bastão até estrangulá-lo. Não se acende fogo e nem fazem libações. Estrangulada a vítima, o oficiante esfola-a, esquarteja-a e prepara-se para cozinhá-la. Como não há lenha na Cítia, procedem da seguinte maneira para cozinhar a vítima: depois de esquartejá-la, retiram toda a carne que envolve os ossos e colocam-na em caldeiras, se as possuem. Essas caldeiras se assemelham muito às crateras de Lesbos, com a diferença de serem bem maiores. Debaixo delas acendem o fogo com os ossos da vítima. Se, porém, não possuem caldeiras, colocam toda a carne, com água, no ventre do animal, e queimam os ossos por baixo(6). Os ossos fornecem um bom lume, e o ventre mantém muito bem a carne. Assim, os animais sacrificados servem para cozinhar a si próprios. Quando tudo está cozido, o sacrificador faz o oferecimento dos primeiros bocados de carne e de vísceras atirando-os para a frente. Os Citas sacrificam várias espécies de animais, principalmente cavalos.

Quanto aos costumes que observam na guerra, vale mencionar os seguintes: o guerreiro cita bebe o sangue do primeiro homem que consegue abater, corta a cabeça a todos os que mata em combate e leva-as ao seu soberano. Quando apresenta a este a cabeça de um inimigo, pode compartilhar dos despojos da luta; em caso contrário, lhe é negado esse direito. Para esfolar a cabeça do inimigo abatido, o Cita faz primeiramente uma incisão em torno da mesma, na direção das orelhas, e, segurando-a pelo alto, puxa a pele, arrancando-a. Em seguida, limpa a pele tirando-lhe toda a carne, depois do que fricciona-a nas mãos para amaciá-la. Tendo-a assim preparado, dela se serve como guardanapo e amarra-a no bridão do cavalo. Isso constitui um título de honra. O Cita que possui tais guardanapos é considerado valente e destemido, e quanto maior o número desses troféus, maior é a consideração de que goza entre os seus. Muitos cosem os fragmentos de pele humana, como as capas dos pastores, e fazem delas vestuários. Outros também esfolam até as unhas a mão direita do inimigo, fazendo da pele bainha para as aljavas. A pele humana é, realmente, espessa e brilhante, e de todas a mais notável pela brancura. Outros há, ainda, que esfolam homens inteiros, e depois de espichar a pele em pedaços de madeira, colocam-na sobre seus cavalos.

Se o rei dos Citas cai doente, manda buscar três dos mais famosos adivinhos que praticam a arte da maneira que acabo de expor. Convidados a explicar, servindo-se dos seus dons, a razão do mal e o meio de combatê-lo, eles geralmente declaram pele de boi, como o douram por dentro, dele servindo-se, à semelhança de uma taça, para beber. Fazem o mesmo com a cabeça dos parentes próximos se, depois de alguma disputa com eles, levam a melhor. A decisão da contenda tem de ser feita perante o rei. Se um estrangeiro de categoria visita o país apresentam-lhe esses crânios, relatando-lhe como venceram aqueles a que eles pertenceram, ainda que se trate de parentes, constituindo isso motivo de vaidade e classificando tal procedimento como ações de mérito. Cada governador cita dá anualmente um festim em seu distrito ou província, no qual é servido vinho misturado com água, numa cratera. Todos os que se podem vangloriar de haverem matado inimigos em combate bebem desse vinho; os que nada fizeram de semelhante estão privados desse direito, e permanecem à parte, em situação sumamente humilhante. Os responsáveis pela morte de grande número de inimigos bebem em duas taças ao mesmo tempo.

O rei da Cítia manda matar os filhos dos condenados à morte, poupando, porém, as filhas. Quando os Citas estabelecem um pacto, eis como procedem: despejam vinho numa grande taça de barro, e os contratantes, fazendo pequenas incisões no corpo com uma faca ou espada, vertem ali um pouco do seu próprio sangue, depois do que mergulham na taça uma cimitarra, flechas, um machado e um dardo. Terminada a cerimônia, fazem longas preces e bebem parte do conteúdo da taça, e depois deles, as pessoas presentes de mais alta categoria, uma a uma. Os túmulos dos reis citas acham-se no país de Gerro, no ponto em que o Borístenes começa a tornar-se navegável. Quando morre um soberano cita, abrem ali um grande fosso quadrado para receber o cadáver. O corpo do falecido é untado com cera, e o ventre, depois de aberto e limpo, enchem-no de pedra esmigalhada, de essências e de sementes de aipo e de anis, recosendo-o em seguida. Feito isso conduzem o corpo num carro para outra província, onde os habitantes, à maneira dos Citas reais, cortam uma parte da orelha, raspam o cabelo em torno da cabeça, fazem incisões nos braços, fendem a fronte e o nariz e passam flechas através da mão esquerda. Dali, o corpo é levado, ainda de carro, para outra província, acompanhado pelos habitantes daquela por onde passou em primeiro lugar. O soberano percorre assim, depois de morto, todas as nações submetidas ao seu domínio, até chegar ao país dos Gerroneus, na parte extrema da Cítia, onde o colocam na sepultura já preparada, sobre um leito de verdura. Lanças à guisa de estacas são fincadas em torno do corpo, sobre as quais são colocadas peças de madeira coberta com galhos de salgueiro. No espaço vazio deixado no fosso acomodam os corpos estrangulados de uma das concubinas do rei, de um escudeiro, de um cozinheiro, de um pajem, de um dos ministros reais, de um dos servidores, de cavalos, enfim, as premissas de todas as riquezas do soberano, inclusive taças de ouro — os Citas não conhecem nem a prata nem o cobre. Isso feito, enchem de terra o fosso e erguem, trabalhando por turnos, um cômoro elevado sobre a sepultura.

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