quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Deus morreu e deixou os anjos à mercê do capitalismo da estética hedonista




Bárbara Reis foi dar uma vista de olhos a um novo projeto digital de investigação jornalística – Setenta e Quatro. Mas não gosta das irritantes manias deste 'politicamente correto' com frases como: “às leitoras e aos leitores” e o facto de nos tratarem por “tu” (“se tens informação”, “podes saber”, “fala conosco”, “podes contactar-nos”, “podes ler”...).

O trabalho do Setenta e Quatro inclui uma entrevista a Miguel Salazar - “Aceitei submeter-me a uma prática de conversão por medo dos meus pais”. E a carta que escreveu à Assembleia de Deus a anunciar o corte com a Igreja. Sair do armário teve o resultado previsível: “Vais para o inferno”, “isso é pecado”, “estás no lixo”, “isso é contranatura”, “estás possesso por espíritos demoníacos”, “isso é doença”, “nem os animais fazem isso”, “podias ter esperado que eu morresse para assumires”, “Deus está contra ti”. Houve isso e também houve cenas de estalos. Na entrevista, Miguel Salazar descreve com pormenor as discussões violentas que teve com os pais por ser gay.

Logo na primeira aula de jornalismo a primeira lição a reter é que não é de esperar respostas cogentes se as perguntas não tiverem pés e cabeça. Ou seja, o esclarecimento de qualquer coisa, depende mais da pergunta do que da resposta. Como dizia Kant inspirado em Hume: "é preciso acordar do sonho dogmático". A uma pergunta feita a Putin, se ia invadir a Ucrânia, a jornalista recebeu como resposta: "A pergunta é uma provocação". Numa pergunta a Biden como é que ele respondia ao facto de não aparecerem pessoas para trabalhar numa obra após anúncio, Biden respondeu com outra pergunta: "E já experimentaram pagar-lhes mais?"

O mestre é aquele que sabe manter vivo o espírito socrático da pergunta, e seu ensinamento consiste em nos dar a melhor prova de que o que importa é aprendermos a única lição magistral que nos põe no caminho de um saber verdadeiro, e que consiste em nos darmos conta de que nenhuma palavra pode dizer toda a verdade, como do porquê deste mundo, e o que viemos cá fazer.

Nesta hipermodernidade de lixeira (poluição da Terra, Mar e Ar), e anacronismos, não há empatia para um olhar lúcido sobre o movimento do mundo. Como abrigar o sofrimento dos condenados do sistema, devolver a dignidade aos marginais do discurso politicamente correto? Dos rejeitados de um sistema cuja engenharia social se baseia no álibi do progresso universal. Tenhamos consciência disso ou não, é urgente a aproximação a uma posição mais ética. É preciso dar a palavra ao sujeito verdadeiro, sequestrado pelo silêncio ao qual o paradigma técnico-científico o condena sem muitas considerações.

Os aspetos devastadores da economia liberal impõem-se com tanta evidência que não se pode pô-los em dúvida. Mesmo assim existem realidades mais amenas que convidam a reconsiderar o que ocorre na cena do capitalismo de consumo superdesenvolvido. Devemos, contudo, dirigir o nosso foco para uma ordem económica cujo efeito seja menos devastador.

No decorrer da sua histórica evolução, já secular, as lógicas produtivas do sistema capitalista mudaram. Não estamos mais no tempo em que produção industrial e cultura remetiam a universos separados, radicalmente inconciliáveis; estamos no momento em que os sistemas de produção, de distribuição e de consumo são impregnados, penetrados, remodelados por operações de natureza fundamentalmente estética. O estilo, a beleza, a mobilização dos gostos e das sensibilidades são impostas cada vez mais como imperativos estratégicos das marcas. Este capitalismo de hiperconsumo, é o capitalismo da estética hedonista.

As indústrias de consumo, alavancadas pelo mundo mediático (o mundo do design, da moda, da publicidade), criaram necessidades com os seus próprios produtos em massa, carregados de sedução, afetos e sensibilidade. Assim se foi moldando um universo estético abundante e heterogéneo. Com a estetização da economia, vivemos num mundo marcado pela abundância de estilos, de imagens, de narrativas, de espetáculo, da cosmética à música.

O capitalismo engendra um mundo “inabitável” ou “o pior dos mundos possível”, embalado por uma economia estética que estetiza a vida quotidiana. Em toda a parte o real se constrói em virtual através da imagem. Foi dessa maneira que as gigantes tecnológicas que dão suporte às redes sociais, integrando nas suas plataformas uma dimensão estético-emocional que se tornou central na concorrência que as marcas travam entre si através da utilização dos próprios utilizadores para publicitarem os seus produtos. É o que Gilles Lipovetsky chama de "capitalismo artista ou criativo trans estético", que se caracteriza pelo peso crescente dos mercados da sensibilidade e do “design process”, por um trabalho sistemático de estilização dos bens e dos lugares mercantis, de integração generalizada da arte, do “look” e do afeto no universo consumista. Portanto, uma paisagem económica mundial caótica, e ao mesmo tempo estilizada.

Assim, o desenvolvimento do capitalismo financeiro contemporâneo associou-se ao mundo da Arte para se potenciar. Não se deve entender com isso que seja um capitalismo menos cínico ou menos agressivo quanto ao lucro e à conquista dos mercados. O que daí decorre é que estamos num novo ciclo marcado por uma relativa indiferenciação das esferas económica e estética, pela desregulamentação das distinções entre o económico e o estético, a indústria e o estilo, a moda e a arte, o divertimento e o cultural, o comercial e o criativo, a cultura de massa e a alta cultura. Doravante, nas economias da hipermodernidade, essas esferas se hibridizam, se misturam, se interpenetram. Uma lógica de indiferenciação que é menos pós-moderna do que hipermoderna, a tal ponto se inscreve na dinâmica de fundo das economias modernas que se caracterizam pela otimização dos resultados e pelo cálculo sistemático dos custos e benefícios.

A profusão da estética hipermoderna é filha das “águas frias do cálculo egoísta”, como disse Karl Marx. É a cultura moderna da racionalidade instrumental. E da eficiência económica do "Crescimento? Sempre!" . E contínuo. A dominação da racionalidade produtiva e mercantil não elimina de modo algum o avanço das lógicas sensíveis e intuitivas, qualitativas e estéticas. E, simultaneamente, a uniformidade planetária do “calcular tudo” não deve ocultar a excrescência das criações de intuito emocional. A lei homogénea do economicismo, e da produtividade do mundo do trabalho, é o que leva a uma estetização sem limites e ao mesmo tempo pluralista, privada de unidade e de critérios consensuais.

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