terça-feira, 28 de dezembro de 2021

O que resta do tempo que passa





O que será mais inquietante, ou angustiante, a ideia de que todos teremos um fim ou de que não pode haver um fim? Enquanto esperava pelo tempo que não passa, perguntei que coisa é o mundo quando vi na TV o Telescópio Espacial James Webb ir para o espaço com a missão de procurar a origem do Universo.

Chegados aos setenta, o melhor é não esperar por nada exceto o sono de todas as noites em que um dia já não acordaremos. Quem espera saber as coisas que se virão a saber e que ainda não se sabem, fica com um anseio permanente de não conseguir chegar a tempo. O anseio é irmão do medo. Que o nosso destino é morrer, todos devem saber. A diferença está no morrer a tempo. Esse é o grande paradoxo, de não querer chegar atrasado. Nas Mil e Uma Noites é o entretenimento que adia a iminência da morte executada.

Eu sou do tempo das leituras dos grandes guias da Internationale Situationniste dos anos 1970, em que se faziam críticas tenazes da espetacularização do social nos media, ou seja, nos meios massificados de comunicação mediática, que criam dinâmicas de controlo social, mental e corporal. Poder-se-ia pensar que a sociedade do espetáculo mais não é que uma forma tardia e desencantada dos contos de As Mil e Uma Noites e que estes constituem uma espécie de prelúdio oriental das atuais telenovelas que passam na TV. Contudo, se a televisão é realmente a nossa Xerazade, então provavelmente não haverá qualquer alegre escapatória às mil interações da iminência da morte.

O desaparecimento de um filho pequeno por rapto, que nunca mais voltou, para uma mãe, é muito pior do que se tivesse morrido. É o caso de uma mãe que ainda espera pelo filho 23 anos depois de ter desaparecido por rapto quando ainda tinha 6 anos de idade. A mãe está ainda desesperada, visível no seu fácies escavado. Como não pode ter a certeza de que o filho morreu, não é possível fazer o luto da perda definitiva. A incerteza é o pior que pode acontecer nestes casos. Não são poucos os que se matam por medo da morte incerta. O suicídio surge talvez como a medida mais radical para triunfar sobre a incerteza do futuro.

Nas últimas 24 horas morreram 256 pessoas de covid-19, na França. Número de novos casos será muito expressivo. Filas para testes no aeroporto de Lisboa esta tarde. As cheias no Brasil fazem 20 mortes na Baía. Duas barragens colapsaram. Milhares de famílias desalojadas. Na Catalunha foi decretado o recolher obrigatório por causa da covid. E alguns catalães protestam, quando por exemplo só têm 15 minutos para beberem uma sangria num bar. Em vigiar e punir Michel Foucault analisou em detalhe a feição totalitária das medidas disciplinares a quem é cerceada a liberdade. Proibir a movimentação de alguém sempre foi uma prerrogativa do poder patriarcal.

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