quarta-feira, 30 de março de 2022

Cultura russa




Os russos e a sua cultura, que, a bem da verdade, é o resultado de uma série de combinações e sínteses da cultura de diversos povos. Originalmente, surgiu de uma interação dos nativos eslavos com a elite cultural da nobreza varega (viking) que ficou conhecido por Rus’ de Kiev. O elemento oriental já estava presente, pois aquele terreno originalmente tinha sido ocupado por ondas de povos das estepes como citas, hunos, avares e cazares. E quando os russos adotaram o cristianismo no século X, houve uma grande síntese com a cultura bizantina. Nos séculos seguintes, a religião ortodoxa seria considerada um dos grandes esteios definidores da cultura russa. O lado oriental sofreu um processo de unificação de identidade aquando da conquista dos mongóis, que se manteve sob o seu domínio entre os séculos XIII e XV.

O lado ocidental da Rússia teve depois na passagem do século XVII para o século XVIII um grande momento quando Pedro o Grande, fascinado com a civilização ocidental de cariz francês, tratou de o imitar levando para uma cidade que ergueu de raiz, Petersburgo, o que de mais esplendoroso havia no mundo. Mas a idealização da Europa pela Rússia foi profundamente abalada pela Revolução Francesa de 1789. O reinado jacobino do terror deitou por terra a crença da Rússia na Europa como força de progresso e esclarecimento. Parecia que uma onda de crimes e destruição devastaria a Europa, destruindo o centro de toda a arte e ciência e os preciosos tesouros da mente humana. Afinal de contas, a história era um ciclo inútil e não um caminho de progresso, no qual “verdade e erro, virtude e vício, se repetem constantemente”. Seria possível que “a espécie humana tivesse avançado tanto só para ser obrigada a cair de novo nas profundezas do barbarismo?

Criados para acreditar que da França só viriam coisas boas, os russos agora só viam o mal. Os seus piores temores pareciam confirmados pelas histórias de horror que escutaram dos "émigrés" que fugiram de Paris para São Petersburgo. O governo russo rompeu relações com a França revolucionária. Em termos políticos, a nobreza, antes francófila, virou francófoba, enquanto “os franceses” se tornavam sinónimo de inconstância e ateísmo, principalmente em Moscovo e nas províncias, onde as atitudes e os costumes políticos russos tinham sempre se misturado à convenção estrangeira. Em Petersburgo, onde a aristocracia estava totalmente mergulhada na cultura francesa, a reação contra a França foi mais gradual e complicada; houve muitos nobres e patriotas liberais que mantiveram as opiniões a favor dos franceses. As coisas só se complicaram a sério depois de 1812, das invasões napoleónicas. A Rússia entrou em guerra com a França em 1805. Mas até na capital houve um esforço consciente da aristocracia de se libertar do império intelectual dos franceses. O uso de galicismos passou a ser desdenhado nos salões de São Petersburgo. Os nobres russos trocaram Clicquot e Lafite por kvas e vodca, haute cuisine por sopa de repolho.

Nessa busca de uma nova vida baseada em “princípios russos”, o ideal do Iluminismo de uma cultura universal foi finalmente abandonado em troca do caminho nacional. “Que nós, russos, sejamos russos e não cópias dos franceses”, escreveu a princesa Dashkova: “que continuemos patriotas e mantenhamos o caráter dos nossos ancestrais.” Karamzin também renunciou à “humanidade” em nome da “nacionalidade”. Antes da Revolução Francesa, ele defendera a opinião de que “a principal coisa é sermos não eslavos, mas homens. O que é bom para o Homem não pode ser mau para os russos; tudo o que ingleses ou alemães inventaram para o bem da humanidade também me pertence, porque sou um homem.” Karamzin conclamava os colegas escritores a abraçar a língua russa e a tornarem-se quem são: "A nossa língua é capaz não só de elevada eloquência, de sonora poesia descritiva, como também de terna simplicidade, de sons de sentimento e sensibilidade. É mais rica em harmonias do que o francês; presta-se melhor às efusões da alma [...] Homem e nação podem começar com a imitação, mas com o tempo precisam tornar-se quem são para ter o direito de dizer: Existo moralmente!” 

Ali estava o brado de convocação de um novo nacionalismo que floresceu na época de 1812. No século XX a Revolução Russa de 1917 buscaria colocar o comunismo marxista como o verdadeiro ponto definidor ideológico da União Soviética. Fora as grandes transformações económicas e sociais, houve um forte experimentalismo na URSS na década de 1920. Mesmo depois da avalanche repressora do stalinismo na década de 1930, pequenos grupos de indivíduos realizaram trabalhos não ortodoxos na URSS nas décadas subsequentes, como as poetas Anna Akhmatova (1889-1966) e Marina Tsvetaeva (1892-1941), o escritor Pasternak (1890-1960), o cineasta Tarkovski (1932-1986), só para dar alguns exemplos. Basta relembrar dois factos conhecidos que denotam a existência de uma vanguarda artística não conformista na URSS ao longo de sua trajetória: a famosa ocasião em 1962, em que Khrushchev visitou uma exposição com artistas de vanguarda na galeria Manezh e, furioso, disse que aquilo era “uma merda”, e a própria existência da literatura dissidente samizdat nas décadas seguintes. Eram sinais de que a vanguarda existia e incomodava.

O movimento atraiu autores de outros países, como o brasileiro Jorge Amado e o chileno Pablo Neruda. Por outro lado, alguns autores russos produziram obras que não pertenciam ao realismo socialista. Mikhail Bulgakov (1891-1940) criaria a obra-prima 'O Mestre e Margarita'; Boris Pasternak (1890-1960) seria indicado para o prémio Nobel por 'Doutor Jivago'; Alexander Solzhenitsyn (1918-2008) – 'Um dia na vida de Ivan Denisovitch'; os poetas Yevgeny Yevtushenko, e especialmente Anna Akhmatova fariam poesia de alta qualidade que não se enquadrava no cânone estalinista. Isso para não falar dos autores emigrados, como Ivan Bunin (1870-1953), primeiro russo ganhador do Nobel de literatura. Inimigo das vanguardas, era considerado um escritor bastante tradicional e imigrou para o Ocidente na revolução.

Em grande medida, a imposição do novo paradigma empobreceu a variedade de estilos até então existente e gerou uma série de obras estereotipadas e laudatórias. Mas, mesmo após os anos 1930, literatura de boa qualidade podia ser encontrada na URSS. A mudança é formalizada em abril de 1934 no Congresso de Escritores Soviéticos, presidido por Máximo Gorki (1868-1936). Mesmo dentro do realismo socialista algumas obras muito interessantes foram geradas, como os romances Mãe, do próprio Gorki (considerada a primeira obra do realismo socialista), O Don Silencioso, de Mikhail Sholokhov (1905-1984), e Cimento, de Fyodor Gladkov (1883-1958). Isaac Babel (1894-1940) é considerado o primeiro grande escritor da revolução: O Exército de Cavalaria ou Cavalaria Vermelha (a depender da tradução), um livro de contos baseados nos acontecimentos pós-revolução, usou de imagens marcantes e formou mais de uma geração. Babel morreu fuzilado.

A Rússia da última década do século XX e início do século XXI é um somatório de todos esses vetores, amálgamas, sínteses e transformações. E um somatório internamente contraditório. Nela coexistem saudosistas da União Soviética, monarquistas, liberais ocidentalizados, eurasiáticos, nacionalistas dos eslavos ou nacionalistas pragmáticos, muitas vezes com conflitos entre si. 


Sem comentários:

Enviar um comentário