terça-feira, 22 de março de 2022

Guerra & guerra


Os cossacos que Clausewitz conheceu estavam muito mais próximos dos piratas saqueadores originais que os próprios andarilhos arrojados que Tolstói romantizaria em seus primeiros romances. O fogo na periferia de Moscovo em 1812, o que levou à conflagração da capital, estava bem dentro do espírito deles. Os cossacos continuavam a ser um povo cruel, e incendiar não estava entre os seus atos mais cruéis, embora fosse suficientemente cruel. Milhares de moscovitas ficaram sem teto em pleno inverno subártico. Na grande retirada que se seguiu, os cossacos demonstraram uma crueldade que fazia lembrar a razia que os nómadas das estepes deixavam na sua passagem no tempo das invasões mongóis.
Cavaleiros nómadas impiedosos cujos estandartes lançavam a sombra da morte por onde quer que suas hordas passassem.
 
Na retirada, as longas colunas do Grande Exército arrastaram-se enterradas até ao joelho na neve eram esperadas por esquadrões de cossacos que caíam rapidamente sobre os que se deixavam abater pela fraqueza; quando um grupo sucumbia, era dominado e aniquilado; e quando os cossacos alcançaram os remanescentes do exército francês que não conseguiram cruzar o rio Berezina antes que Napoleão mandasse queimar as pontes, o massacre foi em massa. O rio Berezina é um rio da Bielorrússia e afluente do Dniepre. Nas suas margens travou-se em novembro de 1812 a Batalha de Berezina na qual o exército de Napoleão sofreu pesadas perdas (cerca de 36 000 homens) na sua retirada da Rússia. "Berezina" tornou-se uma palavra usada na língua francesa como sinónimo de catástrofe. Mais de cem anos antes, 25 de junho de 1708, o exército do rei Carlos XII da Suécia havia já passado o rio Berezina durante a campanha contra Pedro o Grande da Rússia, na Grande Guerra do Norte.



Batalha de Berezina - Peter von Hess

Os limites da guerra civilizada são definidos por dois tipos humanos antitéticos, o pacifista e o “portador legal de armas”. Este último sempre foi respeitado, quando mais não seja por possuir os meios para fazer-se respeitar; o pacifista passou a ser valorizado nos 2 mil anos da era cristã. A reciprocidade deles aparece no diálogo entre o fundador do cristianismo e o soldado profissional romano que pedira que curasse um criado com a sua palavra milagrosa. Podemos supor que Cristo estava reconhecendo a posição moral do portador legal de armas, que deve entregar a sua vida por exigência da autoridade, e que, portanto, pode ser comparado ao pacifista disposto a entregar a sua vida em vez de violar a autoridade de seu próprio credo.

Com efeito, a cultura ocidental não seria o que é se não respeitasse ao mesmo tempo o portador legal de armas e a pessoa que considera o porte de armas intrinsecamente ilegal. A nossa cultura ocidental busca compromissos, e o compromisso ao qual chegou sobre a questão da violência pública é desaprovar a sua manifestação. O pacifismo foi elevado a um ideal; o porte legal de armas — sob um código rigoroso de justiça militar e dentro de um corpus de leis humanitárias — foi aceite como uma necessidade prática.

“A guerra como continuação da política” foi a fórmula que Clausewitz escolheu para expressar o compromisso estabelecido pelos Estados que conhecia. Mantinha-se o respeito pela ética dominante — de soberania absoluta, diplomacia ordenada e tratados legais —, ao mesmo tempo que se levava em conta o princípio superior do interesse de Estado. Se não se admitia o ideal de pacifismo, que o filósofo prussiano Kant acabava de traduzir da esfera religiosa para a política, com certeza distinguia-se claramente o portador legal de armas do rebelde, do pirata e do bandoleiro. Pressupunha-se um alto nível de disciplina militar e um grau imenso de obediência dos subordinados a seus superiores cumpridores da lei. Esperava-se que a guerra assumisse certas formas estreitamente definidas — cerco, batalha campal, escaramuças, incursões, reconhecimento, patrulha, postos avançados —, cada uma delas com suas próprias convenções reconhecidas. Pressupunha-se que as guerras tinham um começo e um fim. O que não se levava em conta de forma alguma era a guerra sem início nem fim.

A guerra endémica de povos sem Estado, ou mesmo em estádio pré-estatal, era a guerra dos bárbaros, em que não havia distinção entre portadores legais e ilegais de armas, uma vez que todos os homens eram guerreiros. Esta forma de guerra que prevalecera durante longos períodos da história da humanidade e ainda sobrevivia nas margens dos Estados civilizados. Com efeito, estas tropas irregulares eram postas ao serviço desses Estados mediante a prática comum de recrutamento, quer de cavalaria, quer de infantaria.

Assim, os oficiais dos Estados civilizados desviavam o olhar dos meios ilegais e incivilizados que esses guerreiros irregulares utilizavam para recompensar-se em campanha, bem como de seus métodos bárbaros de lutar; contudo, sem os serviços que ofereciam, os exércitos excessivamente treinados não seriam capazes de se manter em campo. Todos os exércitos regulares, até mesmo os da Revolução Francesa, recrutavam soldados irregulares para patrulhar, reconhecer e travar escaramuças por eles.  Os cossacos eram um dos casos militares mais notados. Seus patrões civilizados decidiram cobrir com um véu os seus hábitos de saquear, pilhar, assassinar, raptar, violar, extorquir e sistematicamente vandalizar. Preferiam não admitir que se tratava de uma forma de guerrear mais antiga e mais disseminada que aquela que praticavam.

Clausewitz viu de relance que a guerra não era totalmente o que ele afirmava ser. “Se as guerras dos povos civilizados são menos cruéis e destrutivas que as dos selvagens”, começava ele de forma condicional uma de suas mais famosas passagens. Trata-se de um pensamento que não levou adiante porque, com toda a considerável força filosófica de que dispunha, estava batalhando para formular uma teoria universal do que a guerra deveria ser, em vez de tratar do que a guerra realmente era e sempre fora. Nessa empreitada, obteve um alto grau de êxito. Na prática da guerra, é para os princípios de Clausewitz que o governante e o comandante supremo ainda se voltam; mas, para uma descrição fiel à realidade da guerra, a testemunha ocular e o historiador devem fugir dos métodos de Clausewitz, apesar de ele próprio ter sido testemunha ocular e historiador da guerra, alguém que deve ter visto e poderia ter escrito sobre muita coisa que não encontrou lugar em suas teorias.

Os cossacos eram soldados do czar e, ao mesmo tempo, rebeldes contra o absolutismo czarista. A história de suas origens foi chamada de mito, e não há dúvida de que eles as mitificaram ao longo do tempo. Contudo, a essência do mito é simples e verdadeira. Os cossacos — o nome deriva da palavra turca que significa homem livre — eram cristãos fugitivos da servidão aos senhores da Polónia, da Lituânia e da Rússia que preferiram se arriscar nas terras ricas, mas sem lei, da grande estepe da Ásia central. Na época em que Clausewitz conheceu os cossacos, o mito de seu nascimento em liberdade tinha crescido, mas diminuído na realidade. No início, tinham fundado sociedades genuinamente igualitárias — sem senhores, sem mulheres, sem propriedade, encarnação viva do bando de guerreiros livres e nómadas que constitui um ingrediente poderoso e eterno das sagas de todo o mundo. 

Em 1570, Ivan, o Terrível, teve de trocar pólvora, chumbo e dinheiro — três coisas que as estepes não produziam — pela ajuda dos cossacos para libertar prisioneiros russos da escravização muçulmana, mas antes do final de seu reinado começou a usar a força para trazê-los para dentro do sistema czarista. Seus sucessores mantiveram a pressão. Durante as guerras da Rússia contra Napoleão, formaram-se regimentos regulares de cossacos, uma contradição nos termos, embora acompanhasse a moda europeia de então de incorporar unidades de povos das montanhas, das florestas e de cavaleiros às diferentes ordens de batalha dos Estados. Em 1837, o czar Nicolau I completou o processo, representados no Corpo de Guarda Imperial por regimentos de cossacos do Don, dos Urais e do mar Negro, diferenciados de outras unidades de habitantes domesticados das fronteiras e montanheses do Cáucaso apenas por detalhes de seus uniformes exóticos.

De fato, até ao fim do regime czarista o governo russo preservou o princípio de tratar com as várias hostes de cossacos como se fossem sociedades de guerreiros livres, nas quais a responsabilidade de responder na chamada às armas recaía sobre o grupo e não sobre seus indivíduos. Ainda no início da Primeira Guerra Mundial, o ministro da Guerra russo contava com os cossacos para fornecerem regimentos, não soldados, perpetuação de um sistema em parte feudal, parte diplomático, parte mercenário, que numa variedade de formas provia os Estados com contingentes militares já treinados quase que desde o início da história da guerra organizada.

Na batalha de Balaclava, durante a guerra da Criméia de 1854, dois regimentos de cossacos foram enviados para enfrentar a carga da Brigada Ligeira; um oficial russo que observava registou que “assustados pela ordem disciplinada da massa da cavalaria britânica caindo sobre eles, os cossacos não sustentaram posição e, girando para a esquerda, começaram a atirar em suas próprias tropas numa tentativa de abrir caminho para a fuga. Quando a Brigada Ligeira foi expulsa do vale da Morte pela artilharia russa, os primeiros a se recuperar foram os cossacos e, fiéis à sua natureza, dedicaram-se à tarefa que se apresentava — recolher os cavalos abandonados pelos ingleses e colocá-los à venda.
 Apesar de sua conduta mercenária, não podiam ser chamados propriamente de mercenários, que são normalmente fiéis aos seus contratos.



Batalha de Borodino - Peter von Hess

Na Batalha de Borodino, diz-se que os corpos de infantaria de Ostermann-Tolstói ficaram diante do fogo à queima-roupa da artilharia por duas horas, “durante as quais o único movimento era a agitação das linhas provocada pelos corpos que caíam”. Sobreviver à matança não significava o fim do matadouro. Larrey, o cirurgião mais antigo de Napoleão, realizou duas centenas de amputações na noite seguinte a Borodino, e seus pacientes eram felizardos. Eugène Labaume descreveu “o interior das valas” que entrecruzavam o campo de batalha: “quase todos os feridos, por um instinto natural, tinham se arrastado para lá em busca de proteção [...] empilhados uns sobre os outros e nadando desamparadamente no próprio sangue, alguns pediam aos que passavam que os livrassem da sua miséria”.

Essas cenas de matadouro eram o resultado inevitável de uma forma de guerrear que fazia os povos que Clausewitz considerava selvagens, como os cossacos, fugirem quando ameaçavam envolvê-los, mas, se não as tivessem testemunhado, rirem quando alguém as descrevia. O treinamento europeu, quando demonstrado pela primeira vez por Takashima, o reformador militar japonês, a alguns samurais de alta patente em 1841, provocou escárnio; o mestre da artilharia disse que o espetáculo de “homens levantando e manipulando as suas armas todos ao mesmo tempo e com o mesmo movimento parecia que estavam participando de alguma brincadeira de criança”.

Na Ilíada de Homero eram guerreiros que lutavam corpo a corpo, para quem lutar era um ato de se exprimir, pelo qual um homem exibia não apenas a sua coragem, mas também a sua individualidade. Sobreviviam para lutar outro dia, mas não para ganhar a guerra, objetivo que não conseguiam entender.

 Os turcos também tinham uma maneira própria de lutar: avançavam numa carga desconexa com desdém fanático pelas baixas. Os filelenos argumentavam que, se os gregos não enfrentassem os turcos, jamais ganhariam uma batalha; os gregos objetavam que, se fizessem frente ao inimigo à maneira europeia, peito aberto aos mosquetes turcos, seriam todos mortos e perderiam a guerra de qualquer modo. No centro do filelenismo estava a crença de que os gregos modernos eram, sob sua sujeira e ignorância, o mesmo povo da Grécia antiga. O grego moderno é o descendente daqueles seres tão gloriosos que a imaginação quase se recusa a vê-los como pertencendo à nossa espécie, e ele herda muito da sensibilidade, da rapidez de concepção, do entusiasmo e da coragem deles. Mas os filelenos que entraram em um campo de batalha com os gregos não apenas abandonaram rapidamente a crença numa identidade comum entre os antigos e os modernos; os que sobreviveram para voltar à Europa, “quase sem exceção”, escreve o historiador do filelenismo William Saint Clair, “odiavam os gregos com asco profundo e maldiziam-se por sua estupidez de terem sido enganados”.

Os filelenos queriam acreditar que eles exibiriam a mesma tenacidade em ordem unida, na “batalha até a morte a pé” que os antigos hoplitas tinham demonstrado em suas guerras contra os persas. Foi aquele estilo de luta que, por caminhos tortuosos, veio a caracterizar o seu próprio estilo de guerrear na Europa ocidental. Eles esperavam ao menos que os gregos modernos se mostrassem dispostos a reaprender a tática de ordem unida, quando mais não fosse porque isso era a chave para libertarem-se dos turcos. Quando descobriram que não havia essa disposição — que os “objetivos de guerra” dos gregos se limitavam a conquistar a liberdade para continuar subsistindo pelo banditismo, mudando de lado quando lhes convinha, matando seus inimigos religiosos quando surgia a oportunidade, exibindo atavios de mau gosto, brandindo armas ferozes, enchendo suas bolsas com subornos desonrosos e nunca, nunca morrendo até o último homem, ou até o primeiro, se conseguissem —, aos filelenos restou a conclusão de que somente um rompimento na linhagem entre os gregos antigos e modernos poderia explicar o colapso de uma cultura heroica.

Todos nós achamos difícil tomar distância suficiente de nossa própria cultura para perceber como ela faz de nós, como indivíduos, o que somos. Para o homem ocidental moderno, com o seu compromisso com o credo da individualidade, essa dificuldade é tão grande quanto o foi para gente de outros lugares e épocas. Clausewitz era um homem de seu tempo, filho do Iluminismo, contemporâneo dos românticos alemães, um intelectual, um reformista prático, um homem de ação, um crítico de sua sociedade e um apaixonado crente na necessidade de mudá-la. Era um observador perspicaz do presente e um devoto do futuro. No que fracassou foi em ver quão profundamente enraizado estava em seu próprio passado, o passado de um oficial profissional de um Estado centralizado europeu. A guerra abarca muito mais que a política, que é sempre uma expressão de cultura, com frequência um determinante de formas culturais e, em algumas sociedades, é a própria cultura.

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