sexta-feira, 4 de março de 2022

Kharkiv em conflitos pretéritos





Em Kharkiv, seria preciso encontrar imediatamente roupas quentes. Na estrada, o céu estava limpo, azul, nuvens de passarinhos rodopiavam nos bosques; perto das aldeias, os camponeses ceifavam os juncos dos lagos gelados para cobrirem as suas isbás. A estrada em si continuava perigosa: o frio, em determinados lugares, congelara as cristas caóticas de lama levantadas pela passagem dos blindados e camiões, e aquelas arestas endurecidas faziam os veículos derraparem, rasgando os pneus, às vezes chegando a provocar capotagens quando um motorista fazia mal uma curva e perdia o controlo do carro. Em outros trechos, sob uma fina camada que se rompia sob as rodas, a lama continuava viscosa e traiçoeira.

Nos arredores estendiam-se a estepe vazia, os campos cultivados, algumas florestas. Eram cerca de 120 Km de Poltava a Kharkiv: a viagem demandava um dia. Entrava-se na cidade por subúrbios devastados, paredes calcinadas, reviradas, derrubadas, por entre as quais, rapidamente retiradas, agrupavam-se em pequenos montes as carcaças retorcidas e queimadas do material bélico desperdiçado na vã defesa da cidade. O Vorkommando instalara-se no Hotel International, que dava para uma imensa praça central, dominada, no fundo, pelo aglomerado construtivista do Dom Gosprom, prédios cúbicos, dispostos em arco de círculo, com duas arcadas altas e retangulares, e por um par de arranha-céus, espantosa construção para aquela grande cidade preguiçosa, com suas casas de madeira e velhas igrejas czaristas.

A Prefeitura, incendiada durante os combates, exibia fachadas maciças e renques de janelas abertas. No centro da praça, um imponente bronze de Lenine dava as costas para os dois blocos e, indiferente aos veículos e blindados alemães estacionados aos seus pés, conclamava os passantes com um gesto largo. No hotel reinava a confusão; a maioria dos quartos tinha os vidros quebrados, um frio insuportável penetrava pelos vãos.

O Standartenführer, o médico Erwin Weinmann, contrastava positivamente com o seu predecessor. Era um homem jovem, fisionomia preocupada, quase triste, autêntico nacional-socialista por convicção. Assim como o Dr. Thomas, que também era médico de profissão, trabalhava há vários anos na Staatspolizei. Causou imediatamente boa impressão. “Passei vários dias em Kiev com o Brigadeführer Thomas”, disse antes de qualquer coisa, “e ele me explicou as imensas dificuldades que os oficiais e os homens deste Kommando tiveram que enfrentar. Saibam que não foi em vão e que a Alemanha está orgulhosa dos senhores. Vou passar os próximos dias familiarizando-me com o trabalho do Kommando; com esse objetivo, gostaria de ter uma conversa franca e livre com cada um de vós, individualmente.”

Na véspera da chegada de Weinmann a Kharkiv, Von Reichenau, depois da sua corrida matinal sob 20 graus negativos, pifou. Segundo alguns, vítima de um enfarte do miocárdio; segundo outros de uma embolia cerebral. Weinmann soubera da novidade no comboio, por um oficial do AOK. Como Von Reichenau ainda vivia, o Führer ordenara que ele fosse levado de volta para a Alemanha; o avião caiu perto de Lemberg, tendo sido ainda encontrado preso no assento, bastão de Feldmarschall na mão, triste fim para um herói alemão. Depois de algumas hesitações, o Generalfeldmarschall Von Bock foi designado para o seu lugar; no mesmo dia de sua nomeação, os soviéticos, procurando capitalizar sucessos em Moscovo, lançavam uma ofensiva a partir de Izyum, ao sul de Kharkiv, em direção a Poltava. Fazia agora 30 graus negativos, não havia quase mais nenhum veículo circulando, o abastecimento tinha que ser feito em vagão panje e a Rollbahn perdia mais homens que as divisões na linha da frente.

Já os russos alinhavam divisões de um temível novo tanque, o T-34, invulnerável ao frio e que aterrorizava os Landser, mas não resistia aos 88 dos alemães. Paulus transferiu o AOK de Poltava para Kharkiv, o que animou um pouco a cidade. Os russos certamente pretendiam instalar um cerco a Kharkiv, mas a sua tenaz norte nunca saiu do lugar; a tenaz sul investiu contra as linhas alemãs e foi contida com dificuldade, perto do fim do mês, em frente a Krasnograd e Paulograd. Os atentados, apesar da feroz repressão, multiplicavam-se; sem dúvida a escassez que grassava na cidade contribuía para isso. O Sonderkommando não foi poupado, um escritório da Wehrmacht, no Maïdan Tereleva, no centro da cidade. Nas proximidades, três velhas kolkhozianas, sentadas em caixotes, permaneciam na expectativa de vender alguns tristes e murchos legumes; na praça, ao pé do monumento bolchevique à libertação de Kharkiv (a de 1919), meia dúzia de crianças brincava, não obstante o frio, com uma bola de pano.

Weinmann mostrou-se mais preocupado com a estupidez dos Orpo do que com a morte:

“Tentamos melhorar as nossas relações com a população local, e matamos os seus filhos? Teremos que julgá-los.” Fui cético: 
“Vai ser difícil, Herr Standartenführer. A reação deles foi infeliz, mas compreensível. Além disso, faz meses que eles recebem ordens para fuzilar crianças; não faria sentido puni-los pela mesma coisa.”
 "Não é a mesma coisa! As crianças que executamos eram condenadas! Estas eram crianças inocentes.”
“Se me permite, Herr Standartenführer, a base em que são decididas as condenações torna essa distinção bastante arbitrária.” Esbugalhou os olhos e suas narinas fremiram de raiva; subitamente, recompôs-se e se acalmou. 
“Vamos mudar de assunto, Hauptsturmführer. De toda a forma, há vários dias queria conversar consigo. Acredito que deva estar muito cansado. O Dr. Sperath acha que está à beira de um esgotamento nervoso.”
“Perdão, Herr Standartenführer, mas permita-me contrariar essa opinião. Sinto-me muito bem.” Ofereceu-me um cigarro e acendeu outro para si. 
“Hauptsturmführer, sou médico por formação. Também sei reconhecer determinados sintomas. O senhor está, como se diz vulgarmente, completamente consumido. Não é o único, aliás: quase todos os oficiais do Kommando estão no limite. Por outro lado, o inverno já provocou uma forte queda de atividade e estamos em condições de funcionar com efetivos reduzidos por um ou dois meses. Muitos oficiais vão ser substituídos ou dispensados com licença médica prolongada. Os que têm família voltarão para a Alemanha. Os demais, como o senhor, irão para a Crimeia, para sanatórios da Wehrmacht. Parece que lá é muito bonito. Poderá inclusive tomar um banho daqui a algumas semanas.” 
Um sorrisinho insinuou-se em seu rosto estreito e ele me estendeu um envelope. 
“Aqui estão as suas autorizações de viagem e seus certificados. Está tudo em ordem. O senhor tem dois meses, depois veremos. Bom descanso.”

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