quarta-feira, 9 de março de 2022

Rus’ de Kiev





Rus’ de Kiev foi uma confederação de tribos eslavas do leste europeu que se estendeu entre os séculos IX e XIII, e que deu origem à Rússia, Bielorrússia e Ucrânia dos dias de hoje. Estendia-se assim do Mar Báltico ao Mar Negro. O primeiro líder a começar a unir as terras eslavas do Leste foi Oleg [882 – 912]. O Estado declinou no final do século XI e durante o XII desintegrou-se em várias potências regionais rivais. Foi ainda mais enfraquecido por fatores económicos, com o colapso dos laços comerciais com o Império Bizantino devido ao declínio de Constantinopla e a diminuição das rotas comerciais que o acompanhavam por seu território. Finalmente caiu à invasão mongol na década de 1240.

Rurik (em antigo eslavo oriental) Rodrigo de Ladoga, foi o mítico fundador varegue da monarquia russa, dando o nome à dinastia ruríquida, primeira dinastia imperial de czares russos. No século IX, a região próxima aos lagos Ladoga e Onega encontrava-se em disputas entre as mais de 500 cidades fundadas por diversas tribos eslavas que ali habitavam. Nesse período, segundo o registro das Crónicas Nestorianas, comerciantes suecos chamados varegues foram convidados a governar a região, pondo fim ao caos instalado. Teria dito à população: "A nossa terra é grande e rica, mas não há ordem dentro dela. Venham, pois, governar-nos como reis." Em 862, Rurik, chefe dos varegues, tomou Novgorod, uma das cidades eslavas mais promissoras, localizada nas margens do Rio Volga. Rurik morreu em 879, deixando Oleg como seu sucessor.

É quase lenda, a narrativa que diz que algumas tribos dos eslavos orientais convidaram três irmãos varegues (nome dado para os vikings da região dessa época) para os governarem na década de 860. Isso porque precisavam de ajuda para manter a independência e governar adequadamente diante de inimigos. Após dois anos, com a morte de dois dos irmãos, o mais velho, Rurik, passou a ser o único soberano inaugurando a dinastia que governaria Rus’ a partir de Novgorod. Oleg (cunhado de Rurik e que governou como uma espécie de regente do filho menor de Rurik, Igor’) conquistou a cidade de Kiev por volta de 882 inaugurando assim a Rus’ de Kiev. Rus’ seria assim o resultado da mistura da elite governante varegue com os eslavos orientais nativos. Essa gênese está envolta em controvérsia.

A origem comum e o facto de Kiev ter sido o berço da civilização russa atual explicam muito do caráter ambíguo (de amor/ódio) da relação existente hoje entre a Rússia e a Ucrânia. Parte dos ucranianos, principalmente os que vivem no leste do país, deseja ter laços íntimos com o “Grande Irmão” russo, ao passo que a outra metade, geralmente localizada no oeste do país, quer evitar a dependência e viver a sua própria vida.

Há dúvidas históricas. Historiadores soviéticos ou russos nacionalistas tendem a diminuir o papel dos varegues na formação de Rus’ dizendo terem sido eles apenas uma presença episódica que não teria alterado as dinâmicas internas já vigentes entre os próprios eslavos orientais. Sabemos que mais tarde, a partir do século XVI, se formará um Império Czarista, centrado em Moscovo, que, ao contrário dos impérios ultramarinos ocidentais, será basicamente um império terrestre contíguo a partir de um avanço para o Oriente. Vários episódios desse avanço serão narrados não como uma conquista a partir de Moscovo, mas sim como uma ocupação de espaços vazios ou formação de alianças a partir de convites dos nativos. Assim, a grande expansão para a Sibéria (no século XVII) será vista como migração de russos para uma imensa área vazia e despovoada. A incorporação da Geórgia ao Império Czarista em 1801 foi narrada como um pedido de intervenção do próprio rei georgiano Jorge XII para poder se livrar das constantes ameaças de invasão dos persas e turcos otomanos. Realmente, como a Geórgia e a Rússia eram da religião ortodoxa, e os georgianos estavam sob constante ameaça de conquista ou saque pelos persas e turcos muçulmanos, os governantes georgianos estavam há algum tempo pensando na aliança com a Rússia cristã ortodoxa como o mal menor.

É assim que Putin se serve do mito da incorporação amistosa aos impérios russos, vendo como uma contrapartida da missão civilizadora que as metrópoles ocidentais teriam exercido em suas colónias no ultramar. Convém lembrar que no século IX, e por um bom tempo, a Europa se recuperava das invasões e migrações bárbaras que destruíram o Império Romano do Ocidente no século V e se encontrava ainda, em grande parte, em estado de desorganizada fragmentação em feudos isolados e de economia de subsistência. Seria apenas a partir do século XII que a Europa Ocidental (as cidades, o comércio e as universidades), se reergueria com força, retomando numa lenta ascensão os centros da civilização do tempo da Antiguidade Grega e Romana.

Então, se na época, a florescente da Rus’ de Kiev não ficava atrás da Europa Ocidental, porque terá sido que a Rus’ de Kiev passou a ser mais atrasada que o Ocidente? A razão é explicada pelo fenómeno a que os ocidentais deram o nome de Renascimento. Passou-se de uma visão religiosa e divina para uma visão mais racional e antropocêntrica – que teria feito com que a Europa Ocidental tivesse um progresso científico, tecnológico e económico mais adiantado que outras regiões. Foi o domínio mongol e a mentalidade asiática que se abateu sobre a Rússia por dois séculos (XIII a XV) que impediu os laços com o Ocidente. O importante centro do comércio entre Ocidente e Oriente, que se fazia pelas largas rotas dos rios Volga e Dniepre, entrou em decadência. Após a queda do Império Romano do Ocidente, o Império Romano do Oriente (Bizâncio) ainda perduraria por dez séculos e exerceria forte influência na região de Rus’. Desde o início, o comércio entre os dois Estados foi forte e extremamente vital para Rus’, quando dominava a rota de comércio entre Ocidente e Oriente. Então, surgiu o passo crucial que marcaria uma aproximação civilizacional enorme entre eles: a cristianização de Rus’ no reinado de Vladimir, o Grande, no século X. A adoção do cristianismo no século X, durante o reino de Vladimir, o Grande, teve consequências fundamentais.

A Rus’ de Kiev adotou o cristianismo ortodoxo no século XI, quando houve o cisma definitivo que levaria à separação das igrejas cristãs do Ocidente (baseada no papa em Roma) e do Oriente (baseada em Constantinopla, no Império Bizantino). Moscovo seguiria Bizâncio, com quem tinha ligações históricas, e não Roma. O imperador Constantino, o Grande, que havia se tornado cristão e legalizado o cristianismo no império, fundou, em 330, uma nova cidade, que chamou de A Nova Roma de Constantino (Constantinopla). A cidade passaria a ser o grande centro político desse Império Romano do Oriente em gestação. O Império Romano do Oriente seguiria até o século XV sobrevivendo à queda do Império Romano do Ocidente pelas invasões bárbaras em 476. A Rus’ de Kiev até ali não tinha uma religião central: ao lado de figuras históricas ou grupos ocasionalmente convertidos às diferentes religiões, o grosso da população adorava diferentes deuses pagãos, dependendo da região. A adoção de uma religião oficial central monoteísta seria um fator integrador do desunido e descentralizado Estado de Kiev. Isso foi bem percebido por Vladimir. E a ligação religiosa com Bizâncio seria a rota mais natural e efetiva para tal, visto os estreitos laços já existentes entre os dois Estados. Vladimir se casou com Ana, a irmã dos imperadores bizantinos e, em 988, ordenando a destruição de todos os ídolos pagãos, batizou-se cristão, com seus nobres, nas águas do rio Dniepre, e determinou que toda a população de Rus’ fizesse o mesmo. Igreja e Estado se tornariam historicamente imbricados em uma relação simbiótica na Rússia, com preponderância para o monarca temporal. Uma missa ortodoxa é bastante intricada em seus detalhes e geralmente é, em sua maior parte, cantada. Os coros são importantíssimos. Os fiéis acompanham a missa basicamente em pé, sem bancos para sentar. Algumas missas, em datas especiais, como as de Ano-Novo, podem durar cinco horas ou mais. Pelas pesquisas de opinião, além dos 70% ortodoxos, há 6% de muçulmanos, 12% de ateus e menos de 1% de budistas, católicos, protestantes ou judeus. Frequentemente, as divisões religiosas se fazem em bases étnicas. Os ortodoxos estão maioritariamente entre os eslavos. O islão se concentra na região Volga-Ural e no norte do Cáucaso, onde tradicionalmente viveram os povos de origem turca. E a maioria dos budistas está nas três regiões de origem mongólica ou turco-mongólica: Buriátia, Calmúquia e Tuva.




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