terça-feira, 29 de março de 2022

Lisboa e os refugiados no tempo da Segunda Guerra Mundial



Durante os anos em que durou a Segunda Guerra Mundial, Lisboa esteve no centro das atenções mundiais. Era a única cidade europeia onde tanto aliados como as potências do Eixo operavam abertamente. A história de Lisboa situava-se no contexto de um país tentando a todo o custo manter a sua autoproclamada neutralidade, mas que, na verdade, estava cada vez mais preso no meio de guerras económicas e navais, entre aliados e alemães. Não foi, entretanto, uma história convencional da Segunda Guerra Mundial. Em vez disso, houve intrigas, traições, oportunismo e jogo duplo, tudo acontecendo na Cidade da Luz e ao longo da sua idílica costa atlântica, do Estoril até Cascais.

No final, um país europeu relativamente pobre não apenas sobreviveu à guerra fisicamente intacto, como emergiu nos finais de 1945 muito mais rico do que era quando o conflito teve início, em 1939. Embora boa parte dessa riqueza fosse considerada pelos Aliados como “ganhos mal obtidos”, os portugueses tiveram permissão para conservar quase tudo. As realidades políticas da Guerra Fria, pós-1945, reafirmaram a importância do país e das suas ilhas atlânticas para a causa das potências ocidentais com a cedência da base das Lages nos Açores aos Americanos.

Lisboa foi a cidade onde um aparente complô alemão para raptar o duque e a duquesa de Windsor se viu frustrado. Eles estavam entre os refugiados mais exóticos, muitos deles judeus, que afluíam para lá em busca de passagem para os Estados Unidos ou a Palestina em um dos navios que zarpavam do porto neutro, ou, para os muito ricos, no serviço do “barco voador” da Pan-American Boeing Clipper, rumo a Nova York, via Açores. A maioria dos refugiados, entretanto, teve que esperar meses, ou até anos, na cidade antes de conseguir passagem. Fugindo dos alemães depois da queda da França, no verão de 1940, muitos refugiados sobreviveram graças a uma rede clandestina de apoio financeiro e organizacional, que se originava dos escritórios de judeus americanos ricos na cidade de Nova York. Os não tão afortunados tiveram que contar com a limitada ajuda dos britânicos, das autoridades portuguesas e das organizações de resgate dirigidas localmente.


Agentes aliados e alemães operavam abertamente na cidade, monitorando cada movimento do “inimigo”. Seu papel era registrar movimentos de embarque no agitado porto de águas profundas de Lisboa, espalhar propaganda e interromper o fornecimento de mercadorias vitais ao inimigo. Entre os agentes em Lisboa, estava um jovem, Ian Fleming, ocupado em arquitetar a Operação Golden Eye e jogar o vinte e um no cassino do Estoril – cenário que mais tarde serviria de inspiração para um filme de James Bond. O Iberian Desk, da Special Operations Executive (SOE), a comissão executiva de operações britânica, era dirigida pelo brilhante espião chefe, e traidor, Kim Philby, que, de Londres, controlava os agentes britânicos que operavam na cidade. Os escritores Graham Greene e Malcolm Muggeridge trabalhavam na mesma secretaria de Philby, antes de Muggeridge ser sucintamente transferido de posto para Lisboa e, no final, para as colónias portuguesas.

Enquanto os agentes britânicos e alemães se vigiavam uns aos outros, seus movimentos eram, por sua vez, seguidos de perto e registados pela polícia secreta portuguesa do capitão Agostinho Lourenço, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE). Os relatórios e decisões de Lourenço determinavam que atividades de espionagem na cidade eram, ou não, toleradas pelas autoridades. Como muitos agentes secretos britânicos, alemães e italianos, e jornalistas (entre eles o correspondente local do Times, de Londres) descobriram à própria custa, que tentar contrariar o capitão Lourenço era abreviar severamente a sua estadia em Portugal.

Lisboa era também o fim da linha para prisioneiros de guerra aliados (os POWs) que conseguiam escapar e chegavam à cidade para ser embarcados de volta para a Inglaterra nos voos operados pela BOAC, três vezes por semana, de Lisboa para Whitchurch, perto de Bristol. As listas de passageiros desses voos eram um 'Quem É Quem' da rede de espiões mais importantes na cidade, assim como industriais aliados de caráter duvidoso, envolvidos na guerra do comércio com os alemães. A competição por lugares nos aviões era intensa, com várias agências britânicas lutando pelo limitado número de assentos. Houve casos também em que ricos membros da grande comunidade inglesa de Lisboa foram flagrados tentando usar o serviço para transportar suas criadas. O tão amado ator britânico de Hollywood, e astro de 'E o vento levou', Leslie Howard, embarcaria fatalmente em um desses voos. 

Agentes aliados e do Eixo operavam no aeroporto 24 horas por dia, subornando funcionários da Alfândega para obter acesso às cargas e às listas de passageiros do inimigo. Tanto a BOAC como a Lufthansa operavam voos de saída do aeroporto, com suas aeronaves estacionadas quase lado a lado na pista. Escrevendo em 1944, o oficial chefe de operações da BOAC na cidade descreveu o cenário de todos os dias no aeroporto de Lisboa como igual ao do filme Casablanca, porém 20 vezes pior. Na escuridão da noite, o aeroporto de Lisboa era altamente suscetível à névoa que vinha do rio, o que contribuía para a sua atmosfera de mistério.

Figura central na história de Lisboa é António de Oliveira Salazar, o célebre ditador do Estado Novo. Para Salazar, a Segunda Guerra Mundial era um desafio potencialmente letal ao regime, e para Portugal como um todo. Tamanha foi a sua concentração em conduzir Portugal durante a guerra que, além de ser o primeiro-ministro, presidente do Conselho como ele preferia chamar, enquanto durou o conflito também foi ministro dos Negócios Estrangeiros, ministro da Guerra, ministro do Interior e, durante a primeira parte da guerra, ministro das Finanças. Salazar considerava como missão pessoal, e desafio, impedir que Portugal fosse arrastado para a guerra e repetisse os erros da Primeira Guerra Mundial.

Salazar acreditava que a Segunda Guerra Mundial representava duas grandes ameaças ao país: uma potencial invasão alemã, ou espanhola, e a possibilidade de perder o Império. Portugal havia apoiado Franco na Guerra Civil Espanhola. Lisboa fora usada como um porto de abastecimento para as forças de Franco, e Salazar enviara brigadas portuguesas para lutar a seu lado. Apesar disso, ainda havia em Lisboa um sentimento de que Franco e alguns de seus principais defensores alimentavam ambições territoriais em relação a Portugal. 

A mudança na ordem de prioridades de Salazar durante a Segunda Guerra Mundial encaixou-se em dois períodos bem distintos. A primeira parte da guerra, 1939-1942, foi dedicada a impedir a ameaça de invasão pelo Eixo. A segunda, 1943-1945, a lidar com as crescentes exigências dos aliados em relação a Portugal, em particular às ilhas portuguesas no Atlântico (os Açores) – onde tanto britânicos como americanos planeavam invasões secretas, caso Portugal não cedesse às suas exigências. Embora, no início, Salazar temesse uma vitória dos alemães, com o desenvolvimento da guerra ele foi ficando cada vez mais apreensivo com as perspectivas de uma vitória total dos Aliados. Duas questões o preocupavam: o que esse resultado significaria para Portugal em relação às colónias; e, igualmente preocupante, o que significaria em termos do poder da União Soviética.

Para Salazar o maior inimigo e ameaça à Europa como um todo, não era o nazismo, mas o comunismo e especificamente a União Soviética. Salazar demonstrou mentalidade de Guerra Fria bem antes de a Cortina de Ferro cair sobre a Europa oriental. Ele acreditava que a oposição comunista portuguesa interna usaria a guerra (como realmente fez em 1944/1945 com greves e protestos de massa) como um meio para desafiá-lo. Em diferentes momentos durante a guerra, Salazar também suspeitou que o mais antigo aliado de Portugal, a Grã-Bretanha, preferiria ver seu regime autoritário pelas costas e substituí-lo por um governo mais democrático, associado à volta da monarquia portuguesa.

Um elemento crucial, no papel de Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial, e que dominou o pensamento de Salazar durante o conflito, foi o económico. Em Portugal, extraía-se tungsténio, o famoso volfrâmio, um ingrediente vital à máquina de guerra alemã. Em 1943, ambos os lados dependiam quase totalmente do tungsténio português e espanhol para manter a indústria de armamento. Salazar levava a sério a ameaça alemã. A exportação de tungsténio estava condicionada a pagamentos em ouro, e, assim, outra camada de intrigas introduziu-se em Lisboa. Durante a guerra, o ouro era uma forma de pagamento bem mais segura do que o papel-moeda. Mas os Aliados contestavam a origem de boa parte do ouro. Argumentavam que o metal havia sido saqueado pelos alemães dos países que haviam ocupado, e mais tarde subtraído às vítimas do Holocausto. No final da guerra os nazis contrabandearam ouro para Lisboa que depois era encaminhado para o Brasil, e daqui disperso pela América do Sul para ajudar a financiar comunidades nazis pós-guerra na região. Numa constrangedora revelação, a Igreja Católica em Portugal foi forçada a admitir que as obras de reconstrução do santuário de Fátima foram pagas com barras de ouro dos nazis que a igreja havia misteriosamente adquirido do Banco de Portugal.

Depois da guerra, os Aliados, embora insistindo que os atos do governo português, ao vender tungsténio tinham, com efeito, prolongado a guerra, não fizeram Portugal devolver o ouro que o país recebera em pagamento. Pelo contrário, chegou-se a um acordo tácito segundo o qual Portugal podia ficar com quase todo o ouro em troca de permitir aos Estados Unidos o acesso contínuo a uma base aérea nos Açores. A decisão dos Aliados estava em nítido contraste com a política de linha dura adotada em relação a outros países neutros, que haviam recebido ouro da Alemanha e foram obrigados e devolver praticamente tudo.

Para Portugal, e para o regime, a guerra representou um desafio existencial tão grande quanto seria uma batalha literal por sua vida, mesmo que na prática não tenha havido nenhum campo de batalha no país. O drama era manobrar Portugal para longe das atenções das potências em guerra. Foi uma política de neutralidade no fio da navalha, um jogo de póquer para o futuro. E, em Salazar, Portugal tinha um jogador tão astuto quanto qualquer uma das nações beligerantes. Em 1945, Lisboa, e o país em geral, não apenas emergiu fisicamente incólume, mas também muito mais rica. Salazar pôde continuar no poder em Portugal, até que um acidente vascular cerebral o incapacitou em 1968, levando-o finalmente à morte em 1970. O ouro permaneceu em grande parte intocado em contas bancárias portuguesas espalhadas pelo mundo. A Lisboa de Salazar safou-se através dos estrangeiros que deambularam pelas vielas sombrias, refúgios de guerra, ao ponto de ter escapado ao horror que outras cidades maiores da Europa não conseguiram.

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