sexta-feira, 18 de março de 2022

Suponhamos Eichmann em família, entre amigos



Eichmann cumprira o prometido: ao voltar de Lichtenfeld, no fim da tarde, deixara ao amigo um grande envelope lacrado e carimbado GEHEIME REICHSSACHE! Continha um maço de documentos acompanhado de uma carta datilografada; havia também um bilhete manuscrito de Eichmann convidando o amigo a ir à sua casa no dia seguinte à noite. O amigo, levado por outro amigo, parou no caminho para comprar flores — um número ímpar, como aprendera a fazer na Rússia — e chocolate.

Na Kurfürstenstrasse, Eichmann tinha o seu apartamento numa ala anexa ao seu gabinete, adaptada também para oficiais solteiros de passagem. Abriu a porta ele mesmo, à paisana: 

“Ach! Sturmbannführer Aue. Queria ter dito para o senhor não vir de uniforme. É uma noite muito simples. Enfim, não faz mal. Entre, entre.” 

Apresentou-o à sua mulher, Vera, uma austríaca de personalidade murcha, mas que corou de prazer e deu um sorriso encantador quando ele estendeu as flores com uma mesura. Eichmann mandou dois de seus filhos se alinharem, Dieter, que devia ter seis anos, e Klaus. O pequeno Horst já estava a dormir, disse Frau Eichmann. Conduziram-no ao salão, onde já havia diversos homens e mulheres, de pé ou sentados em sofás. Estavam presentes o Hauptsturmführer Novak, um austríaco de origem croata com traços rígidos e alongados, mas curiosamente desprezível; um violinista; e alguns outros todos colegas de Eichmann, com suas esposas.

“Noto que cultiva o espírito de camaradagem no seio de sua secção.” — “Como pode ver. Gosto de ter relações cordiais com os meus subordinados. Que quer beber? Um pequeno schnaps? Krieg ist Krieg...”. Peguei o copo e o ergui: “Desta vez, bebo à saúde de sua encantadora família.” Ele estalou os calcanhares e inclinou a cabeça: “Obrigado.” Conversamos um pouco, depois Eichmann me levou até ao aparador para mostrar uma fotografia com uma moldura preta, representando um homem ainda jovem de uniforme. “Seu irmão?”, perguntei. — “É” fitou-me com o seu curioso aspeto de pássaro, particularmente acentuado sob aquela luz pelo nariz adunco e as orelhas de abano. “Imagino que nunca o tenha visto por lá...” Citou uma divisão e balancei a cabeça: “Não. Cheguei bem tarde, depois do cerco. E conheci pouca gente.” — “Ah, entendo. Helmut caiu durante uma das ofensivas de outono. Não sabemos as circunstâncias exatas, mas recebemos uma notificação oficial.” — Aquilo foi um árduo sacrifício. Ele esfregou os lábios: “Sim. Esperamos que não tenha sido em vão. Mas acredito no génio do Führer.”




Frau Eichmann servia bolos e chá; Günther chegou, pegou uma chávena e se aninhou num canto para beber, sem falar com ninguém. Eu o observava furtivamente enquanto os outros conversavam. Era um homem visivelmente muito orgulhoso e cioso de sua postura opaca e fechada, que ele erigia como uma crítica muda perante seus colegas mais loquazes. Diziam-no filho de Hans F.K. Günther, decano da antropologia racial alemã, cuja obra tinha então imensa influência; se era verdade, este podia sentir-se orgulhoso de seu rebento, que passara da teoria à prática. Foi embora ao fim de trinta minutos, despedindo-se displicentemente. Era hora da música: “Sempre antes do jantar”, Eichmann fez questão de me dizer. “Depois de comer nos concentramos demais na digestão para poder tocar bem.” Vera Eichmann pegou a viola e outro oficial tirou um violoncelo do estojo. Tocaram dois dos três quartetos de cordas de Brahms, agradáveis mas de pouco interesse para o meu gosto; a execução era convencional, sem grandes surpresas: apenas o violoncelista tinha um talento especial. Eichmann tocava lenta e metodicamente, os olhos focados na sua partitura; não cometia erros, mas parecia não compreender que aquilo não bastava. Lembrei então do seu comentário da antevéspera: “Boll toca melhor que eu, e Heydrich tocava melhor ainda.” Enfim, talvez ele reconhecesse isso e aceitasse seus limites, extraindo prazer do pouco de que era capaz.

Aplaudi entusiasticamente; Frau Eichmann pareceu particularmente lisonjeada com isso. “Vou colocar as crianças para dormir”, disse. “Depois iremos para a mesa.” Pegamos uma taça enquanto a esperávamos: as mulheres comentavam o racionamento ou os boatos, os homens as últimas notícias, pouco interessantes, pois a linha da frente permanecia estável e nada acontecera desde a queda de Túnis. O ambiente era informal, gemütlich à moda austríaca, um pouquinho exagerado. Depois Eichmann nos convidou para passarmos à sala de jantar. Designou pessoalmente os lugares, colocando-me à sua direita, na ponta da mesa. Abriu algumas garrafas de vinho do Reno, e Vera Eichmann trouxe um assado com um molho de bagas e ervilhas. Isso me fez esquecer a cozinha intragável de Frau Gutknecht e até mesmo a cantina frugal da SS-Haus. “Delicioso”, cumprimentei Frau Eichmann. “A senhora é uma cozinheira fora de série.” — “Ah, tenho sorte. Volta e meia Dolfi encontra iguarias raras. As lojas estão quase vazias.”

“Estalinegrado? Mas porque foi meter-se lá? Não estava bem aqui? Aliás, onde fica isso?” 

Eichmann ria e se engasgava com o vinho. Eu prosseguia: “Um dia, de manhã, saio junto com ela. Vemos passar um portador de estrela, provavelmente um Mischling privilegiado. E eis que ela exclama: "Oh! Veja, Herr Offizier, um judeu! Ainda não usou o gás com esse aí?” Todos riam, Eichmann chorava de rir e escondia o rosto no guardanapo. Apenas Frau Eichmann mantinha a seriedade: quando me dei conta, parei. Ela parecia querer fazer uma pergunta, mas se conteve. Para me recompor, servi mais vinho a Eichmann: “Beba, vamos.” Ele ainda ria. A conversa mudou de tom e comi; um dos convidados contava uma história engraçada sobre Göring.

Eichmann assumiu um ar grave e dirigiu-se a mim: “Sturmbannführer Aue, o senhor estudou. Queria fazer-lhe uma pergunta, uma pergunta séria.” Fiz-lhe sinal com o garfo para continuar: “Leu Kant, suponho... Neste momento”, prosseguiu esfregando os lábios, “estou lendo a Crítica da Razão Prática. Naturalmente, um homem como eu, quero dizer, sem formação universitária, não consegue entender tudo. Mas mesmo assim dá para entender determinadas coisas. E refleti muito na questão do imperativo kantiano. Estou certo de que concorda comigo quando digo que todo o homem honesto deve viver segundo esse imperativo.” Bebi um golo de vinho e concordei. Eichmann continuava: “O imperativo, tal como o compreendo, diz: O princípio da minha vontade individual deve ser tal que possa se tornar o princípio da Lei moral. Agindo, o homem legisla.” 

Limpei a boca: “Acho que sei aonde quer chegar. Está-se perguntando se nosso trabalho é pautado pelo imperativo kantiano.” — “Não é só isso. Mas um dos meus amigos, que também se interessa por esse género de questões, afirma que em tempos de guerra, em virtude, digamos, do estado de exceção decorrente do perigo, o imperativo kantiano é suspenso, pois, naturalmente, o que desejamos fazer ao inimigo não desejamos que o inimigo nos faça, e, portanto, o que fazemos não se pode tornar a base de uma lei geral. É a opinião dele, veja bem. Ora, eu, da minha parte, sinto que ele está errado e que na verdade, por nossa fidelidade ao dever, de certa forma por obediência às ordens superiores... precisamos justamente empenhar ainda mais nossa vontade no sentido de cumprir as ordens. Para vivê-las de maneira positiva. Mas ainda não descobri o argumento indefensável para provar o erro do meu amigo.”

Todos concordamos que em um Estado Nacional-socialista o fundamento último da lei positiva é a vontade do Führer. É o princípio, bastante difundido, Führerworte haben Gesetzeskraft. Naturalmente, na prática reconhecemos que o Führer não pode cuidar de tudo e que portanto outros devem agir e legislar em seu nome. A rigor, essa ideia devia ser estendida ao Volk inteiro. Nessa linha, o Dr. Frank, em seu tratado de direito constitucional, estendeu a definição do Führerprinzip da seguinte forma: Aja de maneira a que o Führer, se conhecesse sua ação, a aprovasse. Não há nenhuma contradição entre esse princípio e o imperativo de Kant.” — “Percebo, percebo. Frei sein ist Knechtsein, ser livre é ser um vassalo, como diz o velho provérbio alemão.” — “Precisamente. Esse princípio é aplicável a qualquer membro da Volksgemeinschaft.

É preciso viver o seu nacional-socialismo vivendo a sua própria vontade como a do Führer e, portanto, para repetir os termos de Kant, como fundamento da Volksrecht. Aquele que apenas obedece às ordens como um autómato, sem examiná-las de maneira crítica para penetrar a sua necessidade íntima, não trabalha na direção do Führer; na maior parte do tempo, afasta-se dela. Naturalmente, o próprio princípio do direito constitucional völkisch é o Volk: ele não se aplica fora do Volk. O erro do seu amigo é recorrer a um direito supranacional inteiramente mítico, uma invenção aberrante da Revolução Francesa. Todo o direito deve repousar em um fundamento. Historicamente, este sempre foi uma ficção ou uma abstração, Deus, o Rei ou o Povo. Nosso grande avanço foi fundamentar o conceito jurídico de Nação sobre algo concreto e inalienável: o Volk, cuja vontade coletiva exprime-se pelo Führer que o representa. Quando o senhor diz Frei sein ist Knechtsein, é preciso entender que o primeiro vassalo de todos é precisamente o Führer, pois ele nada é senão puro serviço.

Não servimos o Führer enquanto tal, mas enquanto representante do Volk, servimos o Volk e devemos servi-lo como o serve o Führer, com total abnegação. Eis porque, diante de tarefas dolorosas, precisamos nos curvar e controlar nossos sentimentos para realizá-las com firmeza.” Eichmann escutava atentamente, o pescoço esticado, os olhos parados atrás das lentes grossas. “Sim, sim”, disse ele com ardor, “compreendo-o perfeitamente. Nosso dever, nosso cumprimento do dever, é a mais elevada expressão da nossa liberdade humana.” — “Exatamente. Se a nossa vontade é servir nosso Führer e nosso Volk, logo, por definição, somos também portadores do princípio da lei do Volk, tal como expressa pelo Führer ou derivada de sua vontade.”

“Com licença”, interveio um dos comensais, “mas, a propósito, Kant não era antissemita?” — “Decerto”, respondi. “Mas seu antissemitismo era puramente religioso, tributário de sua crença na vida futura. Estas são conceções que superamos amplamente.” Frau Eichmann, ajudada por uma das convidadas, tirava a mesa. Eichmann servia schnaps e acendia um cigarro. Durante alguns minutos o falatório prosseguiu. Bebi meu schnaps e fumei também. Frau Eichmann serviu o café.

Eichmann fez-me um sinal: “Venha comigo. Quero mostrar-lhe uma coisa.” Acompanhei-o até ao seu quarto. Acendeu a luz, me apontou uma cadeira, pegou uma chave no bolso e, enquanto eu me sentava, abriu uma gaveta da escrivaninha e dela tirou um álbum bem grosso encapado em couro preto enrugado. Com os olhos brilhando, estendeu-me o álbum e sentou-se na cama. Folheei-o: tratava-se de uma série de relatos, alguns em papel brístol, outros em papel comum, e fotografias, o conjunto encadernado como o álbum que eu concebera em Kiev após a Grosse Aktion. A folha de rosto, impressa em letras góticas, anunciava: O BAIRRO JUDEU DE VARSÓVIA NÃO EXISTE MAIS!

Os Waffen-SS estavam chocados. Eichmann parecia mais assustado que admirado. O Brigadeführer Stroop afirma que até mulheres escondiam granadas sob as saias para se fazerem explodir com um alemão quando se rendiam. Elas sabiam o que as esperava. O bairro foi completamente esvaziado. Todos os judeus capturados vivos foram encaminhados para Treblinka. É um dos centros dirigidos pelo Gruppenführer Globocnik. Sem seleção. O Obergruppenführer Heydrich tinha razão.

Os fracos e os velhos morrem logo; no fim, sobram apenas os jovens, os fortes, os espertos. O que preocupa sobremaneira, porque é o produto da seleção natural, o manancial biológico mais forte: se estes sobrevivem, daqui a cinquenta anos começa tudo de novo. Eu já lhe disse que esse motim nos preocupou muito. Caso se repita, pode ser uma catástrofe. Não podemos dar-lhes nenhuma oportunidade. Imagine uma revolta dessas num campo de concentração! Impensável! Por outro lado, precisamos dos trabalhadores. A questão do trabalho está completamente fora da minha alçada, e cada um tem as suas ideias. Em todo o caso: como diz frequentemente o Amtchef, é impossível aplainar uma tábua sem tirar lascas. É tudo o que tenho a dizer. Devolvi-lhe o álbum. Agradeço por me ter mostrado isso, muito interessante. Juntamo-nos aos demais; os primeiros convidados já se haviam despedido.



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