domingo, 13 de março de 2022

O discurso do Reichsführer quando ainda pensava ganhar a guerra *



O Reichsführer falava obrigatoriamente ali em nome do Führer, e dizia aquilo, aquelas palavras que não deviam ser ditas, e tomava nota meticulosamente dos presentes e ausentes. Dos chefes da SS, só não assistiam ao discurso: Kaltenbrunner, que estava com flebite; Daluege, com um problema sério no coração e de licença por um ou dois anos; Wolff, recém-nomeado HSSPF para a Itália e plenipotenciário junto a Mussolini; e Globocnik. A bela costa adriática daria um ótimo vazadouro para todas as pessoas sem serventia para nós, até Blobel viria a se juntar a eles um pouco mais tarde, quem sabe fossem mortos pelos guerrilheiros de Tito, isso nos pouparia parte do trabalho; e, quanto às personalidades do Partido, também foram notadas algumas ausências, mas nunca vi a lista. Tudo isso, portanto, o Reichsführer o fazia deliberadamente, sob instruções, e isso só podia ter uma razão: fazer com que mais tarde nenhum deles pudesse dizer que não sabia, pudesse tentar fingir, em caso de derrota, que era inocente do pior, pudesse jamais sonhar em tirar o cavalinho da chuva; era para amaciá-los, e eles percebiam isso muito bem, daí a sua angústia.

A Conferência de Moscovo, em cujo desfecho os Aliados juraram perseguir os “criminosos de guerra” até ao recanto mais remoto do planeta, ainda não acontecera, seria dali a algumas semanas, antes do fim do mês de outubro de 1943, mas a BBC já difundia, desde o verão sobretudo, uma propaganda maciça com esse tema, dando nomes, aliás com certa precisão, pois às vezes citava oficiais e até suboficiais de KL específicos, estava muito bem informada, a Staatspolizei por sinal se indagava como, e isso, é absolutamente exato observar, provocava um certo nervosismo nos envolvidos, ainda mais que as notícias da linha da frente não eram boas. Para preservar a Itália fôramos obrigados a desguarnecer a frente do Leste, e havia poucas chances de que conseguíssemos permanecer no Donetsk. Já perdêramos Briansk, Smolensk, Poltava e Krementchug, a Crimeia estava ameaçada, em suma, qualquer um podia ver que a coisa ia mal, e certamente vários deviam ser os que se perguntavam sobre o futuro, o da Alemanha de um modo geral, naturalmente, mas o deles em particular também.

Daí uma certa eficácia dessa propaganda inglesa, que não apenas desmoralizava alguns, citados, mas também outros, ainda não citados, encorajando-os a pensar que o fim do Reich não significaria automaticamente o seu próprio fim, tornando, por conseguinte, o espectro da derrota um pouquinho menos inconcebível. Isso é plausível, em todo o caso, no que se referia aos quadros do Partido, da SS e da Wehrmacht, a necessidade de os fazer compreender que uma eventual derrota também lhes dizia respeito pessoalmente, uma tentativa de motivá-los um pouco, que os pretensos crimes de alguns seriam aos olhos dos Aliados crimes de todos, no nível do aparelho em todo o caso, que todos os navios, ou pontes, como quiserem, ardiam em chamas, que não existia possibilidade de voltar atrás, e que a única salvação era a vitória.

E, com efeito, a vitória teria colocado tudo nos eixos, pois, se tivéssemos vencido, imaginem por um instante, se a Alemanha houvesse esmagado os vermelhos e destruído a União Soviética, nunca teria existido essa balela sobre crimes, ou melhor, teria, mas sobre crimes bolcheviques, devidamente documentados graças aos arquivos confiscados. Os arquivos do NKVD de Smolensk, evacuados para a Alemanha e recuperados no fim da guerra pelos americanos, desempenharam exatamente esse papel quando enfim chegou a hora em que foi preciso quase de um dia para o outro explicar aos bons eleitores democráticos porque os monstros infames da véspera deviam agora servir de muralha contra os heroicos aliados da véspera, então revelados como monstros ainda piores.

Stalin, como sabemos, zombava daqueles processos, tomava-os pelo que eram, uma hipocrisia, ainda por cima inútil. E depois todo o mundo, ingleses e americanos à frente, teria composto conosco, as diplomacias se realinhariam de acordo com novas realidades, e, apesar da inevitável gritaria dos judeus de Nova Iorque, os da Europa, que de toda a forma não iriam fazer falta a ninguém, teriam sido considerados perdas e danos, como todos os outros mortos aliás, ciganos, polacos, sei lá mais o quê.

Durante os anos 30, o que acontecia na Rússia, Roosevelt sabia. Esse amigo dos homens nunca se impediu de enaltecer a lealdade e humanidade de Stalin, a despeito aliás das repetidas advertências de Churchill, um pouco menos ingénuo sob certo ponto de vista, um pouco menos realista de outro, e se, portanto, tivéssemos feito a nossa parte e efetivamente vencido essa guerra, teria decerto acontecido a mesma coisa, aos poucos os empedernidos, que não teriam deixado de nos chamar de inimigos da espécie humana.

A Grã-Bretanha e a França viram-se obrigadas a garantir a estabilidade a fim de restaurar a ordem em suas colónias insurgentes ou, no caso dos Estados Unidos, de garantir a estabilidade do comércio mundial e combater os focos de revolta comunistas, como, aliás, sempre acabaram por fazer, com os resultados que conhecemos. Pois seria um erro grave pensar que o senso moral das potências ocidentais difere tão fundamentalmente do alemão. Afinal, uma potência é uma potência, e não se torna uma por acaso, ou tampouco permanece como tal. Os monegascos, ou os luxemburgueses, podem dar-se ao luxo de uma certa retidão política; é um pouco diferente no caso dos ingleses. Não era um administrador britânico, educado em Oxford ou em Cambridge, que já em 1922 preconizava massacres administrativos para garantir a segurança das colónias, lamentando amargamente que a situação política in the Home Islands tornasse impossíveis essas medidas salutares?

Não conviria reconhecer que a França, na véspera da Grande Guerra, atuava com muito mais intensidade no domínio do antissemitismo (sem falar na Rússia dos pogroms. E os planos, como sabemos, eram ainda mais ambiciosos: para os russos, a limpeza natural necessária deveria atingir, segundo os especialistas do Plano Quadrienal e do RSHA, trinta milhões, quando não se situar entre quarenta e seis e cinquenta e um milhões segundo o parecer dissidente de um Dezernent um tanto zeloso do Ostministerium.
O Reichsführer, transcorridos sete meses, fez-lhe então compreender que a sua proposta era interessante, mas prematura: “Vocês devem achar que os entretenho com demasiada frieza acerca de tudo isso. É, simplesmente, a fim de demonstrar que a destruição, sob nossos auspícios, do povo de Moisés, não procedia unicamente de um ódio irracional pelos judeus. A que ponto os antissemitas do tipo emocional eram malvistos no SD e na SS em geral?” Se pensarmos bem, podemos deduzir que essa vontade, ou pelo menos essa capacidade de aceitar a necessidade de uma abordagem muito mais radical dos problemas que afligem qualquer sociedade, não pode ter nascido senão das derrotas durante a Grande Guerra. Todos os países (exceto talvez os Estados Unidos) sofreram; mas a vitória, bem como a arrogância e o conforto moral resultantes da vitória, sem dúvida permitiu aos ingleses e franceses, e até aos italianos, esquecerem com mais facilidade seus sofrimentos e suas perdas e se recuperarem, às vezes até mesmo se comprazerem em sua autossatisfação e, portanto, se atemorizarem com mais facilidade, receando ver compromisso tão frágil desagregar-se.
Os alemães não tinham mais nada a perder. Foram tratados como criminosos, humilhados e despedaçados, e os mortos foram aviltados. Objetivamente, a sorte dos russos não foi nada melhor. Nada mais lógico, então, que pensar: Ora bolas, se é assim, se é justo sacrificar o melhor da nação, enviar para a morte os homens mais patriotas, mais inteligentes, mais devotados, mais leais da nossa raça, e tudo isso em nome da salvação da nação, e isso não servir para nada, então que direito à vida preservariam os piores elementos, os criminosos, os loucos, os débeis, os associais, os judeus, sem falar nos inimigos externos?

Os bolcheviques raciocinaram da mesma forma. Uma vez que respeitar as regras da pretensa humanidade não serviu de nada, porque insistir nesse respeito, que nem ao menos é reconhecido? Daí, inevitavelmente, uma abordagem um pouco mais rígida, mais dura, mais radical dos problemas. Em todas as sociedades, em todos os tempos, os problemas sociais foram arbitrados considerando-se tanto as necessidades da coletividade como os direitos do indivíduo. 
Os gregos abandonavam as suas crianças débeis; os árabes, reconhecendo que elas constituíam, economicamente falando, um fardo muito pesado para as suas famílias, mas não desejando matá-las, entregavam-nas aos cuidados da comunidade, pelo mecanismo da caridade religiosa obrigatória (um imposto para obras beneficentes). Ora, se adotarmos tal visão de conjunto, poderemos constatar que pelo menos na Europa, a partir do século XVIII, todas as diferentes soluções para os diferentes problemas – o suplício para os criminosos, o exílio para os doentes contagiosos (leprosos e tuberculosos), a caridade cristã para os imbecis – convergiram, sob a influência do Iluminismo, para um tipo de solução única, aplicável a todos os casos e declinável à vontade: o confinamento institucionalizado, financiado pelo Estado, uma forma de exílio interior se quisermos, às vezes com pretensões pedagógicas, mas sobretudo com finalidade prática - os criminosos na prisão, os doentes no hospital, os loucos no hospício. Depois da Grande Guerra muitos compreenderam que elas não eram apropriadas, que não eram mais suficientes para fazer face à nova amplitude dos problemas, em virtude da restrição dos recursos económicos e também do nível, outrora impensável, dos problemas (os milhões de mortos da guerra). Faziam-se necessárias novas soluções.

Mas por que então, seria a pergunta de hoje, os judeus? O que os judeus têm a ver com os loucos, os criminosos, os contagiosos? Entretanto, não é difícil admitir que, historicamente, os próprios judeus constituíram-se um povo eleito, o que foi um problema, querendo permanecer isolados a todo o custo. Os primeiros escritos contra os judeus, os dos gregos de Alexandria, muito antes de Cristo e do antissemitismo teológico, os acusavam de ser associais, de violar as leis da hospitalidade, fundamento e princípio político primordial do mundo antigo. Eram assim em nome dos seus interditos alimentares, que os impediam de comer na casa dos outros uma boa chouriça, ou um bom presunto. E o mesmo como anfitriões.
É claro que, depois de Jesus Cristo, houve a questão religiosa. Não procuro aqui, como poderiam achar, transformar os judeus em responsáveis pela sua catástrofe; procuro simplesmente dizer que uma certa história da Europa, lamentável na visão de alguns, inevitável na de outros, fez de modo com que, mesmo em nossos dias, em tempos de crise, seja natural voltar-se contra os judeus e que, se empreendêssemos uma refundação da sociedade pela violência, cedo ou tarde os judeus receberiam o seu quinhão. Cedo, no nosso caso, tarde, no dos soviéticos. E isso não seria em absoluto um acaso. Alguns judeus também, afastada a ameaça do antissemitismo, soçobram na desmedida.
*Reichsführer-SS foi um título especial da SS que existiu entre 1925 e 1945, a patente mais alta da SS após 1934. Era equivalente à patente de marechal de campo na Wehrmacht. Nunca houve mais de um Reichsführer-SS simultaneamente na SS, e ao todo apenas houve cinco: Julius Schreck (1925-1926); Joseph Berchtold (1926-1927); Erhard Heiden (1927-1929); Heinrich Himmler (1929-1945); Karl Hanke (1945). Exigia que os seus membros demonstrassem a sua ascendência ariana até 1750, com a finalidade de criar uma ordem de combatentes de "raça pura".

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