quinta-feira, 17 de agosto de 2023

A Rússia para lá dos Urais no século XVI



No século XVI a Rússia travou-se uma série de guerras para afastar a influência polaca dos seus territórios ocidentais que seduziam os inquietos boiardos da Moscóvia. Assim instigados, os russos mantiveram as suas formidáveis conquistas territoriais na floresta e na estepe que fundavam as bases de um império de comércio de peles nas florestas do Norte. É sabido que este comércio já havia sido lançado pela república de Novgorod muito antes de ser anexada por Moscovo em 1478. Entretanto, Moscovo, chega a enviar em 1483 a sua primeira expedição além dos Urais. Mas é na 
década de 50 do século XVI que uma dinâmica família de mercadores constrói um império comercial na Sibéria para adquirir as peles fornecidas pelos povos indígenas das florestas. É a família Stroganov.

São os Stroganoves que desencadeiam um conflito com o Canato de Sibir’, que também dependia do comércio de peles e do controlo do seu fornecimento. Em 1582, Ermak, um aventureiro cossaco contratado pelos Stroganoves, conseguiu tomar a capital de Sibir’. Mas o imperialismo privado dos Stroganoves desmoronou-se depois da morte de Ermak em 1585. Seria Moscovo, liderado por Boris Godunov, que levaria a cabo a conquista militar da Sibéria Ocidental no final do século. O caminho ficou então aberto para a corrida frenética dos promyshlenniki, o nome que chamavam aos comerciantes de peles. Alcançaram o rio Ienissei em 1609, o Lena em 1632, o Pacífico em 1639 e o rio Amur, nas fronteiras manchus da China, em 1643. Em 1645 existiam já cerca de 70.000 russos além dos Urais. É do legado da intervenção de Boris Godunov que se consolida decisivamente o controlo administrativo da Rússia a partir de Moscovo, de uma extensa colónia florestal.

A relativa facilidade com que a conquista russa do Norte da Ásia foi levada a cabo deveu-se em parte ao baixo nível de organização política e capacidade tecnológica dos povos das florestas que os russos encontraram na Sibéria. As armas de fogo dos russos conferiram-lhes uma importante vantagem tecnológica. No entanto, como descobriram os Stroganoves, só depois do derrube do poder do Canato de Sibir’  é que os russos ficariam livres para comerciar e conquistar. Essa era a ligação vital entre a floresta e a estepe. Na última década do século XVI, os russos tinham já consolidado o seu domínio sobre os canatos vizinhos de Kazan e Astracã, que anexados a Moscovo em 1552 e 1556, respetivamente. 

Uma explicação para o sucesso russo poderá encontrar-se na crise social e política das sociedades da estepe em redor do Volga no século XVI. Os canatos não eram monarquias dinásticas e nunca fizeram a transição para um Estado monárquico. Assemelhavam-se a confederações tribais pouco coesas em que os cãs dependiam do apoio dos chefes tribais. As suas economias dependiam do comércio (sobretudo com a Ásia Central), da tributação das suas populações sedentárias e das incursões dos elementos nómadas dominantes nos territórios russos povoados a norte e oeste. No século XVI, contudo, esta economia política já se encontrava em desordem. Tamerlão tinha destruído as grandes cidades comerciais de Azov, Astracã e Urgench, que sustentavam a estepe. O empobrecimento resultante pode ter acelerado o processo de sedentarização através do qual a velha ordem igualitária da tribo nómada tártara se transformou num mundo dividido de proprietários rurais e camponeses sem terra. Com reduzido poder militar (por causa dessa transformação) e menor solidariedade interna, os conflitos políticos nos canatos tornaram-se cada vez mais irresolúveis. Além disso, como estados sucessores da Horda de Ouro - Kazan, Astracã, Crimeia e Sibir’ - estavam também envolvidos numa competição recíproca pelo domínio da estepe. Moscovo, o 5º estado sucessor da Horda de Ouro, tirou partido disso para desempenhar um papel ativo na diplomacia da estepe.

No início do século XVI, consequentemente, Moscovo já se tornara bastante mais forte do que Kazan e Astracã. Com efeito, impôs uma forma de protetorado a Kazan em várias ocasiões antes de 1552, além de anexar aos poucos o seu território com novas colónias fortificadas. Em 1552, o cã de Kazan, Xá Ali, era já um fantoche russo. Muitos príncipes tártaros já se tinham passado para o lado dos russos (e alguns tinham-se convertido ao cristianismo). Importantes elementos tribais, como os Nogai, conspiravam para apoiar um novo . Não se sabe ao certo se Ivan II pretendia anexar Kazan em 1552. Mas a resistência da cidade e a sua violenta conquista garantiram esse resultado. Foi com a ajuda dos Nogai que o Canato de Astracã foi subjugado e anexado numa segunda campanha fulminante.

Apesar do assombro deste imperialismo das estepes, seria imprudente exagerar o seu alcance imediato. Não existia qualquer tesouro de minérios para financiar a construção de uma grande superestrutura imperial, se bem que Moscovo, e os seus comerciantes, pudessem ter beneficiado do acesso mais fácil ao comércio com o Irão e a Ásia Central. As terras do Volga foram abertas à colonização camponesa russa. Mas, para lá do corredor fluvial, o domínio russo era incerto e o Volga continuava a ser uma região de fronteira perigosa. As incursões tártaras a partir da Crimeia não tinham cessado. Em 1592 chegaram a Moscovo, e os seus subúrbios foram incendiados.

Era necessário um enorme esforço para construir as linhas fortificadas ou de defesa que deviam deter os invasores. Uma destas, a de Belgorod, estendia-se ao longo de mais de 800 Km. No início do século XVII os russos tiveram de enfrentar os calmucos, que chegaram em força à estepe a norte do mar Cáspio. Mais a sul, no Cáucaso, a influência russa era contida pelo novo estado safávida. A conquista do Canato da Crimeia e o fecho definitivo da fronteira da estepe do Volga - Portões dos Urais, entre os Urais e o mar Cáspio - teriam de esperar pelo final do século XVIII.

Esta foi uma etapa decisiva na afirmação da Rússia como um forte Estado. A Rússia 
como motor da expansão europeia para o Norte da Eurásia. As elites de Moscovo tiveram de dispender um grande esforço para transformarem o regime da Moscóvia num regime dinástico: capaz de absorver os Estados do Norte da Rússia; resistir à Polónia–Lituânia; intimidar os canatos do Volga. No entantoem 1600, ainda não se encontravam livres dos polacos-lituanos. Os ataques polacos no início do século XVII foram repelidos com a ajuda sueca. Só depois se dotaram das instituições necessárias para sustentar três séculos de expansão imperial. Baseando-se no legado de favores mongóis e no apoio da Igreja Ortodoxa, os governantes de Moscovo fizeram uma dupla revolução. Transformaram o antigo sistema militar de séquitos de boiardos num exército de pólvora com mosqueteiros e artilharia. Centralizaram o domínio sobre as terras através do sistema das pomestia, através do qual as herdades nobres eram detidas sob promessa de serviço militar ou administrativo. 

Os boiardos, que tinham a liberdade de oferecer a sua lealdade a quem quisessem, passaram a estar submetidos a uma estrutura rígida de fidelidade e obrigações, enquanto novos homens da servidão do Estado eram recompensados com terras conquistadas e confiscadas. A segunda revolução foi uma consequência da primeira. Numa economia agrícola pobre, o fardo da tributação e serviços para sustentar o esforço militar só podia ser suportado se a aristocracia rural gozasse de um controlo rigoroso sobre as comunidades camponesas até então móveis, livres e geralmente rebeldes. O equivalente à fixação da lealdade dos boiardos foi a sujeição do trabalho camponês à instituição da servidão, imposta por uma combinação impiedosa de autoridade estatal, domínio nobre e influência da Igreja. 

Como vanguarda leste da expansão europeia, e não como um Estado tampão fraco entre a Polónia e a estepe, a Rússia tornou-se uma Esparta eurasiática, dispondo de um exército de mais de 100 000 homens no final do século XVI. No entanto, continuava ameaçada a ocidente por Estados europeus mais ricos e atormentada a sul pela sua fronteira da estepe, ainda aberta. A trajetória da Rússia foi penosa e traumática. Passou pelo chamado Tempo de Dificuldades, a anarquia que antecedeu a ascensão da Dinastia Romanov ao poder em 1613. Moscovo foi invadida por exércitos polacos em 1605 e novamente em 1610. A expansão enfrentou maior resistência e um ambiente mais agreste, e aí o preço da eclosão ocidental foi um regime interno de crescente opressão social e política, cujos efeitos acabariam por se fazer sentir do mar Báltico ao Pacífico.

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