quarta-feira, 16 de agosto de 2023

De espião em Dresden a presidente em Moscovo



Por finais de 1999 a Rússia estava em estado de alerta devido a várias explosões em edifícios de diferentes cidades, que mataram mais de 300 pessoas. Vivia-se um clima de medo e desconfiança porque dizia-se à boca pequena que o FSB podia estar por trás dos vários atentados. A maior parte dos altos quadros do FSB tinham sido espiões do KGB, onde pontuava Vladimir Vladimirovitch Putin. Sim, aquele que havia montado uma teia de poder que começou no KGB há quase quatro décadas e que nos dias de hoje leva a cabo uma guerra na Ucrânia cujo desfecho ainda ninguém arrisca adivinhar.

O ano de 1999 começa com Boris Yeltsin ainda ao comando dos destinos da Rússia, um país onde ainda se ressentia o fim da União Soviética. Mas o Presidente já não tinha o vigor dos primeiros tempos. Vladimir Putin é o chefe do FSB. Durante a década de 1990, que estava a chegar ao fim, era Yury Ilyich Skuratov que ocupava o lugar de procurador-geral. Ele e a sua equipa andavam fortemente empenhados em investigações relacionadas com a forte corrupção que grassava na sociedade russa, onde se envolviam endemicamente altos funcionários do estado. 

Mas eis que em abril de 1999 rebenta um escândalo que deixa o procurador em muito maus lençóis. O ministro do interior, que então era Sergei Stepashin, concorda com Putin que seja divulgado na televisão o escândalo que comprometeria o procurador-geral: uma gravação filmada mostrando um homem nu, muito semelhante a Skuratov, na cama com duas mulheres num hotel da capital. Skuratov acaba por ser demitido do cargo apesar de ter começado de início por resistir à pressão.

O ano 2000 é ano de eleições para a presidência da Rússia, e Skuratov, já demitido do cargo de procurador-geral, concorre às eleições presidenciais russas. A campanha de Skuratov tinha como objetivo principal limpar o seu bom nome do escândalo, veiculando informação que tentava repor a sua boa reputação. A narrativa apresentava um homem de família decente e um marido fiel que havia sido vítima de "mentiras" e "invenções".

Grande parte das versões que se conhecem hoje acerca do caso, partem de declarações prestadas em entrevista de Vladimir Stanislavovich Milov, que havia sido vice-ministro da Energia da Federação Russa, e frequentava na altura os corredores do Kremlin. Depois passa para a oposição, tendo sido
 cofundador em 2008 do movimento de oposição Solidarnost. Em 2009 concorreu à Duma como candidato independente. A partir de 2016 passou a apoiar a candidatura presidencial de Alexei Navalny, sendo também coautor da plataforma de Navalny. Desde a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022 que se encontra exilado algures no Ocidente. Milov não tem dúvidas que foi em finais de 1999 que Yeltsin tomou a decisão de promover Putin. Ele seria o homem que o iria defender das acusações que inevitavelmente seria alvo quando deixasse o poder. Putin iria garantir que ele não iria ser acusado. E que a sua família não iria ser acusada. E foi assim que quando em Setembro de 1999 dois agentes do FSB tinham sido apanhados em flagrante numa tentativa de colocação de bomba num prédio, algures numa cidade da Rússia, o caso foi abafado. À medida que o tempo passa, a teoria da conspiração adensa-se, e o advogado que investiga a possível ligação do FSB aos atentados é preso. E alguns deputados que se debruçam sobre o tema morrem em circunstâncias estranhas.

Mas Putin já não era diretor do FSB, as secretas russas. Por essa altura Yeltsin já o tinha nomeado primeiro-ministro. E o primeiro-ministro Vladimir Putin ainda não tinha mais do que 24 horas no cargo, já aviões militares russos começavam a bombardear a cidade de Grozni. Os atentados eram a justificação que faltava para avançar para uma nova guerra na Tchetchénia depois da primeira derrota russa no início da década de 90. Os relatos que vão chegando são aterradores. A artilharia do exército russo arrasa todos os edifícios. Os civis vivem fechados nos abrigos. Dia e noite os hospitais são bombardeados como se fossem edifícios militares e quando os soldados russos ocupam aldeias, o rasto de morte que deixam pelo caminho é visível, violações, tortura, decapitações.

Em 1968, Putin, ainda um adolescente, entra pelo seu próprio pé na sede do KGB em são Petersburgo. Volodia, como lhe chamam os amigos, pergunta o que é preciso para se tornar um agente. Tem 16 anos e vira um filme de espiões (O Escudo e a Espada) uma data de vezes porque havia ficado fascinado. Dizem-lhe que ali não são aceites voluntários. É preciso ser escolhido e é preciso ter um curso superior. Qual? – pergunta. Sugerem-lhe que vá para direito. Nunca abandona o sonho de vir a trabalhar no KGB, mas o convite só surgirá no quarto ano da universidade. Putin leva muito a sério a formação inicial no KGB, tão a sério que um dos instrutores chega a fazer piadas com o facto de ele aparecer sempre nas aulas de fato completo com colete, mesmo em dias de verão. Mas Vladimir não deixa grande marca, apesar de ser um estudante disciplinado.

No verão de 1976, o jovem Volodia, começa a trabalhar como agente do KGB. É colocado no departamento de contraespionagem. E em 1985 vai para uma das cidades mais destruídas pelos bombardeamentos na Segunda Guerra Mundial, uma das poucas regiões da Alemanha onde não chegavam canais de televisão ocidentais – Dresden.

Em 1989, tinha o Muro de Berlim acabado de cair quando em Dresden Vladimir tem de enfrentar uma manifestação que ameaça invadir as instalações onde trabalha e chefia. Telefona então para a unidade mais próxima do exército vermelho para pedir reforços. Do outro lado da linha um soldado informa-o de que vai pedir instruções a Moscovo. Sem ter obtido resposta, Putin volta a ligar. A voz que lhe chega do outro lado é perentória: «Não podemos fazer nada sem ordens de Moscovo, e Moscovo está em silêncio.» Moscovo estava em silêncio, e Vladimir Putin pensa: «O país já não existe. Desapareceu!». A União estava moribunda, tinha uma doença terminal, sem cura, uma paralisia do poder. Apodera-se de Putin um medo pessoal muito forte. De que é que Putin tem medo? Pura e simplesmente do poder das multidões. 
O poder das multidões foi o que Vladimir Putin, Presidente da Federação Russa, viu em 2014 na praça Maidan, em Kiev. Aquilo que ele mais temia, no caso da Ucrânia, era o contágio.

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