sábado, 5 de agosto de 2023

A complexidade de Israel nos dias de hoje





Israel está num impasse, no dealbar de uma guerra "entre judeus e israelitas". Duas nações se confrontam: no parlamento, em férias, a extrema-direita organiza os próximos passos, enquanto o protesto nas ruas continua e ameaça multiplicar-se se os homens de Netanyahu prosseguirem a ofensiva contra a justiça. Os próximos meses podem ser uma batalha.

Em qualquer análise política há sempre mais do que uma narrativa. Então em relação a Israel nem vale a pena duvidar. Neste diferendo entre Netanyahu e os juízes, a narrativa dos apoiantes de Netanyahu é ser ele o representante da democracia, enquanto os juízes prolongam a "hegemonia asquenaze". Mas as mudanças demográficas podem deixar de funcionar a favor da extrema-direita. Os ideólogos do lado de 
Netanyahu inventaram a distinção entre o "Primeiro Israel", asquenaze e secular, e o "Segundo Israel", o dos mizrahim, que está do lado de Netanyahu.

Netanyahu é o "político amado" dos mizrahim, que alegam que o sistema judicial quer minar todo o sistema político e "persegue mais agressivamente os representantes do Segundo Israel." Este "Segundo Israel" são os mizrahim, judeus orientais, outrora denominados sefarditas, que quando foram expulsos de Espanha e Portugal emigraram para Marrocos, Grécia, Turquia, um pouco por todo o Próximo Oriente. Os asquenazes são os judeus da Europa central e oriental que inventaram o sionismo e fundaram o atual Israel.

Os judeus mizrahim, que em hebraico quer dizer “orientais”, acabam, portanto, por ser os judeus aculturados pelo mundo islâmico. Trata-se de comunidades fortemente arabizadas nas suas tradições linguísticas, alimentares e culturais. As suas línguas tradicionais são o árabe, o pársi (aqueles que foram para o Irão) e um dialeto do aramaico (para os que foram para o Curdistão). Com a fundação do Estado de Israel em 1948, a maior parte dos mizrahim migraram para o novo estado nos anos que se seguiram, em alguns casos fugindo a perseguições árabes. Eles representaram a maioria da população israelita até à grande migração de judeus da Europa Oriental que se seguiu à queda da União Soviética. Tentativas de fixá-los nos moshavim revelaram-se infrutíferas, já que a maioria dos mizrahim não tinha na agricultura a sua ocupação principal, mas sim no comércio.

No passado, durante as crises existenciais e as guerras árabes, os israelitas foram capazes de ultrapassar as suas profundas divisões. Mas, a partir da vitória na Guerra dos Seis Dias (1967), as divergências começaram a manifestar-se. Os judeus ortodoxos punham em causa a natureza laica do Estado. Por sua vez, os mizrahim/ sefarditas sentiam-se desprezados pela elite asquenaze que os remetia para a parte pobre da sociedade. Um trabalhador asquenaze ganhava o dobro de um sefardita. Agora note-se que os cidadãos árabes israelitas, ou beduínos, ainda são mais discriminados. 

Um dos primeiros movimentos de protesto sefardita foi um movimento de jovens de esquerda da segunda geração: o movimento "Panteras negras de Israel", fundado em 1971. Depois, o grande partido da direita nacionalista, liderado por Menahem Begin, vence as eleições em 1977, e põe termo à longa hegemonia trabalhista. Mas, tanto o Partido Trabalhista como o Likud representavam a velha elite asquenaze, ainda que ideologicamente dividida. Em boa verdade, o Likud sempre foi dominado pela aristocracia da extrema-direita asquenaze. A imigração maciça dos mizrahim após a Guerra dos Seis Dias, em 1967, é que veio baralhar o espetro da direita, na medida em que os mizrahim valorizam muito mais a identidade do que a democracia.

Foi assim que o Likud conseguiu fazer uma sólida aliança com os sefarditas ortodoxos ultra do partido Shas, e com os asquenazes do Judaísmo da Torá. O Shas, fundado em 1980, visava criar uma identidade mizrahim. Nos seus períodos pragmáticos, fez alianças à esquerda e à direita. Mas, no fundo, sempre foi teocrático e fundamentalista. Num passado não muito distante, o campo da extrema-direita continha elementos liberais e até seculares. Hoje o cimento ideológico do campo da extrema-direita é aquilo a que o sociólogo Nissim Leon chamou ‘nacionalismo teo-etnocrático’. Trata-se de um nacionalismo antiliberal e antidemocrático, que centra a sua luta na identidade judaica do Estado. O outro lado da extrema-direita é representado pelo Partido Sionista Religioso. Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança, com cadastro criminal, herdeiro da sinistra figura de Meir Kahane, que visa a destruição do sistema de justiça; o apartheid dentro de Israel; a segregação racial nos hospitais, nas universidades e na administração pública; a discriminação de género; o reforço ultra dos códigos religiosos ortodoxos.

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