segunda-feira, 17 de novembro de 2025

A crise do SNS em Portugal


A crise do SNS [Serviço Nacional de Saúde] em Portugal, que é análoga à do Reino Unido, não é apenas técnica ou orçamental. É também sociocultural: expectativas de prolongamento da vida a todo o custo; recursos limitados. Em Portugal, cerca de 30% da despesa em saúde já é paga diretamente pelos cidadãos. A disposição constitucional do "tendencialmente gratuita" o que tende é cada vez mais para uma miragem. Precisa-se de uma campanha de saúde pública sobre envelhecimento saudável e aceitação do fim de vida – dando informação sobre expectativas realistas, e prestando cuidados mais focados na qualidade de vida do que na quantidade de anos de vida. Este é o maior desafio de política pública e de civilização.

A solução não é técnica isoladamente: exige reformas ao nível do financiamento e da reconfiguração do Serviço. É preciso engajar profissionais e sociedade numa conversa séria sobre o que é razoável esperar da medicina moderna. Portugal chegou a um nível no orçamento para a Saúde que é incomportável para o nível da riqueza que o país produz. O corporativismo médico é um dos nós mais estruturais que bloqueiam a reforma do SNS. Não se trata de desrespeitar a medicina enquanto ciência e vocação, mas de reconhecer que o modelo de autorregulação profissional, criado no passado, tornou-se incompatível com as exigências democráticas, transparentes e de prestação de contas do momento atual. A Ordem dos Médicos (como as suas congéneres europeias) nasceu para defender a profissão liberal (num tempo em que os médicos exerciam a sua profissão de forma autónoma, não como funcionários do Estado, ou trabalhadores por conta de outrem. Esse papel foi essencial num tempo em que não havia um Serviço Nacional de Saúde. Mas, desde que o Estado passou a ser o principal empregador e financiador do setor, a ordem profissional tornou-se um ator político e não apenas regulador.

O que acontece hoje é o fenómeno clássico de “captura do Estado pelo regulador”. A Ordem detém poder quase exclusivo sobre licenciamento, formação especializada e deontologia, sem mecanismos externos de escrutínio eficaz. Atua como grupo de pressão corporativa (lobby), interferindo em políticas de saúde pública, gestão hospitalar e definição de carreiras, sob o manto de “autoridade técnica”. Bloqueia as reformas estruturais, nomeadamente a expansão de competências para a profissão de enfermagem. E o fica pé no número de elementos nas equipas de urgência com o argumento falacioso da “defesa da qualidade”, quando o mesmo critério não é exigido ao setor privado.

Este corporativismo produz custos elevados e ineficiências: entradas controladas artificialmente (numerus clausus e estágios) que criaram a escassez relativa em certas especialidades. E por fim, mas o principal, a promiscuidade do "duplo emprego" público/privado. 
Em termos de economia política, é um exemplo de “renda de posição”: o grupo profissional usa o controlo sobre um recurso essencial (licença para exercer) para extrair benefícios sem aumento proporcional de produtividade ou valor social. Os governos, receosos de conflito com uma classe altamente prestigiada e organizada, têm sistematicamente evitado confrontar o poder corporativo médico. E é assim que a população se vê refém de um sistema que protege o médico mais do que o doente. Em suma, o modelo que fazia sentido no tempo da profissão liberal individual está agora desajustado a um sistema público universal, onde a medicina é uma função de Estado e de interesse coletivo. Enquanto o Estado for capturado por interesses de grupo, o SNS não poderá cumprir a promessa de universalidade e justiça.

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