Aplicar a grelha = política - social - moral =, especificamente à questão migratória em Portugal, tem de se fazer com menos ruído mediático em cima e no meio de uma ponte pênsil onde se abraçam as elites políticas e a sociedade civil. Portugal, por razões históricas e culturais, manteve durante muito tempo uma moral generosa. Um povo de emigrantes, com memória do partir, tem alimentado uma empatia espontânea com quem chega. Um povo eminentemente católico, em que ainda recentemente acolheu o Papa Francisco na grande Jornada Universal da Juventude. As elites políticas e mediáticas associaram-se. Ou seja, o português tem sido benevolente, animado por uma ética de hospitalidade convicto de que não é por aí além racista, se comparado com povos com os quais nos podemos comparar.
Contudo, chegados a estes novos tempos, começou-se a perder o passo no compasso com a realidade. Os fluxos migratórios cresceram imenso na Europa da última década. No contexto da mortandade de migrantes afogados no Mediterrâneo às portas da Europa rica e civilizada, originários da Síria, mas não só, em 2015, a chanceler Angela Merkel anunciou que acolheria centenas de milhares de refugiados. E a Alemanha reagiu com humanismo. Havia o trauma europeu das guerras e a convicção de que a Alemanha, potência rica e estável, podia suportar esse esforço económico-demográfico. O país precisava de mão-de-obra jovem e qualificada. A decisão foi vista por muitos como uma reafirmação dos valores europeus: hospitalidade, solidariedade e direitos humanos. A integração revelou-se desigual: houve histórias de sucesso e outras de isolamento social. O sistema de acolhimento ficou sobrecarregado em algumas regiões. Grupos de extrema-direita, que são anti-imigração, ganharam terreno ao explorar sentimentos de insegurança cultural e económica. Partidos como a AfD conseguiram transformar esse ressentimento em capital político, sobretudo no leste do país. Apesar de esses fatores explicarem o crescimento de forças populistas, não significa que a decisão inicial tenha sido “certa” ou “errada”. Apenas significa que gerou uma reconfiguração duradoura no debate político. Em todos os casos, o tempo emocional do eleitorado reagiu mais depressa que o tempo administrativo da integração.
No tempo político da governação "Costa", até há pouco, as instituições subestimaram o ritmo e a escala do fenómeno. O discurso político manteve-se moralmente correto, mas logisticamente ingénuo. A integração foi deixada em grande parte a ONGs, autarquias e iniciativas locais, sem um plano central robusto. Costa, confiando na ausência de tensões étnicas históricas, não antecipou a reação social. Agora, com a pressão pública crescente, o tempo político de Montenegro tenta reequilibrar-se, reconhecendo as falhas. Mas ao fazê-lo, Montenegro é acusado de “ceder ao Chega. Na verdade, não se trata de ceder, mas de sincronizar o tempo político com o tempo social, que mudou mais rapidamente do que se previa.
O tempo social português está agora num ponto de inflexão. Durante muito tempo, o tema da imigração não existia como preocupação central. Mas a súbita emergência de certas realidades: habitação escassa; serviços públicos saturados; casos de criminalidade amplificados pelos media; transformações visíveis em certos bairros e escolas - criou um choque perceptivo. Mesmo que os dados empíricos não confirmem uma degradação dramática, a percepção coletiva já mudou. E, parafraseando Durkheim, “na política, a percepção é tão real como os factos”. É isso que o tempo moral (idealista) tende a esquecer. O povo sente antes de compreender. E a intuição popular reage antes dos relatórios oficiais.
Daí o ruído atual de idiomas com línguas de pau. Quem vive no tempo moral chama "fascistas" aos que reagem. E quem vive no tempo social chama “hipócritas” aos que vivem o tempo moral. Ora, este tempo é o tempo de políticos como André Ventura, cuja intuição política é particularmente afinada para o tempo social. É a intuição do mal-estar latente dos tais "abandonados" antes de ele ser mensurável. Mas atenção: essa intuição, por si só, não é nem boa nem má. Depende do uso ético que se faz dela. Se é usada para antecipar soluções, é uma virtude política. Se é usada para inflamar divisões, torna-se uma forma de manipulação. Os políticos mais lúcidos são os que conseguem aliar intuição e razão, em vez de jogar uma contra a outra.
Portugal ainda está numa fase atrasada do processo. O crescimento rápido da imigração gera um choque de percepção, mesmo que os indicadores económicos mostrem benefícios em certas áreas. A experiência europeia mostra quão essencial é a gestão transparente dos fenómenos migratórios. Não bastam dados, ou planeamento urbano, mas uma comunicação política transparente para que o espaço emocional não seja ocupado por discursos simplificadores. A intuição deve servir de alerta, mas a resposta tem de vir da razão e da ética democrática. O caso alemão mostra como o tempo moral e o tempo político raramente coincidem. O gesto moral de 2015 foi rápido. Mas quem tem estudado estes fenómenos, sabe que a integração, para além de ser lenta, muitas vezes é incompleta. A percepção pública muda muito rapidamente. Governar bem, em qualquer país, significa conseguir sincronizar os três tempos: moral; administrativo; político/social.
O tempo moral está ligado ao impulso imediato da consciência. É o do coração humano e das convicções éticas. Ele reage de forma instantânea diante da dor ou da injustiça. É o tempo dos princípios, da empatia, da indignação e do dever. Quando Merkel abriu as fronteiras, em 2015, agiu sobretudo em nome desse tempo: “Diante do sofrimento, não podemos hesitar” - disse Ela. Esse é o tempo de Kant e do imperativo categórico: o dever é o dever, independentemente das consequências. O tempo moral é impaciente, não mede a capacidade humana no terreno, apenas a urgência do ideal.
Quem governa precisa de conciliar princípios com realidades. É o tempo do cálculo, da negociação e da adaptação. Enquanto o tempo moral se move por impulso, o político precisa de traduzir valores em instituições. Se age rápido demais, é acusado de imprudência. Se age devagar demais, é acusado de insensibilidade. Os governos vivem nesse intervalo impossível - entre o grito moral da sociedade e a lentidão das estruturas. O tempo social é o da assimilação coletiva. O tempo social é o mais lento de todos. É o tempo das mentalidades, dos costumes, da aceitação cultural. Mudar leis é rápido; mudar percepções é uma obra de décadas. Por isso, políticas socialmente avançadas em prol da igualdade atingem a sociedade antes de a sociedade estar pronta para elas. Surge então o que Tocqueville chamaria de reação democrática: o povo sente-se ultrapassado, e o ressentimento cresce. E é assim esse desalinhamento de tempos que cai num terreno propício para populismos que se polarizam para as duas extremas do relvado político que em pouco tempo o transformam num pântano.
Mas o que é isso de equilibrar uma democracia? Neste cenário, e recorrendo às metáforas futebolísticas e o seu jargão, do que se precisa é de um avançado centro. É libertar um dos médios mais recuados para apoiar o ataque. Que em jargão futebolístico se designa por trinco. O papel de um trinco é exatamente preencher os espaços vazios por um jogador que dentro do seu raio de ação se tenha libertado da sua posição no momento em que a equipa ataca, precaver possíveis transições rápidas do adversário encurtando-lhe o espaço. No fundo, é deixar a sua formação organizada. No entanto, quando a sua equipa não tem a bola, independentemente da atitude pressionante ou expectante que tenha de ter em determinada zona do campo, torna-se importantíssimo quando o adversário está no último terço do terreno, fundamental a preencher espaços, tapar linhas de passe, garantir a organização coletiva e conseguir superioridade numérica.
A intuição política pode servir de trinco entre esses tempos: traduzir o sentimento moral em linguagem compreensível; acelera o tempo político sem atropelar o social; detectar a sociedade a mudar antes que os indicadores o mostrem. Os extremos deformam esse trinco e transformam o descompasso em clivagem. A torre de marfim deixa de ser intérprete e torna-se amplificador da desordem. As sociedades que melhor lidam com crises partilham um tipo de comunicação pedagógica preparando o povo antes das mudanças. É gradualista, combinando o ideal moral com a viabilidade prática. Educam o tempo social para que o povo acompanhe o tempo moral. E não deitam fora a memória, mantendo estabilidade geracional mesmo durante choques rápidos. A arte de governar consiste em harmonizar esses três ritmos, não os fundindo, mas fazendo-os jogar sem que se choquem.
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