Há políticos que “sentem o tempo histórico” antes que ele se formule racionalmente, e isso está muito próximo do que Bergson ou Jung chamariam de intuição vital ou intuição simbólica, um saber pré-conceptual do rumo das forças coletivas. A política, antes de ser gestão, é leitura da emoção e estados de alma. O político intuitivo não parte de números, sondagens ou relatórios, cheira a mudança no ar, percebe as emoções subterrâneas que a maioria ainda não verbalizou. É uma espécie de radar da emoção coletiva. Pode-se, assim, sintetizar numa frase: “A intuição política é a arte de compreender o estado invisível do povo”. Um Mandela, ou um Mário Soares tiveram intuição profética, sentiram as forças do seu tempo.
Essa sensibilidade é poderosa, porque antecipa o que está para vir, o poder das massas. Os líderes populistas demonstram uma forma de intuição que não é intelectual. Não se funda em leitura sistemática, mas em ressonância afetiva com certos estados latentes da sociedade: ressentimento, cansaço moral, desconfiança nas elites, e desejo de simplificação. Há nisso algo que os intelectuais frequentemente ignoram. A política não é movida por dados, mas por representações emocionais. Quem capta essas emoções, mesmo que de modo visceral, antecipa o campo de batalha antes dos racionalistas chegarem com os seus gráficos. É intuição sociológica empírica, que se alimenta da escuta inconsciente do corpo social.
O excesso de lógica e de dados científicos ofusca a intuição. Bergson já o dissera de modo quase profético: a inteligência tende a cristalizar a vida, a fixar o móvel, a perder o contacto com o real que se move. A razão analisa o que já aconteceu; a intuição sente o que está a acontecer; e o instinto político, quando elevado, sente o que vai acontecer. Assim, muitos políticos tecnocratas, mergulhados em relatórios, tornam-se epistemologicamente lentos. Percebem o que mudou só depois de a mudança se ter instalado. O intuitivo, ao contrário, atua no germe da transformação, quando ela ainda é sentimento difuso.
A intuição não é, contudo, o alfa e o ómega. Ela pode servir tanto para unir como para dividir. Um político intuitivo sente o medo, o orgulho, a humilhação coletiva, e pode escolher acalmar ou explorar esses sentimentos. Ventura, nesse sentido, domina a temperatura emocional, mas não necessariamente a orienta para um bem coletivo. Outros políticos, mais racionais, têm boas intenções mas não sentem o pulso da época, e, por isso, vivem da memória passada, quando o povo já vive na memória futura.
A diferença entre um profeta e um demagogo está precisamente no uso da intuição. O profeta sente as dores do tempo e tenta redimir o povo através da verdade. O demagogo sente as mesmas dores, mas tenta explorá-las em proveito próprio. Ambos são intuitivos, o que os distingue é o nível de consciência moral. E talvez o drama das democracias contemporâneas seja: o facto de o inconsciente coletivo estar no seu limiar inferior, e ser vulnerável aos demagogos populistas; e o facto de a racionalidade se ter debilitado pela benevolência e pelo otimismo utópico; e os povos oscilam entre fascínio e medo.
A intuição política autêntica nasce de uma escuta profunda. O político sente os medos, esperanças e tensões do seu tempo, e procura dar-lhes forma racional ou ética. Mas há um momento perigoso em que essa escuta se converte em mimetismo: o político já não interpreta o povo, apenas repete os seus impulsos. O verdadeiro estadista consciencializa; o populista acentua o inconsciente coletivo do medo. Essa inversão é o coração do populismo: a substituição da mediação pela amplificação. A democracia degrada-se quando deixa de estar ligada à compreensão simbólica do real e passa a ser usada como mecanismo de ressonância emocional. Em termos junguianos, poderíamos dizer que o político intuitivo, ao invés de integrar os conteúdos do inconsciente coletivo, é possuído por eles. Na fase saudável, ele capta o que é difuso e dá-lhe forma (liderança simbólica); na fase degenerada, ele dissolve-se nas pulsões do grupo (liderança tribal). Daí o paradoxo: o populista não lidera o povo, é liderado por ele, ainda que o povo não o perceba. A multidão fala por sua boca.
Gustave Le Bon, na sua célebre Psicologia das Multidões (1895), antecipou este fenómeno: quando o líder compreende intuitivamente o imaginário coletivo e o reflete, a massa sente-se compreendida e confia nele sem exigir coerência. O político torna-se um espelho mágico: diz o que as pessoas sentem, não o que elas sabem; transforma o descontentamento em identidade; converte a emoção difusa em narrativa moral. Essa alquimia é uma forma de intuição social degenerada, porque ela não ilumina o inconsciente coletivo, apenas o excita.
É a tragédia das elites racionalistas e tecnocráticas. Na ânsia de se afastarem da irracionalidade, elas perdem o contacto com o imaginário popular. Mas, ao fazê-lo, deixam o campo livre para os intuitivos sem ética, que ocupam o espaço simbólico com mensagens simples e viscerais. O racional descreve os factos; o intuitivo sem ética dramatiza os factos; o populista transforma o drama em espetáculo. E o povo, carente de representação emocional, prefere o espetáculo à análise.
O processo racional de recolher dados, fazer estudos e projetar políticas é mais lento que o processo emocional e intuitivo. A opinião pública reage em “tempo curto”, sobretudo quando há mudanças visíveis, por exemplo, aumento rápido da presença de imigrantes em certos bairros, pressão sobre serviços públicos, etc. Os decisores políticos que dependem de relatórios e consensos institucionais costumam responder em “tempo longo”. Daí a vantagem momentânea do político intuitivo: ele capta o mal-estar antes de ele ser avaliado. Mas captar não é o mesmo que compreender; é apenas o primeiro passo. Em qualquer democracia, há uma lacuna entre a percepção popular (“estamos a ser invadidos”; “não há controlo”); e a análise técnica (estatísticas, comparações europeias, efeitos económicos). Esse desfasamento cria o terreno onde floresce a acusação de “cedência”: quando um governo começa a ajustar políticas em resposta à percepção pública, os adversários interpretam isso como se tivesse rendido ao discurso do populista.
Há um valor na intuição política: ela acorda a classe dirigente para realidades ignoradas. Mas, se o ajuste for feito por reflexo emocional e não por planeamento, o resultado é um pêndulo: políticas apressadas seguidas de recuos. A esquerda tende a enfatizar valores humanitários e benefícios da imigração. A direita moderada (como Montenegro e a AD) procura equilíbrio entre acolhimento e controlo. Os partidos populistas ganham espaço por dramatizarem o tema e falarem o idioma emocional do eleitorado. A direita tradicional, para não perder contacto com o sentimento coletivo, ajusta o discurso, o que é visto pela esquerda como “cedência”. Este fenómeno não é exclusivo de Portugal. É estrutural nas democracias com fluxos migratórios intensos.
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