quinta-feira, 20 de novembro de 2025

O sentido evolutivo do instinto à intuição


Instinto, comportamento inato e intuição: parecem, à primeira vista, designar o mesmo tipo de fenómeno – algo que surge “de dentro”, sem raciocínio consciente –, mas pertencem a níveis diferentes da experiência e da evolução mental.

Comportamento inato = é programado geneticamente, isto é, transmitido pela herança biológica e partilhado por toda a espécie. Instinto = é o nome que damos, em linguagem comum e etológica, a esse tipo de comportamento automático, adaptativo e orientado para a sobrevivência. Esses atos não exigem experiência, nem cultura ou reflexão – são pré-programas da vida. Podemos dizer que o instinto é o inato em ação. A intuição é um fenómeno diferente. Não é puramente biológica. Ela envolve a mente, a experiência e a aprendizagem. Mas opera abaixo do limiar da consciência racional. A intuição é um tipo de conhecimento imediato, que não passa pelo raciocínio lógico nem pela análise deliberada. Surge como uma síntese rápida do que o cérebro já aprendeu e armazenou, mesmo que não saibamos explicar como. Por exemplo: um médico experiente “sente” que algo está errado com um paciente antes dos exames; um artista “sabe” que certa cor ou forma funciona melhor; um motorista evita um acidente num reflexo inteligente que não é puro instinto.

Enquanto o instinto/inato é meramente biológico, do nível pré-racional, a intuição é já dum nível superior, digamos mental, ainda que não ciente. Alguns filósofos e psicólogos consideram a intuição uma forma superior de instinto, um instinto intelectualizado, que se manifesta como orientação simbólica ou criadora. Enquanto o instinto “sabe o que fazer” na prática do corpo no espaço físico, a intuição “sente o que é verdadeiro” no espaço do mental. Vejamos brevemente como Jung, Bergson, Kant e Merleau-Ponty entenderam a intuição.

Jung = A intuição é uma das quatro funções fundamentais da consciência, ao lado do pensamento, sentimento e sensação. Mas é também a mais misteriosa, porque não depende dos sentidos nem da lógica. Ela capta possibilidades, significados e direções antes que a mente racional os reconheça. A intuição, para Jung, é um instinto espiritualizado. Assim como o instinto “sabe o que fazer” no plano da sobrevivência, a intuição “sabe para onde ir” no plano simbólico e existencial. Ela liga o consciente ao inconsciente coletivo, a essa reserva de imagens e arquétipos que orientam o comportamento humano desde tempos imemoriais. Por isso, a intuição é também uma ponte entre o biológico e o mítico, entre a natureza e o espírito.

Bergson = Vai ainda mais fundo na dimensão filosófica. Para ele, a intuição é a forma de conhecimento que se liga mais verdadeiramente à vida. Um mistério para se dizer, mas é o que temos de mais direto na ligação a esse mistério do que é a vida. É, por assim dizer, o interior de tudo aquilo que se move no tempo num fluxo contínuo. O intelecto através da ciência congela a realidade em conceitos e abstrações. A intuição, pelo contrário, penetra no movimento, acompanha a vida por dentro. Instinto tornado consciente de si: isto mostra que Bergson vê a intuição como uma evolução do instinto, um salto qualitativo da vida que, ao chegar ao humano se transforma em compreensão interior do mundo.

Kant = Usa a palavra “intuição” - Anschauung - num sentido totalmente diferente. Não místico, nem psicológico, mas epistemológico. Para Kant, a intuição é a forma como o sujeito apreende o objeto na sensibilidade. É a base do conhecimento empírico. Não é um “sexto sentido” ou “pressentimento”, mas a capacidade de receber representações imediatas: ver, ouvir, tocar são intuições sensíveis. O espaço e o tempo, para ele, são as formas puras da intuição humana, isto é, moldes internos que estruturam toda a percepção. “Intuição é a representação imediata de um objeto.” Kant, diz isso na Crítica da Razão Pura. Assim, Kant distingue intuição sensível de intuição intelectual. É como se a intuição sensível estivesse acessível a todos os seres humanos, acessível a gente comum; ao passo que a intuição intelectual fosse um privilégio acessível a uma percentagem de gente privilegiada, a que os antigos chamavam sábios ou profetas. O homem comum, portanto, intui apenas o que aparece, nunca a coisa em si.

Maurice Merleau-Ponty = A intuição é como o corpo em presença. Merleau-Ponty faz a síntese: biologia + fenomenologia. Ele retoma o sentido kantiano da percepção, mas de uma forma corpórea ou embutida na carne. A intuição é o contacto direto e corporizado com o mundo, antes da linguagem e do pensamento. Quando comtemplo uma paisagem, o meu corpo já compreende as suas formas pela mera presença. O mundo incorpora-nos, fazemos parte dele, não estamos separados. Intuir é ser tocado pelo mundo, e não apenas percebê-lo. O corpo é o lugar dessa reciprocidade. A intuição é a presença total do ser em si mesmo. Merleau-Ponty diz isso na Fenomenologia da Percepção. Assim, podíamos dizer que a intuição é como o fio contínuo da vida. Desde os primeiros seres vivos, há uma sabedoria implícita que orienta a sobrevivência e a adaptação. Esse saber não é pensado nem aprendido: é vivido. O instinto é a primeira expressão dessa sabedoria da vida, um saber fazer sem consciência.

À medida que a complexidade dos organismos em evolução aumentou, o instinto começou a abrir espaço à experiência. Passou a ser mais do que apenas ação reflexa. Quando a vida se reflete sobre si mesma – isto é, quando o homem aparece –, o instinto transforma-se em intuição: uma consciência obscura, mas já simbólica da direção das coisas. Podemos imaginar a evolução do conhecimento como uma escada e os seus degraus: Instinto, como o saber da espécie, do corpo e dos genes, atua automaticamente, sem deliberação. Intuição, como o saber do indivíduo em sintonia com o todo. É a antecipação, o pressentimento, o sentido da direção. Une a memória inconsciente, a percepção sensível e o campo simbólico. Razão, é o saber que se explica a si mesmo. É o conhecimento discursivo, analítico, que traduz em conceitos o que a intuição capta de forma imediata. A razão não é superior, mas posterior. É como o eco da compreensão ou entendimento, mais profunda e silenciosa.

Há um momento na evolução da vida em que surge a intuição, acrescentando, ao ditame da sobrevivência, a verdade. O homo sapiens começa a intuir não apenas o útil ou essencial, mas também o supérfluo: o bom e o belo. O sentido de justiça deriva de uma síntese ou simbiose do bom e do belo. Dito por outras palavras: ética e estética como sentido simbólico da vida. É neste ponto que o "físico" passa a “metafísico”. Uma comunhão direta com o Ser. Os místicos antigos chamaram-lhe iluminação. Os filósofos modernos chamam-lhe consciência pura.

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