sábado, 15 de junho de 2019

Em defesa da memória


Em maio passado, António Guterres testemunhou pessoalmente o drama de quatro países do Pacífico Sul durante um périplo que o levou à Nova Zelândia, Ilhas Fiji, Vanuatu e Tuvalu, onde foi feita a fotografia da capa da “Time”. Não foi uma simples visita. António Guterres é um entusiasta confesso do multilateralismo, ativamente empenhado em contrariar essa letargia. É esse o reconhecimento que a “Time” lhe faz.A revista “Time” acompanhou o secretário-geral da ONU num périplo pelo Pacífico onde há países que, face às alterações climática, lutam para não serem engolidos pelo mar. Na capa, António Guterres surge em pose dramática, com a água do Pacífico já pelos joelhos. Mas a mensagem é de esperança: “Os países mais atingidos pelas alterações climáticas estão a lutar — e a obter resultados”, diz a “Time”.

Fez no mês de maio passado 12 anos que inaugurei este blogue -“A Fisga” - com reflexões mais à volta da ciência e da filosofia, em boa parte estimulado por Carlos Fiolhais e Desidério Murcho, enquanto participava como comentador regular no blogue “De Rerum Natura”, que eles haviam criado em março do mesmo ano.

A propósito do tema assinalado em epígrafe, e para recordarmos qual era o ambiente intelectual no meio dos cientistas “ortodoxos” acerca do tema do “Aquecimento Global”, resolvi revisitar algumas etiquetas desses tempos iniciais para avaliar melhor quão conscientes já nessa altura estávamos dos contributos que a atividade humana estava a dar ao aquecimento do planeta Terra. Para nosso espanto, em 2007 e 2008 ainda havia dúvidas na mente de muita boa gente e com bons créditos científicos, se os ecologistas tinham razão.

Lia-se num editorial do blogue, com o título “Aquecimento Global, uma lufada de ar fresco”: http://dererummundi.blogspot.com/2008/11/aquecimento-global-uma-lufada-de-ar.html#comment-form

«Sabia que - exactamente ao contrário do que é voz corrente - nos últimos 7 anos a temperatura global não aumentou? E que 2008 foi o ano mais fresco da década? . . . O que é extraordinário, mesmo preocupante, é tudo isto continuar a ser omitido pelas entidades responsáveis, como o IPCC ou o Prémio Nobel Pachauri. Fechando os olhos aos factos. Tendo havido alguns comentários críticos, houve outros que reforçaram a ideia com afirmações como: “E mais grave ainda é todo o sistema educativo agora parecer aceitar como dogma todo este belo conto de fadas do aquecimento global... Dou pelos meus filhos a dizer-me que não tarda temos os glaciares transformados em mar e Portugal submergido... E dizem isto com uma certeza absoluta de quem tem todas as respostas na ponta da língua, porque sim, porque é o que vem escrito nos manuais da Escola!!!! Isto, isto é que é terrorismo e ninguém me tente convencer do contrário!”»

E em 20 de maio de 2008 era postado este texto do físico Freeman Dyson:
http://dererummundi.blogspot.com/2008/05/dyson-sobre-o-aquecimento-global.html

Do que li do texto de Freeman Dyson, apresentado por Carlos Fiolhais com a seguinte introdução : «Sobre o controverso assunto do aquecimento global, que já inflamou as páginas deste blogue, vale a pena ouvir a voz sábia e ponderada do físico Freeman Dyson, professor jubilado do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, no sempre muito interessante "The New York Review of Books" (para mim o melhor jornal cultural do mundo). Termina assim o seu artigo em que analisa dois livros recentes sobre o aquecimento global:

“Infelizmente, alguns membros dos movimentos ambientalistas também tomaram como ponto de fé que o aquecimento global é a maior ameaça à ecologia do nosso planeta. É esta a razão, porque os argumentos sobre o aquecimento global se tornaram azedos e apaixonados.”»

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Sentido moral

As descobertas não acontecem apenas ao nível da ciência. Também acontecem no campo da ética. A maioria das descobertas mais valiosas devemo-las a acontecimentos casuais, ou até acidentais. Por conseguinte, completamente à margem das esperanças ordinárias.

Ainda que fôssemos peritos em ética, não era por aí que nos iríamos comportar de maneira moralmente correta. Conseguimos ter bons comportamentos corretos da mesma maneira que uma criança consegue falar a sua língua nativa corretamente. E da mesma forma não precisamos de tirar um curso de cinematografia, ou de ler uma enciclopédia de cinema de ponta a ponta para sabermos apreciar um bom filme.

Gostamos de descrever nossos valores em termos de uma moral absoluta, mas a realidade é mais complexa. Ainda que certas intuições morais sejam universais, é grande o espaço que a cultura tem para moldá-las. Nem Aristóteles nem Cristo puseram em causa a escravatura. Como e por que o espírito do tempo de uma sociedade se modifica, é um mistério. A luta contra o racismo foi vencida? Uma coisa se pode dizer: tal estádio cultural é independente da vontade do legislador. É por isso que é mais frequente as leis aparecerem só depois de a sociedade ficar madura para uma tal viragem na conduta social. Obviamente, sempre sobram grupos marginais que resistem à mudança. Mas, enquanto se limitarem a vociferar, sem irem das palavras aos atos, não vale a pena gastar recursos públicos com eles.

Uma das crenças que se tornou tácita nos tempos da modernidade foi a crença indefetível na razão. Mas o uso da racionalidade tem os seus limites, inclusivamente no campo da moral. E quando se abusa da razão em situações impenetráveis à razão, o resultado pode ser ainda mais pernicioso do que se ela não se tivesse intrometido.

É numa série de crenças e expectativas inconscientes, a que também poderemos chamar inatas ou intuitivas, que a nossa conduta diária repousa. É um erro pensar-se que passamos o dia todo a tocar a nossa vida para a frente usando continuadamente a razão. E na base da nossa vida fazem parte crenças, que apesar de aparentemente serem tão triviais, têm ocupado o ofício dos metafísicos desde Platão até aos nossos dias. Por exemplo, todos nós acreditamos que o mundo que nos rodeia é real e não ilusório; que amanhã o sol se vai levantar como sempre se levantou; que mantemos a nossa identidade desde que nascemos, ou que somos a mesma pessoa ainda que tivéssemos estado e saído do coma passado muitos dias. Tudo isto são lugares comuns do nosso sentido do óbvio, mesmo que algumas dessas crenças tenham passado remotamente por ideias muito discutíveis, mas que acabaram por se transformar em crenças óbvias ao fim de muito tempo de discussão por parte de metafísicos como Platão ou Descartes. E isto é assim, independentemente de ainda andarem por aí metafísicos a afirmar com seriedade que essas crenças tácitas com as quais contamos com tanta alegria não só não são fiáveis, mas além disso serem literalmente falsas. Mas como dizia David Hume, essas metafísicas não devem moer-nos o juízo.

Todos nós desconfiamos que à volta da nossa vida paira o nevoeiro da incerteza. Nunca podemos ter qualquer certeza acerca da validade de decisões que hoje tomamos para segurança do nosso futuro e de todos os outros que contam para nós. Pressupor que a nossa existência decorre de um terreno perfeitamente plano e determinado a levar-nos por vias bem definidas se as procurarmos pelas melhores razões que a priori nos vão fazer chegar às metas certas, é próprio de uma mentalidade racionalista fanática. Não há forma racional de fazer descobertas. As descobertas, como subproduto que são, ocorrem a um indivíduo quando não são procuradas. Ou então quando se está à procura de outra coisa.

William Kingdon Clifford, em “The Ethics of Belief”, defende que é do ponto de vista epistémico irresponsável, e um erro moral, acreditar seja no que for sem provas suficientes. Caso as provas sejam insuficientes, é irresponsável, do ponto de vista epistémico claro, acreditar só porque isso nos faz felizes, ou porque gostaríamos que fosse verdadeiro, ou porque temos medo de levar a sério a hipótese de não o ser. Há uma diferença capital entre acreditar que se sabe e saber realmente. Sem provas não há conhecimento, mas o que dizer da crença? A posição de Clifford é que também neste caso se exige provas, sob pena de se cair na irresponsabilidade epistémica. Um agente tem uma crença responsavelmente quando tem boas provas, mesmo que tenha tido azar epistémico e afinal a crença seja falsa; e tem-na irresponsavelmente quando não tem boas provas, ainda que por sorte seja verdadeira.

Quem tem crenças extraordinariamente fortes apesar de dispor apenas de provas muitíssimo fracas é epistemicamente irresponsável. Ser preconceituoso ou dogmático inclui ter crenças muito fortes e recusar-se a abandoná-las ou enfraquecê-las, apesar de se ter confrontado com a fraqueza das provas a seu favor, ou com a força das contraprovas. A responsabilidade epistémica exige a humildade de se reconhecer que talvez nos tenhamos enganado, o que por sua vez dá trabalho porque exige a procura cuidadosa das melhores provas e contraprovas, ao invés de formar opiniões à toa, seja com base exclusivamente na cor política aleatoriamente associada a essa ideia, seja com base noutros fatores inapropriados.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Não vale tudo


No filme de Martin Scorsese – “Tudo Bons Rapazes” – o protagonista quase no começo lança a seguinte afirmação: “Desde que consigo lembrar-me, sempre quis ser um gangster”.

Estão a decorrer no Parlamento as audições na comissão de inquérito ao caso Caixa Geral de Depósitos. Nas últimas horas conheceu-se a versão de Filipe Pinhal que foi Presidente do BCP durante cerca de 6 meses. Disparando em todas as direções afirma: Houve uma teia urdida em vários pontos, que teve um diretório claro constituído por José Sócrates, Teixeira dos Santos e Vítor Constâncio, e depois vários operacionais, cada um a fazer o seu papel”. Pinhal sugere que Berardo terá sido “influenciado”, para reforçar a posição no BCP e seguir uma determinada linha. José Sócrates, na TSF, desmente e fala em Velhaca maledicência”.

Não basta que alguém lhe apeteça ser algo para que tenha direito a sê-lo. Um dos requisitos mais claramente exigíveis a qualquer estilo de vida é que a sua realização não arraste consigo um ataque aos direitos dos outros, uma incursão devastadora nas suas liberdades. As metas pessoais cuja consecução envolve a infração das normas sociais de convivência não podem ter cabimento numa sociedade livre e justa. Uma forma de vida que é presidida por objetivos que, muito claramente, implicam prejudicar os outros não é uma forma de vida admissível, nem minimamente aceitável. É aqui que devemos rejeitar a falácia dos falsos apelos à tolerância.

Ronald Dworkin – 1931-2013, professor de Direito e Filosofia na Universidade de Nova Iorque e de jurisprudência na University College London – defende que não só as metas pessoais devem ser moralmente impolutas, mas que também devem sê-lo os meios que se empreguem para alcançar tais metas. Por mais que levemos uma vida excitante e centrada no umbigo, essa vida acaba por ser reprovável quando é construída sobre iniquidades que não podemos esconder da nossa consciência.

A dor do tédio como fonte de maldade


Alex e os seus “droogs” estão aborrecidos. Chegada a noite, é hora de abandonar o bar e ir à procura daquelas situações capazes de lhes satisfazer as necessidades de prazer. A noite está serrada, e não tarde entrarem em ação, ao passar por um velho mendigo bêbado. Espancam-no à bastonada, e desatam a fugir para não serem apanhados pela polícia. E por agora é suficiente, o início do filme Laranja Mecânica. Alex acaba por ser preso. A partir daqui vai servir de cobaia para testar um novo método de “lavagem ao cérebro”, cujo interesse é transformar lobos em cordeiros inofensivos.
Ao fim de duas semanas de tratamento é feita uma demonstração pública na presença dos governantes. O público que está a assistir à demonstração fica encantado com os resultados da experiência. A única voz dissonante é o capelão da prisão, que interpela o ministro avisando que converteram Alex num inválido moral. Dali em diante não será capaz de praticar o mal, mas não por livre arbítrio. Ao ser obrigatoriamente bom, Alex não tem escolha. O ministro está pouco ralado com considerações de ordem ética, porque o objetivo do governo é suprimir a criminalidade. Chega então a hora de restituir a pseudoliberdade a Alex, longe de adivinhar o que o espera lá fora, a paga com juros, pela maldade que fez aos outros. E todos se vingaram, um a um até ao último, o intelectual que ficou numa cadeira de rodas e perdeu a mulher por causa dele. E vinga-se da forma mais sofisticada de todas. Submete-o, com o som da aparelhagem de música no máximo, à audição da nona sinfonia de Beethoven, a música que o punha em pânico desde que ficou fóbico após o (des)tratamento. Retorcendo-se de dor, não suportando mais o sofrimento, lança-se da janela do sótão para o vazio da noite. Não morre da queda. Todo partido, nem tudo é mau, as fobias desapareceram com o choque.  Todas as fobias desapareceram com a tremenda queda. Volta a ser uma pessoa livre para cometer crimes, sabendo muito bem distinguir o bem e o mal.
Este é um caso que aborda o prazer de fazer o mal. Comecemos primeiro por tecer algumas considerações acerca do mal, para depois ir ao tema do prazer. O que leva jovens, que até uma certa idade são “doces” e “amigáveis”, a praticar atos de terror? Nas últimas décadas, psicólogos e sociólogos que se dedicaram a estudar “o mal” chegaram a conclusões interessantes. A mais polémica é a de que o “puro mal” só existe nas nossas cabeças. De um modo geral, até o mais frio assassino acredita ter razões que justificam o seu ato. A personalidade, é claro, importa. Psicopatas por exemplo, têm maior chance de envolver-se em agressões (as cadeias têm proporcionalmente mais pessoas com esse perfil do que a população geral), mas isso é só parte da história. Experiências conduzidos por psicólogos sociais mostraram que mesmo pessoas tidas como normais cometem verdadeiras barbaridades, se a situação as levar a isso. Philip Zimbardo, por exemplo, fez com que estudantes de Stanford representando o papel de guardas numa penitenciária fictícia logo praticassem abusos muito reais contra seus prisioneiros. O que a literatura psicológica mostra é que a maioria dos atos de violência e crueldade pode ser reduzida a poucas causas principais. Na classificação proposta por Jonathan Haidt, as duas primeiras são ambição e sadismo, mas elas têm pouca relevância prática. É raro alguém matar só para ter lucro e mais ainda para extrair prazer. As outras duas são alta autoestima e idealismo moral. Curiosamente, são duas características que tentamos incutir em nossos filhos desde pequenos. E, quando elas se combinam para produzir um sujeito cheio de si acreditando agir a mando de um Deus ou de uma ideologia infalíveis, o pior acontece.

E o prazer? O prazer pode ser visto como um fenómeno cinético, que consiste na viagem da incomodidade até à comodidade. A comodidade é um estado de equilíbrio que atingimos tanto quanto nos livramos das sobre-estimulação, como da infra-estimulação. Ora, o tédio é uma infra-estimulação que nos incomoda. Bem, em casos extremos, a privação sensorial a que são submetidos prisioneiros em tortura, pode chegar a ser extremamente dolorosa: enxaqueca, náuseas, fadiga, alucinações, confusão mental. Por conseguinte, o prazer é um fenómeno efémero, transitório. Dura enquanto dura a viagem a caminho da comodidade. É claro que, quanto mais crua for a incomodidade, mais intenso será o prazer com a obtenção daquilo que vai sanar a incomodidade. Mas se nos instalarmos preguiçosamente nas pegajosas seduções da comunidade, privamo-nos com isso da capacidade de sentir prazer. A comodidade quando é mantida para além da conta, deixa de o ser. Aquilo que era comodidade transforma-se insidiosamente em falta de estímulo. E a falta de estímulo pode transformar-se na disposição tanto para a prática de verdadeiros atos de heroísmo, como para a devassidão desabrida em atos de crueldade e tortura.

terça-feira, 11 de junho de 2019

A essência fundamental da identidade pessoal


Sharbat Gula, afegã, perdeu os pais durante um bombardeamento soviético. Em 1985 foi capa da revista National Geographic, na altura com 13 anos de idade. O seu olhar não deixou ninguém indiferente. Em janeiro de 2002, uma expedição da National Geographic viajou ao Afeganistão, com a missão de localizar Gula. McCurry, o fotojornalista, ao saber que o campo de refugiados Nasir Bagh estava para fechar, perguntou por ela aos outros refugiados que ainda moravam no campo. Um deles conhecia o irmão de Gula, e conseguiu fornecer pistas da sua localização. Portanto, passados 16 anos, tendo ela então 29 anos de idade, voltou a ser encontrada. E foi imediatamente reconhecida. Apesar de o seu rosto agora muito diferente, o de uma mulher de 30 anos, marcado pelas provas e pelas agruras por que teve de passar, os seus olhos constituíam aquele fator de continuidade que permitiu a sua identificação. Em 26 de outubro de 2016, Gula, viúva com 4 filhos, foi detida no Paquistão pela Agência de Investigação Federal (FIA) por viver no país usando documentos falsos. Ela chegou a ficar presa por 15 dias e foi obrigada a pagar uma multa. E foi na sequência disso que foi deportada e entregue ao governo do Afeganistão por determinação de um juiz paquistanês.

Há uma questão fundamental na essência da identidade pessoal que falta nos textos dos autores da área das Ciências Cognitivas, para além da mera dimensão neurobiológica. Para a maior parte destes autores, ser pessoa equivale a ter uma identidade pessoal corpórea, entendendo-se o corpo no sentido fundamentalmente biológico. Os limites do Eu são os limites do corpo físico cujo funcionamento é na sua totalidade objecto de estudo das ciências naturais.

Esta posição compreende-se em parte como reação à conceção tradicional e metafísica do ser humano que considerava os elementos constitutivos do self, como a mente, ou a alma, algo de natureza não corpórea, sendo o corpo biológico visto numa perspetiva instrumental. Recorde-se que, para S. Tomás, a alma era considerada incorpórea e dotada de poderes intelectuais. Neste cenário, o que se passava no corpo biológico pertencia ao domínio dos meros acidentes, tornados possíveis porque a alma era a forma do mesmo corpo. Os autores das Ciências Cognitivas assumem uma posição de negação total desta conceção e por isso é natural que afirmem que tudo o que define o ser humano tem apenas e só uma natureza biológica. Nada mais.


A esta conceção estritamente biológica, falta, porém a dimensão relacional – uma dimensão que não é apenas mais uma característica do ser humano a juntar a tantas outras, mas uma sua dimensão realmente constituinte, o fundamento real e objetivo do self., fora do contexto de um paradigma dualista, isto é, no contexto de um paradigma que não tenha necessidade de recorrer ao dualismo matéria/espírito.


O comportamento não existe nas suas partes separadas, como os neurónios individuais. De facto, um neurónio individual é mudo. É a complexa interação de muitos deles que é capaz de coisas como a consciência.


Os estudos sobre a empatia têm sido objecto de interesse, quer no interior das Ciências Cognitivas. A capacidade de empatia é constitutiva do ser humano. Quando tal capacidade não é desenvolvida desde os primeiros anos de vida, isso constitui um grande obstáculo para que o mesmo ser humano possa entrar numa relação recíproca com os outros e de ter, por conseguinte, um comportamento ético verdadeiramente pessoal. O carácter recíproco e relacional constituinte desta relação não é geralmente reconhecido.


Recentemente, têm vindo a lume trabalhos que exploram a dimensão relacional da pessoa, aprofundando aquilo a que em Ciências Cognitivas se poderia chamar estudos da segunda pessoa. Com efeito, as Ciências Cognitivas, como qualquer ciência, têm um discurso tipicamente de terceira pessoa, isto é, descritivo e explicativo dos factos que um investigador ou uma equipa de investigadores observa na natureza em geral e nas pessoas em particular, independentemente da relação estabelecida entre os investigadores e o sujeito da investigação. Aliás, nalgumas ciências, especialmente em psicologia, a eliminação de qualquer relação pessoal com o sujeito em estudo é considerada condição necessária e essencial para a objetividade e o sucesso desse estudo. Outras vezes, a relação, qualquer que seja a sua natureza, é considerada irrelevante para o estudo em questão, como no caso das neurociências, por exemplo.


O ressurgir do interesse pela consciência tem-se centrado sobretudo na relação entre as perspetivas da consciência relacionadas com a primeira-pessoa e com a terceira-pessoa, sendo frequentemente esquecidas as dimensões intersubjetiva e interpessoal da experiência consciente.


A consciência humana individual forma-se numa inter-relação dinâmica entre o Eu e o Outro e é, por conseguinte, inerentemente intersubjetiva. O encontro concreto do Eu com o Outro envolve fundamentalmente a empatia, entendida como um género de intencionalidade único e irredutível. A empatia é a condição prévia (a condição de possibilidade) da ciência da consciência. A empatia humana é inerentemente dinâmica: abrem-se-lhe caminhos de modos de intersubjetividade não egocêntricos e transcendentes. O progresso real na compreensão da intersubjetividade requer a integração dos métodos e das descobertas das ciências cognitivas, da fenomenologia, e das psicologias contemplativas e meditativas da transformação humana.


Não se trata aqui de fazer um aproveitamento da empatia num sentido algo místico, misterioso ou sobrenatural para recuperar as velhas teses metafísicas sobre identidade pessoal. Trata-se apenas de alargar o âmbito de estudo da pessoa, colocando-o num contexto muito mais complexo que aquele que é objecto das Ciências Cognitivas, sem que isso signifique uma qualquer ascensão a um “outro mundo” sobrenatural. Mas uma abordagem do ser pessoal e da ética humana na perspetiva da segunda pessoa representa, sem dúvida, uma abertura para um “outro mundo” que extravasa o das Ciências Cognitivas “clássicas”, visto que estas se interessam pelo mundo visto apenas na perspetiva da terceira pessoa.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Cuidado com o encarniçamento terapêutico


Se fosse necessária uma teoria para explicar o valor da vida, nunca a encontraríamos. Estão sempre a surgir novas tecnologias que vêm afrontar o princípio contra as medidas heroicas de reanimação pouco sensatas em “velhinhos” frágeis, afásicos, hemiplégicos, eventualmente com Alzheimer, que se pudessem emitir a sua vontade quereriam morrer em paz. Princípio filosófico esse, mais sereno em relação à vida e ao seu sentido mais profundo, que se perdeu porque a competição económica desenfreada ditou que os educadores preterissem a disciplina da Filosofia nas escolas em prol das Matemáticas. Esses princípios filosóficos seguiam o preceito aristotélico do epistema – que diz respeito à aquisição de teorias; e da fronesis – que se refere à avaliação do caso singular. Daí aquelas duas máximas muito conhecidas: “médico que só sabe medicina nem medicina sabe”; e “em medicina cada caso é um caso”.

O receio de cometer erros, mas, mais do que isso, o receio de ser acusado de negligência tem como consequência a prática de uma medicina de declarada natureza defensiva, obrigando ao recurso a exames auxiliares desnecessários e potencialmente perigosos e, como consequência inevitável, o aumento da despesa pública.

É claro, outra coisa são os erros. Mas não nos podemos iludir com a utopia da medicina sem erros. Isso seria impossível porque a nossa ignorância é infinita. O que é possível é a margem de ignorância ser menor do que a que existe. E a ignorância deve ser combatida com o maior empenhamento de universidades, hospitais, órgãos profissionais e sociedades científicas. De um lado o pensamento estruturado e crítico. E do outro a praxis pela demonstração da competência.

Médicos e enfermeiros vão ter um "botão de pânico"


Foi notícia há dois dias. Os médicos e os enfermeiros do Serviço Nacional de Saúde (SNS) vão ter um "botão de pânico" para acionarem sempre que se sentirem ameaçados por um utente. A violência contra os profissionais de saúde é considerada um problema emergente para a Organização Mundial de Saúde, sendo uma realidade não apenas em Portugal, mas em todo o mundo. A título experimental, já estão três unidades com este dispositivo de proteção. Depois serão implementadas, de uma forma gradual, em todo o país.

Os números reportados de episódios de violência (desde assédio moral a insultos e ameaças e até agressões físicas) indicam que o problema se está a agravar ou, pelo menos, que os profissionais se estão a queixar mais.

Mais de 500 casos de violência contra profissionais de saúde foram registados nos primeiros nove meses do ano passado, segundo dados da Direcção-Geral da Saúde. No terceiro trimestre de 2017, o sistema que regista os incidentes contra profissionais de saúde no local de trabalho tinha 3130 notificações, quando no final de 2016 as notificações não chegavam às 2700. Segundo os dados da Direcção-Geral da Saúde, a grande maioria dos incidentes de violência contra profissionais de saúde é relativo a assédio moral (75%), seguindo-se a violência física (11%) e a violência verbal (8%).

Entre as soluções propostas contam-se ações de proximidade com a comunidade, formação, alterações na sinalética, alterações de equipamentos e nos edifícios, “botões de pânico” ou campanhas de informação.

Desde sempre que se sabe que qualquer serviço de urgência de um hospital em qualquer parte do mundo é um campo de batalha. Daí ninguém se espantar com o turnover do pessoal das unidades de cuidados intensivos e de urgência ser muito maior do que em qualquer outra área de um hospital. Mas isso tem a ver com os próprios utentes – agredidos, violados, maltratados, batidos, crianças e velhos esquecidos e negligenciados – não com os profissionais de saúde. Agora trata-se dos próprios profissionais que sentem o doente como inimigo, profissionais esses que por via dos osos de ofício não era qualquer ameaça que os deitava abaixo (leia-se stress e burnout). Só nos primeiros seis meses deste ano, as notificações ascenderam a mais de quatro centenas, quando em 2017 o sistema online da DGS registou um total de 678 casos.

O stress de longas horas de trabalho em luta de trincheira contra a doença, contra o desastre. É importante reconhecer que o próprio exercício profissional é hoje em dia mito mais violento por via da tecnologia empregue. E violentas são também as escolhas morais que são impostas aos médicos pela limitação de recursos e pela pressão que a sociedade, melhor conhecedora dos seus direitos, por vezes com algum sentimento de abuso, os pressionam, para não dizer os obrigam com ameaças de tribunal, a virarem-se do avesso ao ponto de praticarem o uso de meios de diagnóstico e tratamento em excesso, com o fito de salvarem de algum modo a pele. Está bem demonstrado que nas sociedades avançadas há diferenças substanciais quanto à prestação dos cuidados médicos e que os economicamente mais privilegiados a eles têm acesso mais fácil.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Dance with the Stranger


No Jantar do Bispo, um dos Contos Exemplares de Sophia de Mello Breyner Andresen, um mendigo bate à porta da cozinha da Casa, quando no relógio da parede batiam as dez horas da noite. Gertrudes, a cozinheira foi abrir. Era mais um pobre, e ela tinha ordem de dar de comer a qualquer pobre que batesse à porta enquanto houvesse luz acesa na casa. Por isso disse-lhe para entrar. O mendigo, com a roupa encharcada da chuva, escorria água pelo chão da cozinha, o que muito irritou a cozinheira. Gertrudes apontou um lugar na mesa e ordenou que se sentasse, enquanto lhe ia aquecer a sopa. Então ele disse: “Preciso de falar com o Dono da Casa”. Gertrudes respondeu-lhe que isso era impossível, além do Bispo, a casa naquele dia tinha uma visita ainda mais importante que o Bispo. Mas ele continuou a insistir, que precisava imperiosamente de falar sem falta essa noite com o Dono da Casa. E a tempestade lá fora adensava-se com relâmpagos e trovões ainda mais fortes. E à medida que os outros criados entravam na cozinha ele repetia com insistência o mesmo pedido. A velha Joana, uma antiga criada que mal podia andar, até ali calada junto à lareira, finalmente disse: “Ai dos pobres! Têm fome e frio, e há sempre uma razão para lhes dizer que não. Se pudesse subir a escada, era eu que ia lá acima pedir por ti”. Um novo relâmpago pôs a Casa às escuras. Gertrudes riscou um fósforo, tirou do armário dois castiçais, e acendeu as velas. […] Então apareceu o filho do Dono da Casa, que ao inteirar-se do caso quis ajudar o mendigo. Prometeu levar-lhe o recado a seu pai. Que recado era esse? Nesse caso o mendigo disse: “Diz ao teu pai que venho da parte do Padre de Varzim”. A verdade é que o Padre Varzim havia sido vítima de manobras comprometedoras em que estavam envolvidos o Bispo e o Dono da Casa. Para espanto de todos o mendigo desapareceu sem tocar na comida. E não quiseram acreditar quando verificaram que o tal Homem Importante também tinha desaparecido sem deixar rasto. Então, a velha Joana voltou a falar e disse: “Quem sabe! Talvez o mendigo fosse um enviado de Deus, e o Homem Importante fosse realmente o Diabo!”

Entra em cena de novo o Outro. Nos tempos de mitos e de deuses que podiam tomar a forma humana e comportarem-se como tal, nunca se sabia se aquele viajante que se aproximava, aquele forasteiro, era homem ou algum deus parecido com os humanos. Essa incerteza, essa ambivalência é uma das fontes mais antigas da cultura de hospitalidade que recomendava que se manifestasse toda a amabilidade ao visitante. Vemos isso na Odisseia de Homero, a hospitalidade que encontrava Ulisses durante a sua viagem de retorno a Ítaca. Quando aparecia qualquer mendigo ou vagabundo forasteiro, investigavam primeiro se não era um deus. Não se podia perguntar o nome sem dar a hospedagem primeiro; mas depois de se ter respeitado a sua divindade, descia-se às perguntas humanas. A isto se chamava hospitalidade, uma das práticas e virtudes piedosas. Entre os gregos de Homero não havia um homem último. Havia sempre primeiro o divino.

O eterno problema interno da Europa, que na cultura europeia se resumiu sempre ao problema ético de cada um de nós. Conquista, colonização, domínio e outras dependências, sempre foram uma constante ao longo da nossa história. Durante cinco séculos a Europa dominou o mundo a todos os níveis: político, económico e cultural. E impôs ao Outro línguas e fés cristãs. Em meados do século XX, depois de duas “guerras quentes” começaram a aparecer as faturas para cobrar: o processo de descolonização, e deu-se início a uma guerra fria que terminou às portas do século XXI com o estrondo da queda de um Muro, e o fim da divisão do mundo em dois blocos.

Sempre foi assim desde aquele momento longínquo em que a nossa tribo de quarenta pessoas se encontrou com outra tribo de quarenta pessoas que até ali se desconheciam. De repente passamos a saber que afinal existiam outros seres parecidos connosco no mundo. E se numas ocasiões construímos grandes muralhas da China, torres e muros de Babilónia, arames farpados e muros de Berlim, ou apartheids; noutras ocasiões desenhamos rotas da Seda, do Âmbar, da Pimenta, ou as rotas do Sara. Qualquer que fosse o lugar em que as pessoas se encontrassem para intercâmbio de ideias, pensamentos e mercadorias, descobriam-se objetivos e valores comuns.

A Democracia torna-se uma moda. Ninguém se declara abertamente contra ela, e até os partidos mais autocráticos utilizam o adjetivo “democrático” no nome. E o mundo entra em movimento numa escala nunca-antes-visto na história. Das lentas rotas marítimas passou-se para as rotas aéreas. E ao mesmo tempo aumentaram as desigualdades e a consciência das mesmas. Essa consciência por sua vez, em vez de reagir por meio de confrontos militares clássicos, reagiu pura e simplesmente por dois meios: terrorismo e migração para os países mais ricos. A febre migratória, tão característica do momento presente, com avultado número de vítimas e custo de vidas afogadas no maior cemitério do mundo da atualidade: o Mediterrâneo.

Hoje tudo se estrutura em rede. Mas a rede dificulta a definição das identidades. E assim se tornam os europeus suscetíveis ao discurso nacionalista, ou racista, que vê o Outro como um perigo, e não como um amigo, que precisa agora de ajuda, mas que depois se transformará numa oportunidade demográfica.

A aceitação da multiculturalidade é, obviamente, um progresso gerador de um clima favorável à promoção de culturas outrora desprezadas e maltratadas. Mas isso esconde várias ameaças: o renascimento do religioso, bem visível em vários países, que se consubstancia num retorno à tradição e ao fundamentalismo; essa dinâmica de raça, nacionalidade e religião é aproveitada por nacionalistas e racistas para defenderem a sua cultura por meios violentos e hostis próprios da xenofobia.

Em suma, eis o novo mapa-mundo multicolor e extremamente complexo. Como é que os europeus estão preparados para esta dança entre estranhos a uma escala bíblica, onde Deus misturou, não apenas línguas, mas também culturas, costumes, paixões e interesses. Dançarinos ambivalentes que unem em si um eu e um não-eu, ele próprio e o Outro, o seu Outro e o Estranho. Nós todos, habitantes do nosso planeta, somos uns e somos Outros para os Outros, eu perante eles, e eles perante mim.

terça-feira, 4 de junho de 2019

As pessoas felizes depois dos tempos da . . .



Mandem alterar os títulos das notícias que foram publicadas na manhã de 3 de junho de 2019. Agustina não morreu. Agustina vive, Agustina é, Agustina somos nós. [Joana Beleza – in Expresso]
«Há muitas coisas belas na terra, mas nada iguala a recordação de um dia de Verão que declina, e temos onze anos e sabemos que o dia seguinte é fundamental para que os nossos desejos se cumpram. Quem conservar este sentimento pela vida fora está predestinado a um triunfo, talvez um tanto sedentário, mas que tem o seu reino no coração das pessoas. O coração das pessoas! Queremos dizer, em regra, a sua fantasia, equivalente a uma fraqueza, ou mórbido impulso de ceder perante os outros. Mas é, na verdade, a sua aspiração a um amor desesperado das realidades da vida, diferentes da maneira em que elas se cumprem.»

Nel, é uma mulher que não é feliz do mesmo modo que os outros, homens e mulheres, mas que quer ser feliz, para o que terá de deixar de ser aquilo a que estava destinada. Há qualquer coisa de premonitório neste romance. Pelos costumes das pessoas, pelos sentimentos, pelas relações entre parentes e familiares, percebe-se que já muita coisa mudou ou está em mudança antes mesmo de a revolução acontecer. A revolução, aliás, é o coroar de um processo de mudança, mais do que o seu começo. Em algo de essencial, de fundamental, isto é, nos sentimentos, as coisas já eram diferentes antes de 1974.

No final dos anos 90, no tempo da Expo e de Guterres, Mário Soares e Mitterrand, podíamos dizer que, de certo modo, as pessoas eram felizes. Apesar de os bens materiais não satisfeitos completamente, era bom porque o próprio excesso de consumo engendra insatisfação e infelicidade. Se tudo estivesse disponível a qualquer momento as pessoas considerariam essa disponibilidade como uma evidência da vida e deixariam de apreciar a sorte que tinham. A vida seguia, portanto, o seu curso regular e previsível, sem abalos nem grandes esforços. Cada um tinha o direito de se retirar e ir jogar uma partida de gamão, ou ir para a praia. Tudo o que corria mal era imputado ao Outro; ninguém se sentia verdadeiramente responsável.

A felicidade no Ocidente é um conceito pagão, em que a finalidade da vida consiste em ser feliz. E o ser feliz tem a ver com o princípio do prazer. Quando o paganismo ocidental se cristianizou, a sua insistência num Além minou esse princípio. E então a felicidade no Ocidente passou a ser hipócrita, as pessoas sonhando com coisas que não desejam verdadeiramente. Assim, aquelas pessoas intelectuais, os privilegiados, quando formulam slogans como: pleno emprego e verdadeiros direitos para os imigrantes, realmente não estão a querer vê-los satisfeitos. Porque eles sabem muito bem que a implementação dessas medidas teria como repercussão uma vaga de milhões de recém-chegados, provocando desse modo uma reação de índole “racista” na classe trabalhadora, que por sua vez iria comprometer o seu estado de vida privilegiada. Por isso, o seu verdadeiro desejo é esperar que os seus pedidos não sejam satisfeitos, e assim continuarem hipocritamente a viver as suas vidinhas.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

O falar verdade e o seu paradoxo nestes tempos de redes sociais virtuais



Ao contrário do que possa parecer, a nossa reação de uma forma pungente em calão vernáculo, quando nos apercebemos que nos estão a manipular, mostra quão agredidos nos sentimos com essa violação mental. O vigor das palavras sugere a intensidade do ato e as suas consequências psicológicas.

Há um género de ataque à mente dos outros por parte de algumas pessoas que não passam de tretas com a tentativa deliberada de lavagem cerebral. Traduzindo o conceito para vernáculo, tal manobra podia muito bem receber da nossa parte a seguinte reação verbal: "não me fodam o juízo com essas tretas de merda".

O manipulador no conto do vigário explora o que já está presente na vítima, cheirando-lhe a terreno fértil. Há uma predisposição prévia para a queda no conto do vigário. A vítima é recetiva ao paleio e às invocações do perpetrador. Ou seja, no esfarrapado conto do vigário, em que algumas pessoas estão constantemente a cair, elas também são vítimas da sua própria ganância parola.

Um outro exemplo clássico, a que era costume recorrer antes do advento da Internet, era o das Testemunhas de Jeová, que nos vinham bater à porta de casa para nos "foder o juízo". É claro que o que conta é desde logo o processo, independentemente do resultado. Particularmente o caso exemplificado, é muito fraco para nos conseguir dar a volta. Mas hoje, nas ditas redes sociais, os exemplos diversificaram-se vertiginosamente. O que caracteriza agora os novos manipuladores de cérebros é a sua intencionalidade quanto a falsidades e fingimentos, dando a volta às pessoas através da exploração emocional, como se as violassem mentalmente. As seitas religiosas instilam um conjunto de crenças, geralmente falsas, por vezes de um modo extravagante, tipicamente apelando ao medo e à ansiedade. Um outro exemplo de manipulação mental é o dos crentes na homeopatia.

Quando eles dão o exemplo da mudança de paradigma geocêntrico para o paradigma heliocêntrico, para nos fazer acreditar que não é uma pseudociência, o que devemos responder é que se assim fosse, não se trataria apenas da substituição de uma crença por outra, mas uma mudança sísmica na conceção do mundo. Seria uma revolução cognitiva. O truque está em não apresentar argumentos que sejam racionais, de modo a evitar serem contestados pelo método da falsificação de Karl Popper. É mais pela via da persuasão psicológica.

O paradoxo reside no facto de hoje, apesar da ubiquidade e do maior acesso das pessoas às fontes dos factos, quer por via dos novos meios de comunicação social, quer por via das redes sociais informais digitais, o falar verdade está muito mais distante do que antigamente. As pessoas sentem uma necessidade cada vez maior de fingir uma coisa que não são, levando-as a servirem-se da conversa da treta por tudo e por nada. As pessoas sentem-se com mais à vontade para falar barato.

Por um lado, a ascensão dos meios de comunicação através da Internet, alargou consideravelmente a tendência para fazer lavagens ao cérebro das pessoas. Dão-nos a volta a toda a hora. Nem sempre a discussão pública se pauta pela verdade como valor supremo. As redes estão enxameadas de publicitários, políticos e promotores de todo o tipo e feitio de causas sociais. Por estranho que pareça, continua a ser muito difícil distinguir o discurso sério e genuíno, do discurso cujo objetivo é lixar-nos o juízo.

É evidente que o fanatismo religioso não desapareceu com a maior divulgação de conhecimentos científicos na comunicação social. E se o decréscimo de crentes e fiéis no catolicismo se fez acompanhar de uma diminuição de gente supersticiosa em toda a Europa, o mesmo não se verificou ao nível de outras religiões. Por outro lado, há a salientar o recrudescimento de crenças do chamado paganismo e outros credos arrumados sob a designação de New Age. A manipulação mental atinge forçosamente a máxima intensidade quando as mentes das pessoas podem formar opiniões dissidentes, quando deixadas entregues a si próprias.

Vale a pena recordar que, apesar de tudo, há formas muito antigas de nos darem a volta à cabeça, que remonta pelo menos ao tempo de Platão. Platão preocupava-se seriamente em combater aqueles oradores da Grécia Antiga conhecidos por sofistas. Os sofistas propunham-se, mediante pagamento, ganhar qualquer discussão, especialmente em tribunal, por quaisquer argumentos falaciosos e truques retóricos. Mas acreditemos em Platão e Xenofonte quando nos falam de Sócrates – percorria a praça pública questionando as crenças comuns das pessoas acerca das coisas, mostrando-lhes que na verdade ignoravam até os conceitos mais básicos. É claro que, no bom sentido, aqueles que tinham paciência para aceitar as marteladas na cabeça que Sócrates lhes dava, saíam do diálogo aturdidos pela dúvida, aparentemente mais confusos, mas só aparentemente, e desgastados física e mentalmente. O mesmo se pode dizer de Hume e Berkeley, que procuraram arruinar as nossas crenças de senso comum acerca do mundo. Estes filósofos lixam-nos de facto o juízo, perturbam-nos e alarmam-nos. E, no entanto, o que resulta daqui é mais sabedoria e entusiasmo. A Filosofia arrebata-nos intelectualmente, porque trata de revelações grandiosas, e isso ao fazer-nos a nossa mente em cacos, ao fazer-nos sentir abalados e estupefactos, leva-nos a sublevações profundas. Evidentemente, os sofistas davam a entender que usavam a persuasão racional, mas na realidade davam apenas a volta às pessoas.

Wittgenstein é uma espécie de caso à parte, porque combinava o ceticismo filosófico com o misticismo religioso, no melhor sentido do termo. Wittgenstein, tendo sido um grande treteiro, ao mesmo tempo era um exímio opositor a todo o tipo de tretas. Apenas acreditava nas suas próprias tretas. Dizia coisas do género: “A linguagem comum enfeitiça-nos a mente, iludindo e ludibriando nos vai fazendo cair em erros filosóficos graves; a única cura é fazer o tipo de filosofia terapêutica que pratico. Por exemplo, falamos de ter a mente cheia de ideias como se de uma gaveta cheia de berlindes se tratasse. E isto porque somos enganados pela semelhança gramatical entre palavras para a mente e palavras para objetos físicos. Como se a mente fosse um tipo de objeto quase espacial.”