quinta-feira, 13 de junho de 2019

Sentido moral

As descobertas não acontecem apenas ao nível da ciência. Também acontecem no campo da ética. A maioria das descobertas mais valiosas devemo-las a acontecimentos casuais, ou até acidentais. Por conseguinte, completamente à margem das esperanças ordinárias.

Ainda que fôssemos peritos em ética, não era por aí que nos iríamos comportar de maneira moralmente correta. Conseguimos ter bons comportamentos corretos da mesma maneira que uma criança consegue falar a sua língua nativa corretamente. E da mesma forma não precisamos de tirar um curso de cinematografia, ou de ler uma enciclopédia de cinema de ponta a ponta para sabermos apreciar um bom filme.

Gostamos de descrever nossos valores em termos de uma moral absoluta, mas a realidade é mais complexa. Ainda que certas intuições morais sejam universais, é grande o espaço que a cultura tem para moldá-las. Nem Aristóteles nem Cristo puseram em causa a escravatura. Como e por que o espírito do tempo de uma sociedade se modifica, é um mistério. A luta contra o racismo foi vencida? Uma coisa se pode dizer: tal estádio cultural é independente da vontade do legislador. É por isso que é mais frequente as leis aparecerem só depois de a sociedade ficar madura para uma tal viragem na conduta social. Obviamente, sempre sobram grupos marginais que resistem à mudança. Mas, enquanto se limitarem a vociferar, sem irem das palavras aos atos, não vale a pena gastar recursos públicos com eles.

Uma das crenças que se tornou tácita nos tempos da modernidade foi a crença indefetível na razão. Mas o uso da racionalidade tem os seus limites, inclusivamente no campo da moral. E quando se abusa da razão em situações impenetráveis à razão, o resultado pode ser ainda mais pernicioso do que se ela não se tivesse intrometido.

É numa série de crenças e expectativas inconscientes, a que também poderemos chamar inatas ou intuitivas, que a nossa conduta diária repousa. É um erro pensar-se que passamos o dia todo a tocar a nossa vida para a frente usando continuadamente a razão. E na base da nossa vida fazem parte crenças, que apesar de aparentemente serem tão triviais, têm ocupado o ofício dos metafísicos desde Platão até aos nossos dias. Por exemplo, todos nós acreditamos que o mundo que nos rodeia é real e não ilusório; que amanhã o sol se vai levantar como sempre se levantou; que mantemos a nossa identidade desde que nascemos, ou que somos a mesma pessoa ainda que tivéssemos estado e saído do coma passado muitos dias. Tudo isto são lugares comuns do nosso sentido do óbvio, mesmo que algumas dessas crenças tenham passado remotamente por ideias muito discutíveis, mas que acabaram por se transformar em crenças óbvias ao fim de muito tempo de discussão por parte de metafísicos como Platão ou Descartes. E isto é assim, independentemente de ainda andarem por aí metafísicos a afirmar com seriedade que essas crenças tácitas com as quais contamos com tanta alegria não só não são fiáveis, mas além disso serem literalmente falsas. Mas como dizia David Hume, essas metafísicas não devem moer-nos o juízo.

Todos nós desconfiamos que à volta da nossa vida paira o nevoeiro da incerteza. Nunca podemos ter qualquer certeza acerca da validade de decisões que hoje tomamos para segurança do nosso futuro e de todos os outros que contam para nós. Pressupor que a nossa existência decorre de um terreno perfeitamente plano e determinado a levar-nos por vias bem definidas se as procurarmos pelas melhores razões que a priori nos vão fazer chegar às metas certas, é próprio de uma mentalidade racionalista fanática. Não há forma racional de fazer descobertas. As descobertas, como subproduto que são, ocorrem a um indivíduo quando não são procuradas. Ou então quando se está à procura de outra coisa.

William Kingdon Clifford, em “The Ethics of Belief”, defende que é do ponto de vista epistémico irresponsável, e um erro moral, acreditar seja no que for sem provas suficientes. Caso as provas sejam insuficientes, é irresponsável, do ponto de vista epistémico claro, acreditar só porque isso nos faz felizes, ou porque gostaríamos que fosse verdadeiro, ou porque temos medo de levar a sério a hipótese de não o ser. Há uma diferença capital entre acreditar que se sabe e saber realmente. Sem provas não há conhecimento, mas o que dizer da crença? A posição de Clifford é que também neste caso se exige provas, sob pena de se cair na irresponsabilidade epistémica. Um agente tem uma crença responsavelmente quando tem boas provas, mesmo que tenha tido azar epistémico e afinal a crença seja falsa; e tem-na irresponsavelmente quando não tem boas provas, ainda que por sorte seja verdadeira.

Quem tem crenças extraordinariamente fortes apesar de dispor apenas de provas muitíssimo fracas é epistemicamente irresponsável. Ser preconceituoso ou dogmático inclui ter crenças muito fortes e recusar-se a abandoná-las ou enfraquecê-las, apesar de se ter confrontado com a fraqueza das provas a seu favor, ou com a força das contraprovas. A responsabilidade epistémica exige a humildade de se reconhecer que talvez nos tenhamos enganado, o que por sua vez dá trabalho porque exige a procura cuidadosa das melhores provas e contraprovas, ao invés de formar opiniões à toa, seja com base exclusivamente na cor política aleatoriamente associada a essa ideia, seja com base noutros fatores inapropriados.

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