terça-feira, 11 de junho de 2019

A essência fundamental da identidade pessoal


Sharbat Gula, afegã, perdeu os pais durante um bombardeamento soviético. Em 1985 foi capa da revista National Geographic, na altura com 13 anos de idade. O seu olhar não deixou ninguém indiferente. Em janeiro de 2002, uma expedição da National Geographic viajou ao Afeganistão, com a missão de localizar Gula. McCurry, o fotojornalista, ao saber que o campo de refugiados Nasir Bagh estava para fechar, perguntou por ela aos outros refugiados que ainda moravam no campo. Um deles conhecia o irmão de Gula, e conseguiu fornecer pistas da sua localização. Portanto, passados 16 anos, tendo ela então 29 anos de idade, voltou a ser encontrada. E foi imediatamente reconhecida. Apesar de o seu rosto agora muito diferente, o de uma mulher de 30 anos, marcado pelas provas e pelas agruras por que teve de passar, os seus olhos constituíam aquele fator de continuidade que permitiu a sua identificação. Em 26 de outubro de 2016, Gula, viúva com 4 filhos, foi detida no Paquistão pela Agência de Investigação Federal (FIA) por viver no país usando documentos falsos. Ela chegou a ficar presa por 15 dias e foi obrigada a pagar uma multa. E foi na sequência disso que foi deportada e entregue ao governo do Afeganistão por determinação de um juiz paquistanês.

Há uma questão fundamental na essência da identidade pessoal que falta nos textos dos autores da área das Ciências Cognitivas, para além da mera dimensão neurobiológica. Para a maior parte destes autores, ser pessoa equivale a ter uma identidade pessoal corpórea, entendendo-se o corpo no sentido fundamentalmente biológico. Os limites do Eu são os limites do corpo físico cujo funcionamento é na sua totalidade objecto de estudo das ciências naturais.

Esta posição compreende-se em parte como reação à conceção tradicional e metafísica do ser humano que considerava os elementos constitutivos do self, como a mente, ou a alma, algo de natureza não corpórea, sendo o corpo biológico visto numa perspetiva instrumental. Recorde-se que, para S. Tomás, a alma era considerada incorpórea e dotada de poderes intelectuais. Neste cenário, o que se passava no corpo biológico pertencia ao domínio dos meros acidentes, tornados possíveis porque a alma era a forma do mesmo corpo. Os autores das Ciências Cognitivas assumem uma posição de negação total desta conceção e por isso é natural que afirmem que tudo o que define o ser humano tem apenas e só uma natureza biológica. Nada mais.


A esta conceção estritamente biológica, falta, porém a dimensão relacional – uma dimensão que não é apenas mais uma característica do ser humano a juntar a tantas outras, mas uma sua dimensão realmente constituinte, o fundamento real e objetivo do self., fora do contexto de um paradigma dualista, isto é, no contexto de um paradigma que não tenha necessidade de recorrer ao dualismo matéria/espírito.


O comportamento não existe nas suas partes separadas, como os neurónios individuais. De facto, um neurónio individual é mudo. É a complexa interação de muitos deles que é capaz de coisas como a consciência.


Os estudos sobre a empatia têm sido objecto de interesse, quer no interior das Ciências Cognitivas. A capacidade de empatia é constitutiva do ser humano. Quando tal capacidade não é desenvolvida desde os primeiros anos de vida, isso constitui um grande obstáculo para que o mesmo ser humano possa entrar numa relação recíproca com os outros e de ter, por conseguinte, um comportamento ético verdadeiramente pessoal. O carácter recíproco e relacional constituinte desta relação não é geralmente reconhecido.


Recentemente, têm vindo a lume trabalhos que exploram a dimensão relacional da pessoa, aprofundando aquilo a que em Ciências Cognitivas se poderia chamar estudos da segunda pessoa. Com efeito, as Ciências Cognitivas, como qualquer ciência, têm um discurso tipicamente de terceira pessoa, isto é, descritivo e explicativo dos factos que um investigador ou uma equipa de investigadores observa na natureza em geral e nas pessoas em particular, independentemente da relação estabelecida entre os investigadores e o sujeito da investigação. Aliás, nalgumas ciências, especialmente em psicologia, a eliminação de qualquer relação pessoal com o sujeito em estudo é considerada condição necessária e essencial para a objetividade e o sucesso desse estudo. Outras vezes, a relação, qualquer que seja a sua natureza, é considerada irrelevante para o estudo em questão, como no caso das neurociências, por exemplo.


O ressurgir do interesse pela consciência tem-se centrado sobretudo na relação entre as perspetivas da consciência relacionadas com a primeira-pessoa e com a terceira-pessoa, sendo frequentemente esquecidas as dimensões intersubjetiva e interpessoal da experiência consciente.


A consciência humana individual forma-se numa inter-relação dinâmica entre o Eu e o Outro e é, por conseguinte, inerentemente intersubjetiva. O encontro concreto do Eu com o Outro envolve fundamentalmente a empatia, entendida como um género de intencionalidade único e irredutível. A empatia é a condição prévia (a condição de possibilidade) da ciência da consciência. A empatia humana é inerentemente dinâmica: abrem-se-lhe caminhos de modos de intersubjetividade não egocêntricos e transcendentes. O progresso real na compreensão da intersubjetividade requer a integração dos métodos e das descobertas das ciências cognitivas, da fenomenologia, e das psicologias contemplativas e meditativas da transformação humana.


Não se trata aqui de fazer um aproveitamento da empatia num sentido algo místico, misterioso ou sobrenatural para recuperar as velhas teses metafísicas sobre identidade pessoal. Trata-se apenas de alargar o âmbito de estudo da pessoa, colocando-o num contexto muito mais complexo que aquele que é objecto das Ciências Cognitivas, sem que isso signifique uma qualquer ascensão a um “outro mundo” sobrenatural. Mas uma abordagem do ser pessoal e da ética humana na perspetiva da segunda pessoa representa, sem dúvida, uma abertura para um “outro mundo” que extravasa o das Ciências Cognitivas “clássicas”, visto que estas se interessam pelo mundo visto apenas na perspetiva da terceira pessoa.

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