quarta-feira, 5 de junho de 2019

Dance with the Stranger


No Jantar do Bispo, um dos Contos Exemplares de Sophia de Mello Breyner Andresen, um mendigo bate à porta da cozinha da Casa, quando no relógio da parede batiam as dez horas da noite. Gertrudes, a cozinheira foi abrir. Era mais um pobre, e ela tinha ordem de dar de comer a qualquer pobre que batesse à porta enquanto houvesse luz acesa na casa. Por isso disse-lhe para entrar. O mendigo, com a roupa encharcada da chuva, escorria água pelo chão da cozinha, o que muito irritou a cozinheira. Gertrudes apontou um lugar na mesa e ordenou que se sentasse, enquanto lhe ia aquecer a sopa. Então ele disse: “Preciso de falar com o Dono da Casa”. Gertrudes respondeu-lhe que isso era impossível, além do Bispo, a casa naquele dia tinha uma visita ainda mais importante que o Bispo. Mas ele continuou a insistir, que precisava imperiosamente de falar sem falta essa noite com o Dono da Casa. E a tempestade lá fora adensava-se com relâmpagos e trovões ainda mais fortes. E à medida que os outros criados entravam na cozinha ele repetia com insistência o mesmo pedido. A velha Joana, uma antiga criada que mal podia andar, até ali calada junto à lareira, finalmente disse: “Ai dos pobres! Têm fome e frio, e há sempre uma razão para lhes dizer que não. Se pudesse subir a escada, era eu que ia lá acima pedir por ti”. Um novo relâmpago pôs a Casa às escuras. Gertrudes riscou um fósforo, tirou do armário dois castiçais, e acendeu as velas. […] Então apareceu o filho do Dono da Casa, que ao inteirar-se do caso quis ajudar o mendigo. Prometeu levar-lhe o recado a seu pai. Que recado era esse? Nesse caso o mendigo disse: “Diz ao teu pai que venho da parte do Padre de Varzim”. A verdade é que o Padre Varzim havia sido vítima de manobras comprometedoras em que estavam envolvidos o Bispo e o Dono da Casa. Para espanto de todos o mendigo desapareceu sem tocar na comida. E não quiseram acreditar quando verificaram que o tal Homem Importante também tinha desaparecido sem deixar rasto. Então, a velha Joana voltou a falar e disse: “Quem sabe! Talvez o mendigo fosse um enviado de Deus, e o Homem Importante fosse realmente o Diabo!”

Entra em cena de novo o Outro. Nos tempos de mitos e de deuses que podiam tomar a forma humana e comportarem-se como tal, nunca se sabia se aquele viajante que se aproximava, aquele forasteiro, era homem ou algum deus parecido com os humanos. Essa incerteza, essa ambivalência é uma das fontes mais antigas da cultura de hospitalidade que recomendava que se manifestasse toda a amabilidade ao visitante. Vemos isso na Odisseia de Homero, a hospitalidade que encontrava Ulisses durante a sua viagem de retorno a Ítaca. Quando aparecia qualquer mendigo ou vagabundo forasteiro, investigavam primeiro se não era um deus. Não se podia perguntar o nome sem dar a hospedagem primeiro; mas depois de se ter respeitado a sua divindade, descia-se às perguntas humanas. A isto se chamava hospitalidade, uma das práticas e virtudes piedosas. Entre os gregos de Homero não havia um homem último. Havia sempre primeiro o divino.

O eterno problema interno da Europa, que na cultura europeia se resumiu sempre ao problema ético de cada um de nós. Conquista, colonização, domínio e outras dependências, sempre foram uma constante ao longo da nossa história. Durante cinco séculos a Europa dominou o mundo a todos os níveis: político, económico e cultural. E impôs ao Outro línguas e fés cristãs. Em meados do século XX, depois de duas “guerras quentes” começaram a aparecer as faturas para cobrar: o processo de descolonização, e deu-se início a uma guerra fria que terminou às portas do século XXI com o estrondo da queda de um Muro, e o fim da divisão do mundo em dois blocos.

Sempre foi assim desde aquele momento longínquo em que a nossa tribo de quarenta pessoas se encontrou com outra tribo de quarenta pessoas que até ali se desconheciam. De repente passamos a saber que afinal existiam outros seres parecidos connosco no mundo. E se numas ocasiões construímos grandes muralhas da China, torres e muros de Babilónia, arames farpados e muros de Berlim, ou apartheids; noutras ocasiões desenhamos rotas da Seda, do Âmbar, da Pimenta, ou as rotas do Sara. Qualquer que fosse o lugar em que as pessoas se encontrassem para intercâmbio de ideias, pensamentos e mercadorias, descobriam-se objetivos e valores comuns.

A Democracia torna-se uma moda. Ninguém se declara abertamente contra ela, e até os partidos mais autocráticos utilizam o adjetivo “democrático” no nome. E o mundo entra em movimento numa escala nunca-antes-visto na história. Das lentas rotas marítimas passou-se para as rotas aéreas. E ao mesmo tempo aumentaram as desigualdades e a consciência das mesmas. Essa consciência por sua vez, em vez de reagir por meio de confrontos militares clássicos, reagiu pura e simplesmente por dois meios: terrorismo e migração para os países mais ricos. A febre migratória, tão característica do momento presente, com avultado número de vítimas e custo de vidas afogadas no maior cemitério do mundo da atualidade: o Mediterrâneo.

Hoje tudo se estrutura em rede. Mas a rede dificulta a definição das identidades. E assim se tornam os europeus suscetíveis ao discurso nacionalista, ou racista, que vê o Outro como um perigo, e não como um amigo, que precisa agora de ajuda, mas que depois se transformará numa oportunidade demográfica.

A aceitação da multiculturalidade é, obviamente, um progresso gerador de um clima favorável à promoção de culturas outrora desprezadas e maltratadas. Mas isso esconde várias ameaças: o renascimento do religioso, bem visível em vários países, que se consubstancia num retorno à tradição e ao fundamentalismo; essa dinâmica de raça, nacionalidade e religião é aproveitada por nacionalistas e racistas para defenderem a sua cultura por meios violentos e hostis próprios da xenofobia.

Em suma, eis o novo mapa-mundo multicolor e extremamente complexo. Como é que os europeus estão preparados para esta dança entre estranhos a uma escala bíblica, onde Deus misturou, não apenas línguas, mas também culturas, costumes, paixões e interesses. Dançarinos ambivalentes que unem em si um eu e um não-eu, ele próprio e o Outro, o seu Outro e o Estranho. Nós todos, habitantes do nosso planeta, somos uns e somos Outros para os Outros, eu perante eles, e eles perante mim.

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