No Jantar do
Bispo, um dos Contos Exemplares de Sophia de Mello Breyner Andresen,
um mendigo bate à porta da cozinha da Casa, quando no relógio da parede
batiam as dez horas da noite. Gertrudes, a cozinheira foi abrir. Era mais um
pobre, e ela tinha ordem de dar de comer a qualquer pobre que batesse à porta
enquanto houvesse luz acesa na casa. Por isso disse-lhe para entrar. O mendigo,
com a roupa encharcada da chuva, escorria água pelo chão da cozinha, o que
muito irritou a cozinheira. Gertrudes apontou um lugar na mesa e ordenou que se
sentasse, enquanto lhe ia aquecer a sopa. Então ele disse: “Preciso de falar
com o Dono da Casa”. Gertrudes respondeu-lhe que isso era impossível, além do
Bispo, a casa naquele dia tinha uma visita ainda mais importante que o Bispo. Mas
ele continuou a insistir, que precisava imperiosamente de falar sem falta essa
noite com o Dono da Casa. E a tempestade lá fora adensava-se com relâmpagos e
trovões ainda mais fortes. E à medida que os outros criados entravam na cozinha
ele repetia com insistência o mesmo pedido. A velha Joana, uma antiga criada
que mal podia andar, até ali calada junto à lareira, finalmente disse: “Ai dos
pobres! Têm fome e frio, e há sempre uma razão para lhes dizer que não. Se
pudesse subir a escada, era eu que ia lá acima pedir por ti”. Um novo relâmpago
pôs a Casa às escuras. Gertrudes riscou um fósforo, tirou do armário dois
castiçais, e acendeu as velas. […] Então apareceu o filho do Dono da Casa, que
ao inteirar-se do caso quis ajudar o mendigo. Prometeu levar-lhe o recado a seu
pai. Que recado era esse? Nesse caso o mendigo disse: “Diz ao teu pai que venho
da parte do Padre de Varzim”. A verdade é que o Padre Varzim havia sido vítima
de manobras comprometedoras em que estavam envolvidos o Bispo e o Dono da Casa.
Para espanto de todos o mendigo desapareceu sem tocar na comida. E não quiseram
acreditar quando verificaram que o tal Homem Importante também tinha
desaparecido sem deixar rasto. Então, a velha Joana voltou a falar e disse:
“Quem sabe! Talvez o mendigo fosse um enviado de Deus, e o Homem Importante fosse
realmente o Diabo!”
Entra em cena de
novo o Outro. Nos tempos de mitos e de deuses que podiam tomar a forma
humana e comportarem-se como tal, nunca se sabia se aquele viajante que se
aproximava, aquele forasteiro, era homem ou algum deus parecido com os humanos.
Essa incerteza, essa ambivalência é uma das fontes mais antigas da cultura de
hospitalidade que recomendava que se manifestasse toda a amabilidade ao
visitante. Vemos isso na Odisseia de Homero, a hospitalidade que encontrava
Ulisses durante a sua viagem de retorno a Ítaca. Quando aparecia qualquer
mendigo ou vagabundo forasteiro, investigavam primeiro se não era um deus. Não
se podia perguntar o nome sem dar a hospedagem primeiro; mas depois de se ter
respeitado a sua divindade, descia-se às perguntas humanas. A isto se chamava
hospitalidade, uma das práticas e virtudes piedosas. Entre os gregos de Homero
não havia um homem último. Havia sempre primeiro o divino.
O eterno problema
interno da Europa, que na cultura europeia se resumiu sempre ao problema ético
de cada um de nós. Conquista, colonização, domínio e outras dependências,
sempre foram uma constante ao longo da nossa história. Durante cinco séculos a
Europa dominou o mundo a todos os níveis: político, económico e cultural. E
impôs ao Outro línguas e fés cristãs. Em meados do século XX, depois de
duas “guerras quentes” começaram a aparecer as faturas para cobrar: o processo
de descolonização, e deu-se início a uma guerra fria que terminou às portas do
século XXI com o estrondo da queda de um Muro, e o fim da divisão do mundo em
dois blocos.
Sempre foi assim
desde aquele momento longínquo em que a nossa tribo de quarenta pessoas se
encontrou com outra tribo de quarenta pessoas que até ali se desconheciam. De
repente passamos a saber que afinal existiam outros seres parecidos connosco no
mundo. E se numas ocasiões construímos grandes muralhas da China, torres e
muros de Babilónia, arames farpados e muros de Berlim, ou apartheids; noutras
ocasiões desenhamos rotas da Seda, do Âmbar, da Pimenta, ou as rotas do Sara.
Qualquer que fosse o lugar em que as pessoas se encontrassem para intercâmbio
de ideias, pensamentos e mercadorias, descobriam-se objetivos e valores comuns.
A Democracia
torna-se uma moda. Ninguém se declara abertamente contra ela, e até os partidos
mais autocráticos utilizam o adjetivo “democrático” no nome. E o mundo entra em
movimento numa escala nunca-antes-visto na história. Das lentas rotas marítimas
passou-se para as rotas aéreas. E ao mesmo tempo aumentaram as desigualdades e
a consciência das mesmas. Essa consciência por sua vez, em vez de reagir por
meio de confrontos militares clássicos, reagiu pura e simplesmente por dois
meios: terrorismo e migração para os países mais ricos. A febre migratória, tão
característica do momento presente, com avultado número de vítimas e custo de
vidas afogadas no maior cemitério do mundo da atualidade: o Mediterrâneo.
Hoje tudo se
estrutura em rede. Mas a rede dificulta a definição das identidades. E assim se
tornam os europeus suscetíveis ao discurso nacionalista, ou racista, que vê o
Outro como um perigo, e não como um amigo, que precisa agora de ajuda, mas que depois
se transformará numa oportunidade demográfica.
A aceitação da
multiculturalidade é, obviamente, um progresso gerador de um clima favorável à
promoção de culturas outrora desprezadas e maltratadas. Mas isso esconde várias
ameaças: o renascimento do religioso, bem visível em vários países, que
se consubstancia num retorno à tradição e ao fundamentalismo; essa dinâmica de
raça, nacionalidade e religião é aproveitada por nacionalistas e racistas para defenderem
a sua cultura por meios violentos e hostis próprios da xenofobia.
Em suma, eis o
novo mapa-mundo multicolor e extremamente complexo. Como é que os europeus
estão preparados para esta dança entre estranhos a uma escala bíblica,
onde Deus misturou, não apenas línguas, mas também culturas, costumes, paixões
e interesses. Dançarinos ambivalentes que unem em si um eu e um não-eu,
ele próprio e o Outro, o seu Outro e o Estranho. Nós
todos, habitantes do nosso planeta, somos uns e somos Outros para os Outros,
eu perante eles, e eles perante mim.
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