quarta-feira, 12 de junho de 2019

A dor do tédio como fonte de maldade


Alex e os seus “droogs” estão aborrecidos. Chegada a noite, é hora de abandonar o bar e ir à procura daquelas situações capazes de lhes satisfazer as necessidades de prazer. A noite está serrada, e não tarde entrarem em ação, ao passar por um velho mendigo bêbado. Espancam-no à bastonada, e desatam a fugir para não serem apanhados pela polícia. E por agora é suficiente, o início do filme Laranja Mecânica. Alex acaba por ser preso. A partir daqui vai servir de cobaia para testar um novo método de “lavagem ao cérebro”, cujo interesse é transformar lobos em cordeiros inofensivos.
Ao fim de duas semanas de tratamento é feita uma demonstração pública na presença dos governantes. O público que está a assistir à demonstração fica encantado com os resultados da experiência. A única voz dissonante é o capelão da prisão, que interpela o ministro avisando que converteram Alex num inválido moral. Dali em diante não será capaz de praticar o mal, mas não por livre arbítrio. Ao ser obrigatoriamente bom, Alex não tem escolha. O ministro está pouco ralado com considerações de ordem ética, porque o objetivo do governo é suprimir a criminalidade. Chega então a hora de restituir a pseudoliberdade a Alex, longe de adivinhar o que o espera lá fora, a paga com juros, pela maldade que fez aos outros. E todos se vingaram, um a um até ao último, o intelectual que ficou numa cadeira de rodas e perdeu a mulher por causa dele. E vinga-se da forma mais sofisticada de todas. Submete-o, com o som da aparelhagem de música no máximo, à audição da nona sinfonia de Beethoven, a música que o punha em pânico desde que ficou fóbico após o (des)tratamento. Retorcendo-se de dor, não suportando mais o sofrimento, lança-se da janela do sótão para o vazio da noite. Não morre da queda. Todo partido, nem tudo é mau, as fobias desapareceram com o choque.  Todas as fobias desapareceram com a tremenda queda. Volta a ser uma pessoa livre para cometer crimes, sabendo muito bem distinguir o bem e o mal.
Este é um caso que aborda o prazer de fazer o mal. Comecemos primeiro por tecer algumas considerações acerca do mal, para depois ir ao tema do prazer. O que leva jovens, que até uma certa idade são “doces” e “amigáveis”, a praticar atos de terror? Nas últimas décadas, psicólogos e sociólogos que se dedicaram a estudar “o mal” chegaram a conclusões interessantes. A mais polémica é a de que o “puro mal” só existe nas nossas cabeças. De um modo geral, até o mais frio assassino acredita ter razões que justificam o seu ato. A personalidade, é claro, importa. Psicopatas por exemplo, têm maior chance de envolver-se em agressões (as cadeias têm proporcionalmente mais pessoas com esse perfil do que a população geral), mas isso é só parte da história. Experiências conduzidos por psicólogos sociais mostraram que mesmo pessoas tidas como normais cometem verdadeiras barbaridades, se a situação as levar a isso. Philip Zimbardo, por exemplo, fez com que estudantes de Stanford representando o papel de guardas numa penitenciária fictícia logo praticassem abusos muito reais contra seus prisioneiros. O que a literatura psicológica mostra é que a maioria dos atos de violência e crueldade pode ser reduzida a poucas causas principais. Na classificação proposta por Jonathan Haidt, as duas primeiras são ambição e sadismo, mas elas têm pouca relevância prática. É raro alguém matar só para ter lucro e mais ainda para extrair prazer. As outras duas são alta autoestima e idealismo moral. Curiosamente, são duas características que tentamos incutir em nossos filhos desde pequenos. E, quando elas se combinam para produzir um sujeito cheio de si acreditando agir a mando de um Deus ou de uma ideologia infalíveis, o pior acontece.

E o prazer? O prazer pode ser visto como um fenómeno cinético, que consiste na viagem da incomodidade até à comodidade. A comodidade é um estado de equilíbrio que atingimos tanto quanto nos livramos das sobre-estimulação, como da infra-estimulação. Ora, o tédio é uma infra-estimulação que nos incomoda. Bem, em casos extremos, a privação sensorial a que são submetidos prisioneiros em tortura, pode chegar a ser extremamente dolorosa: enxaqueca, náuseas, fadiga, alucinações, confusão mental. Por conseguinte, o prazer é um fenómeno efémero, transitório. Dura enquanto dura a viagem a caminho da comodidade. É claro que, quanto mais crua for a incomodidade, mais intenso será o prazer com a obtenção daquilo que vai sanar a incomodidade. Mas se nos instalarmos preguiçosamente nas pegajosas seduções da comunidade, privamo-nos com isso da capacidade de sentir prazer. A comodidade quando é mantida para além da conta, deixa de o ser. Aquilo que era comodidade transforma-se insidiosamente em falta de estímulo. E a falta de estímulo pode transformar-se na disposição tanto para a prática de verdadeiros atos de heroísmo, como para a devassidão desabrida em atos de crueldade e tortura.

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