terça-feira, 8 de outubro de 2019

Sabedoria e Alegoria




 Philip Cary , em “Augustine's Invention of the Inner Self”, 2000, diz que há um Cristo durante a infância de Agostinho, e outro profundamente diferente depois. A imaginação popular não via Cristo como um Salvador padecente. Nem havia crucifixos no século IV. É com Agostinho, um neoplatónico que se tornou cristão, que Cristo passa a ser a Sabedoria de Deus. Depois de Agostinho, Cristo passa a ter o monopólio do que até aí pertencia a Platão e aos filósofos pagãos que só muito mais tarde passaram a ser conhecidos por Pré-Socráticos. A clara revelação cristã impusera-se sobre um caldeirão de opiniões contraditórias.

Agostinho (354-430), bispo de Hipona, doutor da Igreja, nasceu em Tagaste, Numídia (moderna Souk Ahras, Argélia); e morreu em Hipona, Numídia (moderna Annaba, Argélia). Nesse tempo e lugar os maniqueístas e os gnósticos pregavam um mundo natural de gente irremediavelmente capturada pelo “Mal”, com exceção, é claro, dos eleitos. O pai de Agostinho era um pagão romano. Mas, a mãe, que se chamava Mónica, era uma católica inabalável. Mónica suportou com paciência as infidelidades do marido e as heresias do filho.

A verdade é que Agostinho tornou-se referência central da cultura romana e da religião católica em África. As suas “Confissões”, a sua vida transformada em texto, são precursoras do que viria a ser a “Memória Autobiográfica” escrita. Foi o primeiro a dizer-nos que só os livros poderiam alimentar o pensamento e a memória, na sua complexa interação com a vida da mente. Mas, quanto a Agostinho ter sido o inventor do “si-próprio interior”, já é mais discutível.


A ideia da autolibertação através do saber não é, pois, exatamente o mesmo que a ideia do domínio da natureza. É muito mais a ideia de uma auto libertação espiritual do erro através da crítica das próprias ideias. Assim, a ideia da auto libertação através do saber, que o iluminismo defendeu desde sempre, continha também a ideia de que devemos aprender a distanciarmo-nos da prepotência das nossas próprias ideias falsas, em vez de nos identificarmos com elas.

Conferir um sentido à nossa vida através das nossas ações, do nosso comportamento, da nossa atitude perante a vida, perante os outros e perante o mundo, é do que precisamos para sermos sábios. Kant criticou a razão pura, e com isso discerniu que o homem não é um ser puramente racional e que o saber puramente racional não é de modo algum melhor e o mais elevado na vida humana. É a sabedoria que nos liberta espiritualmente da escravatura exercida pelas falsas ideias, pelos preconceitos e pelos ídolos.

ALEGORIA E NATUREZA

A Idade Média caracteriza-se por uma visão simbólico-alegórica do universo. A natureza é vista como um conjunto de símbolos referentes a uma dimensão transcendente. E aos elementos que a constituem (os animais, as plantas, as pedras) compete dar forma, por via das suas peculiaridades, a estas referências ultraterrenas. A um tipo de alegorismo escritural, que interpreta os símbolos contidos no texto bíblico, associa-se um alegorismo enciclopédico que explica o significado moral ou espiritual das realidades da natureza de que são expressão os bestiários, lapidários e herbários medievais.



De Naturis Rerum, de Rábano Mauro (780-856), é a primeira enciclopédia que oferece uma aprofundada visão alegórica da realidade. O autor baseia-se na obra de Isidoro de Sevilha, mas ao mesmo tempo afasta-se dela, utilizando material patrístico recolhido na literatura exegética para satisfazer a aspiração de interpretar a realidade para lá das aparências naturais, por meio da leitura alegórica do valor simbólico dos animais, das plantas e dos objetos. O pressuposto da literatura enciclopédica consiste, portanto, em considerar a natureza como espelho da revelação divina, de modo que a tarefa do sábio é captar as relações das coisas com Deus: querer conhecer a natureza em si própria seria apenas uma perigosa curiositas.



O termo grego allegoría é composto por duas palavras, állos (outro) e agoréuein (falar em público, na ágora ou praça do mercado), e significa falar de outra coisa. É uma figura retórica pela qual, por meio de uma imagem concreta, se exprime um conceito abstrato, não imediatamente inteligível porque é diferente do significado literal. Esta imagem é frequentemente extraída da natureza, de modo a que cada pessoa, cada ser animado ou inanimado ou cada ação seja um sinal de uma coisa diferente. Alegoria significa, portanto, outro modo de dizer por meio de uma imagem figurativa ou figurada.

Para os medievais, ao contrário da tradição ocidental moderna, alegoria e símbolo são sinónimos. A Idade Média herda da tradição patrística, embebida de metafísica platónica, uma visão do universo como sistema de símbolos, como linguagem figurada de Deus a apontar aos homens a verdade de ordem ética e religiosa. Os vestígios do divino são procurados na dimensão da realidade natural: os animais, os vegetais e os minerais não são descritos e analisados apenas para se conhecer a sua natureza, mas também porque nesta natureza se encontram significados divinos. Esta pansemiose metafísica está bem manifesta numa famosa afirmação de João Escoto Erígena (810-877): "não há nenhuma coisa visível e corpórea que não signifique alguma coisa incorpórea e inteligível." 

O alegorismo produzido pela exegese patrística do Antigo Testamento (alegorismo escritural) – que elabora a teoria dos quatro sentidos da escritura: o literal, que corresponde à realidade histórica do acontecimento descrito; o alegórico, que mostra os conteúdos metafóricos do Sagrado; o moral, que extrai da escritura ensinamentos; e o anagógico, que explica o que o texto sagrado afirma sobre o fim último do homem – é enriquecido na Idade Média, segundo o ensinamento de Agostinho (354-430) em Da Doutrina Cristã, pela tendência de considerar a escritura não só no seu significado retórico (in verbis), mas também no seu significado histórico (in factis). Para desvendar a allegoria historiædas das Escrituras, recorre-se aos conhecimentos enciclopédicos da época (alegorismo enciclopédico), que fornecem a descrição e o significado espiritual dos objetos, dos prodígios da natureza e dos acontecimentos narrados no texto sagrado. Os dois tipos de alegorismo coexistem na Idade Média e exprimem-se na literatura hexâmera, e o outro na tradição enciclopédica medieval, que teve a sua máxima expressão simbólica nos bestiários, herbários e lapidários.

A tradição enciclopédica medieval começa com Etymologiæ, de Isidoro de Sevilha (560-636), em que as muitas esferas do conhecimento são tratadas de modo didascálico e sem aprofundamento, pois o objetivo da obra é oferecer uma síntese do saber antigo e cristão para restituir, pelo método da análise da etimologia, uma visão unitária do mundo. Beda, O Venerável (673-735) - que escreveu obras científicas, históricas e teológicas, de interesses muito vastos que iam da métrica aos comentários exegéticos, conhecedor da literatura não apenas patrística, mas também de Plínio, Virgílio, Lucrécio, Ovídio, Horácio e outros escritores antigos - descreve a composição do criador servindo-se de uma vasta erudição de orientação bíblica. Segundo Beda, a organização do saber tem como objetivo orientar o crente na compreensão da narrativa sagrada, densa de símbolos para interpretar alegoricamente. 

Na Idade Média, o material extraído das enciclopédias, produz também herbários e lapidários nos quais as plantas e as ervas, interpretadas e classificadas segundo categorias mágicas; e as pedras apresentadas segundo as suas propriedades curativas e talismânicas, é tomado como verdadeiro receituário médico e mineralogia médica. Nem sempre se associa às plantas e às pedras, na interpretação alegórica, a suposta moralidade e o sentido religioso. O pressuposto em que os bestiários se baseiam é a eterna comparação do homem com os animais. O seu objetivo é claramente moral e didascálico, porque a realidade animal, mesmo a imaginada, é um símbolo do divino, e por isso deve procurar-se nela um significado profundo e escondido. O clero chega a esta zoologia sagrada pela catequese e pela educação moral dos fiéis. De cada animal são primeiramente descritas as propriedades físicas e as características de comportamento; em seguida, são deduzidas destes elementos as moralidades, isto é, as características espirituais: o leão, por exemplo, que apaga as suas pegadas ao pressentir a chegada do caçador, simboliza Cristo, que oculta a sua natureza divina, e o filhote do leão nado-morto, que ao terceiro dia é ressuscitado pelo fôlego do pai, é também Jesus Cristo, ressuscitado pelo Pai para salvar o género humano. Até um animal fantástico, como o unicórnio, é símbolo de Cristo, porque este animal, dotado de uma força extraordinária e com um único corno no meio da testa, não se deixa caçar por ninguém. Nasceu do ventre da Virgem Maria.

A literatura hexâmera é a literatura cristã medieval baseada na história da criação narrada no Génesis. Comenta alegoricamente as implicações cosmológicas e teológicas do mundo e do universo criados em seis dias. Este género literário teve o seu início com Hexæmeron de Basílio de Cesareia (330-379) e tem outros exemplos na literatura cristã tardo-antiga com Hexæmeron de Ambrósio (339-397) e De Genesi ad Litteram de Agostinho (354-430). Hexæmeron de Anastácio Sinaíta (640- 700), monge grego e abade do mosteiro de Santa Catarina do Monte Sinai, é uma das mais extensas alegorias místicas da época bizantina que não se perderam. Anastácio oferece uma exegese anagógica dos primeiros três capítulos do Génesis. Citando trechos da Bíblia, dos profetas e das epístolas de São Paulo, põe o leitor em guarda perante uma leitura exclusivamente literal do texto sagrado, convidando-o a abrir-se ao Espírito mediante as palavras para receber o seu verdadeiro significado espiritual. Segundo Anastácio, o profeta Moisés, autor do Génesis, foi instruído pelo Espírito Santo não só sobre a criação do mundo terreno, mas também acerca da nova criação realizada com o advento de Cristo. Deste modo, Adão representa o Salvador e Eva representa a Igreja, sua eterna esposa. Graças a esta alegoria, Anastácio merece o epíteto de Novo Moisés. Diferentemente da famosa exegese De Vita Mosis, de Gregório de Nissa (335-395), o seu Hexæmeron não considera a alma individual misticamente unida a Deus, mas descreve a Igreja inteira, esposa de Cristo, no seu processo de ascese mística para o divino.

sábado, 5 de outubro de 2019

Micenas



Micenas - sítio arqueológico a 90 quilómetros sudoeste de Atenas, do monte onde se localiza o palácio, avista-se a Argólida. Cerca de 2.000 anos a.C. Micenas era o maior centro de uma civilização e potência militar que dominou a maior parte do sul da Grécia. É um dos muitos locais pré-Gregos herdados pelos povos Helenos que para aí imigraram vindos do nordeste da Ásia. As línguas pré-gregas mantêm-se desconhecidas, mas não há evidências que permitam excluí-las da família indo-europeia.

Durante a Idade do Bronze, o padrão na ocupação do espaço de Micenas era o de um monte fortificado rodeado de pequenos povoados rurais, em contraste com a densa urbanização da costa. Como Micenas era a capital de um estado que governou, ou dominou, grande parte do mundo mediterrânico oriental, os seus governantes terão colocado as suas fortalezas características em regiões mais remotas e menos povoadas devido ao seu valor defensivo. Já que existem poucos documentos datáveis nos sítios estudados pensa-se que, neste período, tal como o resto do território continental grego, Micenas tenha sido ocupada por povos de língua não indo-europeia que praticavam a agricultura e a pecuária entre 3.000 a.C. e 2000 a.C. Há evidências arqueológicas de ocupação do sítio, de 3.500 a 2100 a.C., ainda que deficientemente estratificados, tal como acontece para o período Neolítico.

À data convencional de 1350 a.C., as fortificações da acrópole, e dos outros montes circundantes, foram reconstruídas num estilo que ficou conhecido como ciclópico devido aos blocos de pedra usados, de tão grandes dimensões que se julgou posteriormente só poderem ter sido manejadas pelos míticos gigantes de um só olho, conhecidos como Ciclopes. Dentro destas muralhas, grande parte das quais ainda é visível, foram construídos sucessivos palácios monumentais. O palácio final, cujos vestígios podem ser admirados actualmente na acrópole, datam do início do período, terão sucedido a palácios anteriores, mas ou foram destruídos ou serviram de base para a construção de outros.

Foram encontrados em torno do mar Egeu mais vestígios, geralmente apenas o chão, de palácios construídos com características arquitectónicas semelhantes, como a existência do megaro, ou sala do trono, apresentando uma lareira central sob uma abertura no tecto, suportada por quatro colunas dispostas quadrangularmente à sua volta. O trono, contra o centro da parede ao lado da lareira, permitia uma visão desobstruída do governante a partir da entrada. As paredes de gesso e o chão eram adornadas por frescos coloridos.

A construção mais conhecida de Micenas é o Portal do Leão, que foi erguido em aproximadamente 1.250 a.C. Nesta época, Micenas provavelmente era uma cidade próspera, cujo poder político, militar e económico se estendia até Creta, Pilos, e até mesmo Tebas e Atenas. Entretanto, cerca de 1.200 a.C. o poder de Micenas declina. Durante o século XII a.C. o domínio micénico entra em colapso. Tradicionalmente, isto é atribuído a uma invasão dos Dórios, gregos do norte, embora atualmente alguns historiadores duvidem que tal invasão tenha acontecido.

A lembrança do poder de Micenas manteve-se nas mentes dos gregos durante os séculos seguintes - a Idade das Trevas. Os poemas épicos atribuídos pelos gregos de gerações posteriores a Homero preservam memórias do período micénico. 





O povo de Micenas tinha sido aconselhado por um oráculo a escolher o novo rei de entre alguém dos Pelópidas. Os dois pretendentes eram Atreu e o seu irmão Tiestes. Este foi o inicialmente escolhido. Mas, na sequência desta escolha, o sol percorreu o céu em sentido inverso, pondo-se a Este. Atreu aproveitou o fenómeno para argumentar que, tal como o caminho do sol tinha sido invertido, também a eleição o deveria ser. O argumento foi tido em conta e Atreu tornou-se rei. O seu primeiro acto foi perseguir Tiestes e toda a sua família - isto é, os seus próprios familiares, mas Tiestes conseguiu escapar. Segundo a lenda, Atreu tinha dois filhos: Agamémnon e Menelau, conhecidos por Atridas. Egisto filho de Tiestes, matou Atreu e restaurou o reinado de seu pai. Com a ajuda do Rei Tíndaro de Esparta, os Atridas conseguiram, contudo, levar Tiestes de novo para o exílio. Tíndaro, por sua vez, tinha duas filhas: Helena e Clitemnestra, que casaram, respectivamente, com Menelau e Agamémnon. Este último herdou Micenas e Menelau tornou-se rei de Esparta.

Pouco depois destes acontecimentos, Helena foi raptada por Páris, de Troia. Agamémnon conduziu, então, uma guerra de 10 anos contra Troia no intuito de a reaver para seu irmão. Devido à falta de vento, o navio de guerra onde deveria seguir a Troia não saía praticamente do porto, o que levou-os a chamar um oráculo para esclarecer o que estava acontecendo. O oráculo esclarece que quando Agamémnon matou um cervo numa floresta sagrada e se gabou de ser o melhor caçador, desagradou  Artemis e como punição Agamémnon deveria sacrificar a sua filha mais velha Ifigénia em seu altar. Climemnestra é enganada para trazer a filha com a promessa de que ela casaria com Aquiles. Ao descobrir a trama Ifigénia, diante da revolta do exército, aceita se sacrificar. A deusa da caça Artemis substituiu-a, sobre ao altar, no último momento, por uma corça levando Ifigénia para Taurida para ser sua suma sacerdotisa. Tendo as divindades ficado satisfeitas com tal sacrifício, os ventos começaram a soprar de novo e a frota partiu para Troia. 




Na Mitologia Grega Micenas teria sido fundada por Perseu, neto do rei Acrísio de Argos, pela sua filha Danae. Tendo matado acidentalmente o seu avô, Perseu não herdou o trono de Argos. Em contrapartida, procedeu à troca de domínios com o seu primo Megapentes, que ficou com Argos enquanto que Perseu passou a reinar em Tirinte. Posteriormente procedeu à fortificação de Micenas.

Perseu, casado com Andrómeda, depois de ter tido dela vários filhos, entrou em guerra com Argos, onde foi morto por Megapentes. O seu filho Electrião viu a sucessão disputada pelos Táfios, filhos de Ptérelas. Estes reclamavam para si o trono por pertencerem à linhagem dos Perseidas através do seu bisavô Mestor, irmão de Eléctrion. Como este último não abdicou aos interesses dos Táfios, estes vingaram-se procedendo ao roubo de grande parte dos rebanhos reais, que levou os filhos de Eléctrion a entrar num combate que resultou na morte de todos os contendores. Eléctrion decidiu, então, seguir para a guerra, confiando a sua filha Alcmena ao seu sobrinho Anfitrião, que lhe havia resgatado as cabeças de gado. Anfitrião, contudo, mata acidentalmente o seu tio e é obrigado a purificar-se do seu acto, seguindo para o exílio.


Conta ainda a lenda que a longa e árdua Guerra de Troia, ainda que tivesse sido, nominalmente, uma vitória para os Gregos, trouxe consigo a anarquia, pirataria e ruína para os povos envolvidos. Mesmo antes da partida da frota grega para Troia, o conflito provocou divisões entre os próprios deuses, acarretando consigo maldições e actos de vingança em torno dos heróis gregos. Depois da guerra, Agamémnon, no seu regresso, foi recebido com todas as honras, sendo de seguida morto durante o banho por Clitemnestra, que o odiava desde a altura em que este tinha ordenado o sacrifício da sua filha, Ifigénia, ainda que esta se tenha salvo posteriormente. Clitemnestra foi ajudada no seu crime por Egisto, que reinou em seguida. Mas Orestes filho de Agamémnon, conseguiu fugir para a Fócida, de onde voltou, já adulto, para assassinar Egisto e Clitemnestra. De seguida, fugiu para Atenas para fugir da justiça devido ao matricídio, passando por uma fase de loucura. Entretanto, o trono de Micenas passou para Aletes, filho de Egisto, mas não por muito tempo. Ao recuperar a sanidade, Orestes voltou a Micenas e matou-o, recuperando o trono.

Orestes construiu, então, um dos maiores estados do Peloponeso, mas morreu com a dentada de uma cobra, na Arcádia. O seu filho, Tisameno, o último da dinastia Átrida, foi morto pelos Heráclidas no seu regresso ao Peleponeso. Estes reclamavam o direito dos Perseidas de herdar os vários reinos do Peloponeso e sortear o seu domínio. Quaisquer que sejam as realidades históricas reflectidas nestas histórias, os Átridas estavam firmemente estabelecidos na época próxima do fim da Era Heróica, com a chegada dos Dórios. Não existem histórias estabelecidas sobre qualquer casa real em Micenas depois dos Átridas, o que pode refletir o facto de que não terão passado pouco mais que cinquenta a sessenta anos desde a queda de Troia VII, que teria inspirado a Troia homérica, e a queda de Micenas.

Cnossos



Cnossos é o maior sítio arqueológico da Idade do Bronze da ilha grega de Creta. Situada perto da cidade moderna Heraclião, era provavelmente o centro da antiga Civilização Minoica.  O sítio tem uma história de habitação humana muito antiga, que se iniciou com a fundação do primeiro assentamento neolítico, por volta de 7.000 a.C. Com o tempo, Cnossos foi crescendo, tornando-se centro administrativo e religioso acompanhado da sua grande monumentalidade: Palácio Antigo (século XIX a.C.) e Palácio Novo (século XVI a.C.).


Selo cilíndrico minoico

Uma das teorias acerca das causas da destruição de Cnossos aposta na erupção vulcânica da ilha de Tera. A erupção devastou o assentamento minoico em Acrotiri, que foi efetivamente enterrado sob camadas de pedra-pomes. Além disso, foi sugerido que a erupção e seu efeito sobre a Civilização Minoica foi a origem do mito da Atlântida. Estudos recentes,  baseados em evidências arqueológicas encontradas em Creta, indicam que um enorme tsunami gerado pela erupção de Santorini, devastou as áreas costeiras da ilha e destruiu muitos assentamentos costeiros.


Vários autores têm observado evidências de que nesse período houve na ilha intensa atividade económica, não necessariamente comercial, evidente pela sobrecarga nos armazéns. Por exemplo, a recuperação arqueológica de Cnossos fornece uma prova clara de desmatamento desta parte da ilha de Creta próximo aos últimos estágios do desenvolvimento minoico.







Uma das contribuições mais notáveis dos minoicos foi a arquitetura. É exclusiva a sua coluna, mais larga no topo do que na base. As colunas eram feitas de madeira ao invés de pedra, e eram geralmente pintadas de vermelho. Eram montadas numa base de pedra simples e cobertas com uma almofada, uma peça redonda a fazer de capitel. Desenvolveram técnicas arquitetónicas revolucionárias como o uso de cantarias cortadas e a perfuração de encaixes no topo de blocos de cantarias para a fixação de grandes vigas horizontais.


Entre os achados mais importantes estão os afrescos que decoram as paredes. Os murais retratavam competições atléticas, possivelmente um ritual de maturidade em que os jovens praticavam acrobacias no dorso de touros.

A Arte Minoica desenvolveu-se entre cerca de 3.000 a1.100 a.C. tanto na ilha de Creta, como em diversas regiões do Egeu e Mediterrâneo, locais onde a influência minoica foi forte devido ao comércio intenso com potências e povos das proximidades.







Inicialmente, esta estatueta era chamada de Adoradora sem Cabeça, e é menor do que a outra estatueta, também de faiança, a qual chamavam Deusa das Serpentes. A estatueta anteriormente denominada Adoradora sem Cabeça foi chamada assim porque havia sido encontrada sem a cabeça e sem o braço esquerdo, e foi reconstituída pela equipe do arqueólogo Arthur Evans, em 1903, baseando-se na estátua maior. A serpente é uma antiga divindade da sabedoria, intuitivamente um símbolo telúrico. 


Por a serpente tirar sua pele e sair do esconderijo da casca morta brilhante e fresca, ela é um símbolo universal da renovação, e a regeneração que pode conduzir para a imortalidade. Na Epopeia de Gilgamesh (de origem suméria), Gilgamesh mergulha no fundo das águas para recuperar a planta da vida. Mas quando decide descansar do seu trabalho, aparece uma serpente que come a planta. A serpente torna-se imortal, e Gilgamesh fica destinado a morrer. 

Na distante extremidade ocidental do mundo da antiguidade, no jardim das Hespérides, uma outra serpente guardiã da árvore Ladão, protege a fruta dourada. Entretanto sob uma outra árvore da Iluminação, está o Buda sentado em posição de meditação. Quando uma tempestade se levantou, o poderoso da serpente levantou-se acima da caverna subterrânea e envolveu o Buda em sete espirais por sete dias, para não interromper o estado de meditação. As serpentes são figuras proeminente em mitos gregos muito arcaicos: o mito-elemento de Laocoonte, a antiga Hidra de Lerna, que lutou com Hércules, a serpente do mais velho Oráculo de Delfos, entre outras.

A imagem da serpente como a incorporação da sabedoria transmitida pela deusa Sophia é um emblema usado pelo gnosticismo, especialmente as seitas mais ortodoxas caracterizadas como Ofídeas, ("Homens Serpente"). A serpente ctónica é um dos animais associados com o culto de Mitras. O Basisilisco, o famoso "rei das serpentes" com o bote da morte, foi atacado por uma serpente, Pliny e outros pensaram, do ovo ao adulto. Tais fantasias povoaram o pensamento medieval.

Serpentes envolviam os seguidores de Hermes e de Asclépios, onde uma única serpente envolvia o cedro. No caduceu de Hermes, as serpentes não eram simetricamente gémeas, elas pareciam adversárias. As asas sobre o cedro são identificadas como asas mensageiras; Hermes o Mercúrio para os romanos, que era o mestre da diplomacia e retórica, de invenções e descobertas, protetor dos comerciantes e dos aliados e na visão dos mitologistas, dos ladrões. Assim a Química e a Medicina associaram o bastão de Hermes com os discípulos do curador Asclepius, que era envolvido por uma serpente; o bastão de Mercúrio e o moderno símbolo médico, que podia simplesmente ser o bastão de Asclepius, tornou-se um bastão do comércio. 


A serpente foi um símbolo social e religioso muito importante, venerada pelos Maias. A mitologia maia descreve a serpente como sendo um veículo pelo qual corpos celestiais, tal como o sol e as estrelas, atravessam os céus. O descamar da pele fez delas um símbolo de renascimento e renovação. Elas eram tão veneradas que uma das divindades, Quetzalcoatl, foi representada como uma serpente emplumada. O nome significa serpente preciosa.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Os mitos do nosso tempo


Não quero para já recuar de mais no tempo para não correr o risco de me perder nas inúmeras possibilidades hermenêuticas. Leia-se, por exemplo, Génesis – 6,13 a 21: Numa segunda expulsão, Deus avisa Noé que vai exterminar todos os homens que encheram a terra de iniquidades. Por isso ordenou-lhe que construísse uma Arca… 


Bem, como toda a gente sabe a história de Noé, abrevio dizendo que houve um Dilúvio. Ora aqui está o Dilúvio, que nestes tempos pós-modernos me transporta para o degelo do Ártico, por causa das alterações climáticas, o mitema mais importante do nosso tempo. Um mitema é a partícula essencial de um mito, um elemento irredutível e imutável, similar a uma unidade genésica de um tema, tal como um gene, mas neste caso em vez de ser biológico é cultural.

De modo mais exploratório, vejamos outra face do pós-moderno a partir da visão de Maffesoli “O instante Eterno: o retorno do trágico nas sociedades contemporâneas”. Maffesoli (2003) enxerga a pós-modernidade como uma “sinergia entre o arcaico e o tecnológico, em que as festas, a tribalização, as comunidades virtuais, as manifestações juvenis seriam exemplos práticos disso”. Segundo ele, Dionísio é uma figura forte das sociedades pós-modernas, dando conta da relação corpo-prazer, do seu uso sexual, dos desregramentos desse uso e das práticas excessivas.

O VI Congresso Mundial da Internacional Comunista (Komintern) teve lugar entre julho e setembro de 1928 em Moscovo. O Congresso recebeu de Bukarine um relatório extenso e, e muitos aspetos, impressionantes, no qual se analisava a crise geral do capitalismo e apontava as condições que iriam levar a breve prazo ao seu colapso final.

E na verdade, passado pouco mais de um ano, eclodiu a grande crise económica mundial. O desemprego crescente, e o sentimento de desespero da classe trabalhadora, impunha soluções extremas. E de facto, em 1930 o Partido Comunista na Alemanha obtivera quatro milhões e meio de votos nas eleições gerais. Mas o êxito dos nazis foi ainda mais impressionante. Apesar de os dois partidos (Comunista e Nacional-Socialista) partilharem um denominador comum – destruir o sistema vigente, e por isso os seus simpatizantes oscilavam entre estes dois extremos conforme as circunstâncias de conveniência – eram inimigos e opunham-se um ao outro ferozmente. Na análise comunista do fascismo essa oposição era um elemento importante.

Para os comunistas, o fascismo, primeiro em Itália e depois tal como se estava a desenvolver na Alemanha, era mais um sinal de que o colapso do capitalismo estava iminente. Instalar-se-ia uma fase de transição burguesa, a qual abriria o caminho à revolução e à ditadura do proletariado. Nesta mesma linha de raciocínio, concluía-se que os principais opositores da revolução não eram os fascistas, mas antes aqueles elementos do Estado que, apoiando reformas moderadas, podiam prolongar a vida do sistema capitalista, e especialmente os Sociais-Democratas, ou Sociais-Fascistas na gíria política dos comunistas na época.

Apesar de a análise das condições que produziram o fascismo ser correta, foi aligeirada sobretudo no que dizia respeito ao nazismo. E essa subvalorização do inimigo iria custar imenso, tanto à União Soviética como aos partidos comunistas da Europa. O fascismo levou ao empobrecimento de muitas das classes médias, e baixas socialmente desclassificadas. Os fascistas eram antiparlamentares, antissemitas, e por via desta antipatia também atacavam o capitalismo financeiro.


A questão “como conversar com um fascista?” é um desafio democrático se pensarmos que o ato de conversar seria apenas a porta de entrada num processo de desconstrução que é o diálogo. A fuga do fascista ao diálogo se deve ao facto da desconstrução que um diálogo promove lhe ser fatal.

Assim como a psicanálise não é apenas uma conversa, mas um método em cuja base está a análise da linguagem, o diálogo é o método filosófico que acaba por se transformar em metodologia política. Justamente por o diálogo ser a metodologia política mais natural, ele deve ser sempre procurado realizar. A tragédia é quando não apenas nos alienamos do diálogo, mas nos impedimos de o promover. A verdade é que o diálogo hoje em dia nos está a ser roubado todos os dias.  Por conseguinte, a tarefa filosófica da nossa época implica que ele seja devolvido às pessoas. Dessa possibilidade depende a nossa capacidade de perfurar a blindagem fascista dos novos fascistas que estão a pôr em risco a nossa sobrevivência.

O diálogo é, neste caso, a “metodologia democrática” básica que poderia operar em situações privadas e públicas. Ele parece ser delicado demais, e por conseguinte impotente perante o ódio. Mas o diálogo em si mesmo é um desafio. Um desafio à pequena escala cuja execução pode nos ajudar a pensar no que fazer e em como agir à escala global.

Estamos, pois, num tempo em que o confronto é de novo um confronto de Outros contra Outros, como tinha sido concebido por bno Leviatã. Tempo apavorante enquanto o Outro é sempre o desconhecido, aquele que ameaça em algum sentido a “minha” realidade, a minha ordem. Ora, para termos acesso ao sentir e ao pensar do Outro, enquanto o Outro não tem acesso ao que somos, é preciso expor o que sentimos e pensamos, o que não se dá sem mediações linguísticas, ou seja, sem expressões e comunicações bem-cuidadas. É preciso permanecer no tempo-lugar do diálogo. Insistir no ato de escutar e de falar para se fazer escutar no âmbito do encontro. A qualificação do diálogo pela insistência no seu pacifismo. Para isso é preciso não ceder a ressentimentos, aos afetos ressentidos que podem surgir a meio do caminho; ao mesmo tempo tentar o entendimento, apesar da dúvida do Outro quanto à possibilidade do entendimento entre diferentes.  A "diferença" entre discurso e diálogo importa aqui. No primeiro a escuta serve à fala, no segundo, a fala serve à escuta. O diálogo não é a conversa entre iguais, não é apenas uma fala complementar, uma conversação amistosa, mas a prática real da escuta em que a dúvida, a pergunta, existe para abrir a si próprio e abrir o outro. Nesse sentido, o diálogo é aventura no desconhecido. Ato político real entre diferenças que evoluem na busca do conhecimento e da ação que dele deriva. Em todos os sentidos, diálogo é resistência. A escuta exige resistência física e emocional. Essa resistência é política, e ética num nível mais subjetivo. O diálogo é, ele mesmo, um mecanismo, um organismo, uma metodologia ético-política. A forma essencial da ético-política.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

A amnésia episódica de J.G.


          J.G. ficou com uma amnésia de certo modo caprichosa depois de uma encefalite. As encefalites, de um modo geral, quando não chegam a liquidar a vida às suas vítimas, ainda assim as deixam em muito mau estado quanto à qualidade funcional do cérebro.
          Em relação aos três tipos de memória: episódica, semântica e procedimental J.G. sofreu uma perda praticamente total da episódica, uma perda ligeira da semântica, tendo ficado com a procedimental completamente intacta. Dada a sua inteligência, quando colocado em conversação para testar a sua memória, ele levava a conversa para os assuntos de erudição em que ele era um grande conhecedor, e procurava fugir aos assuntos relacionados com acontecimentos da sua vida. Acontece, todavia, que este tipo de memória semântica, ainda que intacta, não é de grande utilidade para a lembrança das coisas biográficas e vividas.
          O paciente com amnésia episódica é capaz de pensar sobre o conteúdo do presente imediato. É também capaz de pensar sobre elementos que fazem parte da sua memória semântica e dos seus conhecimentos de ordem geral. Mas o pensamento necessário a uma adaptação bem-sucedida no quotidiano requer não apenas conhecimentos factuais, mas também a capacidade de os recordar na ocasião apropriada, de os relacionar com outras situações que têm a ver com a capacidade de reminiscência explícita.
          Assim, J.G. era capaz de entrar no mundo do discurso inteligente, erudito até, mas não podia sair daquele trilho, daquele fio condutor que ligava uns assuntos aos outros, colocando os seus interlocutores numa posição demasiado insólita. Para todos os efeitos eram monólogos, porque a sua memória episódica não acompanhava a sua memória semântica, colocando-o à deriva na organização da sua vida social. Por conseguinte, J.G. todas as manhãs quando acorda tem apenas o sentimento da existência elementar como qualquer animal, mas nunca terá a memória autobiográfica para o sentimento de um “eu” autêntico e genuíno.
          Sabemos que não nos podemos recordar explicitamente dos acontecimentos que vivenciamos até aproximadamente os três anos de idade. Mas uma coisa que poucas pessoas sabem é que se estabelecem recordações ligadas às emoções no sistema límbico e outras regiões do cérebro onde as emoções são representadas, que podem determinar o comportamento de uma pessoa para o resto da sua vida sem que ela tenha consciência disso. Como estas memórias emocionais implícitas não são afetadas pela encefalite, é possível então que as memórias emocionais que ficam guardas de uma forma implícita, possam emergir nas condições e circunstâncias apropriadas. E é por isso que se J.G. cruzar com sua mulher na rua, não a vai reconhecer. Mas junto dela em casa, juntando a sua aparência com a sua voz, o seu cheiro, comportando-se do modo como sempre se comportou com ele no tempero das suas emoções, J.G. não hesita um segundo quanto à identificação dela e dele.
          Mas o que emocionou mais a mulher foi quando, para testar as competências performativas, o sentou ao piano. Ele tocava razoavelmente bem piano, mercê da sua formação musical desde os tempos do colégio. Continuava a ser capaz de ler as pautas e tocar essas músicas ao piano. A memória inconsciente dos procedimentos não havia sido afetada. Não apenas para aquela mestria do piano, mas para aquela série de aptidões que todos temos, uns mais outro menos, para o desempenho do dia-a-dia, como fazer café. Mas quando pedido a J.G. para nos explicar como faz o café, ele não consegue responder. Mas sabe fazer. Está em condições de fazer sem dificuldade nem hesitação tudo o que comporte uma sequência de ações, ou um padrão.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Os Pelasgos


Os Pelasgos são um lendário povo do Mar Egeu, o primevo povoador da Grécia. O povo grego, a que se chamava a si próprio Helenos, que fazia parte, pela língua, da grande família dos Indo-europeus, chegou aos Balcãs vindo do norte e por terra, pelas estepes da Ásia. Então chegados aí tiveram que aprender com os Pelasgos que já viviam aí há muito, a arte da navegação. Foi com eles, mais civilizados na altura, que aprenderam a construir barcos. E é então que só depois disso se dá o grande impulso para a ciência e a filosofia com os pré-socráticos.

Pelasgos era um termo usado por alguns autores da Grécia Antiga para se referir a populações que teriam sido ancestrais dos gregos ou que os teriam antecedido no território à volta do mar Egeu, onde hoje em dia está a Grécia. Este não é um significado exclusivo, porém os outros sentidos do termo quase sempre necessitam ser especificados quando utilizados. As populações que se identificavam como tal falavam um idioma ou idiomas que os gregos identificaram como não sendo grego, ainda que alguns autores antigos tenham descrito os Pelasgos como gregos. Em Homero o gentílico Pelasgoí (Pelasgos) tem etimologia desconhecida. Na Ilíada aparecem como aliados de TroiaA Odisseia localiza os Pelasgos em Creta. Como em Homero, em Heródoto tanto aparecem denotativos como conotativos. Heródoto descreve os Pelasgos como um povo contemporâneo falante de dialetos mutuamente ininteligíveis: na Plácia e na Escilácia, na costa asiática do Helesponto; perto de Crestónia no Estrimão. É nesta área que estão os vizinhos "tirrenos". Estrabão cita Hesíodo como um alargamento da frase homérica, chamando Dódona de "assento dos Pelasgos". Após Hesíodo, um certo número de autores antigos decompõem a sua curta afirmação. 

Como acontece nestes casos da antiguidade, há sempre muitas teorias alternativas. Por exemplo há quem considere os Pelasgos os mesmos que aqueles a que deram o nome de Povos do Mar, piratas que assolaram as costas do Mediterrâneo, no tempo referido pelos gregos antigos de Idade das Trevas, e que coincidiu com o Terceiro Período intermediário do Egito e o fim de impérios como, por exemplo, o Império Hitita. Mas para outros, como por exemplo Platão, os Pelasgos eram procedentes de um continente submerso, a Atlântida, e deram origem a – ou mesclaram o seu sangue e cultos com – outros povos como os Fenícios, Iberos e Etruscos

Deste modo, segundo a lenda, civilizaram com as suas tradições, conhecimento e impulso espiritual não só na Grécia, como também no território da Itália, a Ibéria primitiva e a Ásia Menor. Introduziram os signos da escrita que, segundo esta tradição, seriam de origem atlante. Se a lenda tiver um fundo de verdade, isto permitia-nos compreender a semelhança impressionante dos signos de escrita encontrados em lugares arqueológicos e culturas antigas dos mais variados pontos do planeta.

Platão e a Atlântida




Um discípulo de Platão conta uma história que o mestre lhe contou, que lhe havia sido contada por um tal fulano e que dizia respeito a um relato de Sólon que por sua vez ouvira de um respeitável sacerdote egípcio: Que há muito tempo, dizia onze mil anos antes, uma ilha que ficava para lá das Colunas de Hércules (olhemos para a imagem do Estreito de Gibraltar) a que chamavam Atlântida, havia desaparecido no fundo do Oceano da noite para dia devido a um grande cataclismo. E, de facto, circulava na oralidade de Atenas que a Atlântida tinha sido no passado longínquo uma poderosa civilização de homens gigantes possuidores de riquezas incomparáveis. Quem sabia bem como isso se passou eram os navegadores fenícios ancorados no delta do Nilo, que nos périplos que faziam pelo ocidente ouviam contar às gentes de lá. 

Algo de muito especial teria havido no oceano tenebroso que ficava para lá daquele estreito entre dois colossos de rocha: de um lado a Espanha, do outro Marrocos. Porquê o misterioso mito da AtlântidaEm Atenas, no tempo de Platão, apesar de ser depois do tempo áureo de Péricles, ainda se cultivavam superstições e costumes muito estranhos. E Platão, embora detestasse o mito e a poesia, era dado aos MistériosOs mitos têm mais que se lhe diga, do que a mera fantasia positivista quer crer. Desde a Tula mexicana até aos cavalos de Fão no Atlântico junto a Esposende, que chamam a atenção para uma ilha tão abundante e tamanha em terras e rica em cavalos, que é conhecida por Atlântida. A Lenda do Reino da Atlântida e os Açores é uma lenda dos Açores que tenta dar uma explicação para a existência do arquipélago. Alguns dos habitantes da Atlântida teriam, segundo a lenda, sobrevivido à catástrofe e fugido para vários locais do mundo, onde deixaram descendentes.
O realizador canadiano James Cameron é um dos produtores executivos de “A Ascensão da Atlântida”. Foi preciso descer ao lugar mais profundo dos oceanos para fazer um documentário fascinante, que passa também pelos Açores, pelos mistérios que revelam uma ocupação humana do arquipélago muito antes da chegada oficial dos portugueses à ilha de Santa Maria em 1431. As descobertas arqueológicas que apontam para essa ocupação humana pré-portuguesa têm-se multiplicado nos últimos anos, em especial nas ilhas Terceira e do Pico, e os estudos no campo da biologia animal e vegetal entretanto publicados em revistas científicas internacionais reforçam ainda mais esta tese. 





Segundo a lenda, os atlantes civilizaram com as suas tradições, conhecimento e impulso espiritual não só a Grécia, como também o território da Itália, a Ibéria primitiva e a Ásia Menor. Se a lenda tiver um fundo de verdade, isto permitia-nos compreender a semelhança impressionante dos signos de escrita encontrados em lugares arqueológicos e culturas antigas dos mais variados pontos do planeta tais como: Glozel, em França; Alvão, em Portugal; na escrita tartéssica, ibera, fenícia, parte da cretense, etrusca, grega; nas cerâmicas de Tiawanaku, na Bolívia, nas cerâmicas funerárias das civilizações do Vale do Indo (Mohenho Daro e Harappa) e numa pirâmide Maia pré-colombiana. De acordo com a datação de alguns destes lugares arqueológicos esta escrita, com mais de seis mil anos, supera em antiguidade todas as que conhecemos. Transmitiram o seu saber das artes da agricultura, fundaram oráculos (especialmente o de Dodona) e foram cultores do Raio (Zeus) e do Fogo (Hefaístos).

«Eurínome (a Grande Peregrina) existia desde o princípio. Surgiu do Caos e ao não encontrar onde se apoiar separou o Firmamento das Águas Primordiais e começou a dançar sobre elas. Ao deslocar-se em direcção ao sul provocou o Vento Norte, que ao ser aquecido por entre as suas mãos gerou a Grande Serpente Ofion. Continuando, Eurínome provocou com a sua dança o desejo de Ofion, a qual se enroscou no corpo da Deusa envolvendo-a. De seguida, esta converteu-se numa ave e, depois de um tempo, deu à luz o Ovo Universal. Eurínome pediu então a Ofion que se enroscasse sete vezes à volta do Ovo para o incubar. A seu momento, o Ovo dividiu-se em dois, formando o Céu e a Terra, e dele nasceram todas as coisas que existiam. Eurínome e Ofion retiraram-se nesse momento para o Monte Olimpo (ou o Centro do Mundo). Ali, Eurínome, depois de arrancar-lhe os dentes e pisar-lhe a cabeça, expulsou Ofion, agastada por esta serpente ter pretendido ser a autora do Universo e desterrou-a para o Submundo. No seguimento, Eurínome criou as sete Potências planetárias custódias da Lei e a cada uma conferiu um par de guardiães: um Titã e uma Titânida.» 

Este é um fragmento da teogonia pelásguica, muito vinculada à de Orfeu e à cidade de Mênfis, do antigo Egipto. Inclui, por exemplo, os conceitos de Vida ou do Espírito universal e humano como Grande Peregrina. E a dança ritual – que também encontramos na Índia, por exemplo, no culto a Shiva – que permite a ordem no mundo.

A religião dos Pelasgos estava muito vinculada à magia dos números e às letras sagradas, com uma tríade formada por Axieros, o omnipotente, Axiokersos, o Homem Celeste, e Axiokersa, a Grande Mãe. Os Anactotelestos ou chefes dos mistérios protegiam os iniciados das tempestades, desgraças e doenças. E, nas suas cerimónias, para além da transmissão dos ensinamentos esotéricos, buscava-se a purificação e santificação da alma humana. O aspirante à iniciação nos mistérios, depois de uma preparação rigorosa e duras provas, era entronizado, rito simbólico da vitória sobre a natureza, e ao seu redor os iniciados realizavam danças circulares, evocando o movimento dos astros e da vida à volta do Eu-Consciência. Era co­roa­do com folhas de oliveira em ouro e recebia uma faixa púrpura.

O mito é uma realidade psicológica, vive numa dimensão invisível e imaterial, a dos nossos sonhos, anseios, esperanças e recordações, um cenário comum a toda a humanidade, onde os símbolos têm vida e luz própria. Ao falar de mitologia, Platão faz referência ao relato propriamente dito. Introduz a palavra logos e utiliza-a em diferentes ocasiões como se significasse o mesmo que mytus, fazendo-nos ver que existem dois modos de falar dos seres divinos e dos deuses. Há ensinamentos que Platão não considera prudente revelar abertamente nos seus livros. Mas mesmo os textos de mais fácil compreensão incluem enigmas e significados encobertos. Na República, Platão manifesta-se avesso a acreditar nas narrativas mitológicas e a fazer delas um modelo de vida, ou a deduzir delas uma moral. Platão declara-se, pois, inimigo de Homero e de Hesíodo na educação dos jovens. A filosofia platónica, que incorpora a razão e o mytus no seu sistema holístico influenciou bastante o cristianismo nascente, nomeadamente através da Escola Neoplatónica de Alexandria fundada por Amónio Sacas, no século II d.C. Além do mais Platão era um iniciado nas Escolas de Mistérios do Antigo Egito.

Volta e meia “vem-nos à memória” a Atlântida. Platão, no Crítias, um dos seus últimos diálogos cujo conteúdo descreve a guerra entre a Atenas pré-helénica e Atlântida, hipotético império ocidental e ilha misteriosa. O sofista Crítias argumenta que a Atlântida existiu num período remoto, algures "muito além dos Pilares de Hércules". Ilha mitológica que foi engolida pelo mar e se perdeu para sempre. Pouco mais se sabe da Atlântida. Alguns teóricos sugerem que Atlântida seria uma ilha sobre a Dorsal Oceânica que teria sido destruída por movimentos bruscos da crosta terrestre naquele local. Essa teoria baseia-se em supostas coincidências, como a construção de templos em forma de pirâmide na América, semelhantes às pirâmides do Egito, facto que poderia ser explicado com a existência de um povo no meio do oceano que separa estas civilizações, suficientemente avançado tecnologicamente para navegar até à África e à América para disseminar os seus conhecimentos. Esta posição geográfica explicaria a ausência concreta de vestígios arqueológicos sobre este povo. Através de diversos estudos, alguns investigadores chegaram à conclusão que Tiwanaku, localizada no planalto boliviano, seria a antiga Atlântida. Foram encontrados portos de embarcações em Tiwanaku, faltando escavar 97,5% do local.

Para alguns arqueólogos e historiadores, Atlântida poderia ser uma mitificação da cultura minoica que floresceu na ilha de Creta. Os ancestrais dos gregos, os micénicos tiveram contacto com essa civilização culturalmente e tecnologicamente muito avançada no início do seu desenvolvimento na península Balcânica. Com os minoicos, os micénicos aprenderam arquitetura, navegação e o cultivo de oliveiras, elementos vitais da cultura helénica posterior. No entanto, dois fortes terremotos e maremotos no mar Egeu assolaram as cidades e os portos minoicos, e a civilização de Creta rapidamente desapareceu. É possível que as histórias sobre este povo tenham ganho proporções míticas ao longo dos séculos, culminando com o conto de Platão.

terça-feira, 1 de outubro de 2019

A Religiosidade na Grécia Antiga e a Tradição Mítica



A religião na Grécia Antiga diz respeito a um conjunto de crenças que atravessa um longo período histórico: pelasgos, minoicos e micénicos, até ao período helenístico passando pelo período clássico. Cada polis tinha preferência por certas divindades em seus cultos e ritos, mas compartilhavam com outras polis algumas práticas em comum, como a realização de grandes festas, como as DionisíacasA religião era uma cosmogonia em que a vivência espiritual dos gregos se sustentava em crenças formuladas a partir de fenómenos que o homem não conseguia explicar. Nessa cosmogonia, os deuses não teriam criado o universo, mas seriam parte dele. O início do universo teria acontecido com o surgimento espontâneo do Caos, da Terra, do Tártaro (deus inferior) e de Eros (força que possibilitava a união entre os seres). 

Convém compreender que a religião na Grécia Antiga possuía conexão e ligação com todos os aspectos da vida das pessoas: um papel para o indivíduo e outro para a vida coletiva. Nesse sentido, a religião contribuiu para a construção de santuários e o desenvolvimento da literatura.A transmissão do mundo dos deuses entre os gregos, principalmente no período Arcaico era feito pelo canto dos poetas, com apoio musical de um instrumento. O poeta pode fazer modificações ou interpretar de várias formas a revelação que recebe dos deuses, mas não faz isso de maneira aleatória, segue uma coerência imaginativa no âmbito do mito. Assim, a mitologia insere-se na sua complexa e ampla explicação do mundo e da natureza, que envolve rituais, ensinamentos morais e factos políticos.

Os gregos valorizavam os rituais em torno dos altares em ar festivo, pois acreditavam que deles dependia a sorte dos humanos. A palavra sacrifício, em grego antigo, significava também festa religiosa. Eram acompanhados de música, cânticos, jogos e competições. As relações de poder também se manifestavam nos rituais. Todavia, não estavam estruturadas num único catálogo de crenças, e organizadas de maneira homogénea. 

O mito é o discurso capaz de explicar fenómenos, trazendo-os para uma concepção concreta, contribuindo para um sistema de figuração do mundo. 
Mas a noção de sagrado existiu na Grécia muito antes de haver uma sistematização das crenças através do mito. A cultura do mito trouxe os templos, os cultos da polis e os cultos privados. Além disso, formou-se uma nova relação entre o homem e o sagrado, ou divino, à medida que o grego caminhava para uma melhor compreensão do mundo.  

Hieros significa “sagrado” em grego antigo, e pode ser traduzido como “aquilo que não se pode tocar”. O sagrado é concebido após o homem se deparar com as forças da natureza e as que a superam, para, a partir daí, dividir a realidade entre terrena e transcendente. A partir dessa divisão, o mundo se divide entre hieros (sagrado) e não-hieros (profano). O hieros nasce como algo presente na natureza, representava as forças presentes no mundo e não estava ligado com a ideia de deuses ou pessoas. Afinal, o hieros não se tratava de uma divindade e sim de uma força presente no todo. Depois do aparecimento do mito, o hieros acaba por ser limitado e definido, o sagrado passa a ter valor simbólico concreto, como, por exemplo, em Hesíodo ao citar o monte Hélicon como algo sagrado.

O período entre os século XI a.C. e o século VIII a.C. é caracterizado pelas mudanças em diversos segmentos da vida quotidiana na Grécia, que é a Idade das Trevas Grega, precedeu o surgimento da polis, trazendo influência direta sobre a religião, que passou a possuir um caráter cívico. Este caráter cívico caracterizou-se na união das pessoas em um único espaço e no desenvolvimento de uma literatura épica, além de um fortalecimento no plano religioso através de tradições lendárias e rituais festivos. Neste tempo, que remete ao período arcaico, há o nascimento dos templos, que passam a ser considerados as primeiras construções aos deuses para além da morada do humano; a relação entre público e privado acaba tornando explícita a delimitação entre um espaço sagrado e outro profano.

Segundo as descrições de Vitrúvio, principal fonte escrita da arquitetura da Antiguidade, sabe-se que a Ordem Dórica se originou nos primeiros templos construídos em madeira, representando a força, a graça e a proporção do corpo masculino. Assim, os elementos desta ordem seriam um equivalente escultórico de uma representação esculpida em madeira, pois, gradativamente, os templos de madeira de elevada importância em relação ao sagrado, foram sendo reconstruídos em mármore. Notadamente, viu-se a necessidade de preservar as formas que julgavam estar “carregadas de santidade” e, mais tarde, ao surgirem novos templos de pedra, as cópias foram novamente transcritas, criando-se uma fórmula comum a ser seguida.


Os 
Mistérios Gregos foram tão numerosos que, para nós, é difícil enumerá-los. Cerca de 2.000 a.C., os Mistérios egípcios passaram à Grécia. Os primeiros a recebê-los foram os habitantes da ilha de Samotrácia. Desses Mistérios destacam-se as figuras dos poderosos Kabires. Esses Mistérios foram levados à Frígia pelo Iniciado Darmanus, e logo alcançaram a Itália, onde foram confiados às Vestais. Em Elêusis existiam os Maiores e os Menores. Os Iniciados desses Mistérios eram conhecidos como Eumólpides. A base dos Mistérios de Elêusis consistia de Tradições, Ritos e Princípios sagrados. Seus deuses principais foram Dionísius e Deméter. O ensinamento superior era divulgado na forma da Arte: teatro, música, poesia, dança, escultura etc. Com o passar dos tempos, esses Mistérios entraram em decadência e a maior parte dos filósofos-iniciados aderiram aos Mistérios de Mênfis, que originou os Mistérios Órficos. Orfeu, diz a tradição esotérica, foi o civilizador da Grécia. Nasceu no século VI a.C. como príncipe dos Siciones, na Trácia. Filho de Eazzo e da ninfa Calíope. A ele é atribuída a invenção da Lira, a qual aumentou o número de sete para nove cordas, pois eram nove a Musas veneradas por ele. A lenda diz que Orfeu participou da expedição dos argonautas juntamente com Teseu, Hércules e Jasão, entre outros, cujo objetivo era o de apoderarem-se do Tosão de Ouro. Com sua arte, movimentou Argos (o navio dos argonautas), impediu esses navegadores de ouvirem o canto das sereias e encorajou os seus companheiros a continuarem na aventura. 

Orfeu desceu ao Inferno para buscar a sua amada eterna Eurídice, morta pela picada de uma serpente. Com o seu canto mágico, convenceu Plutão e Perséfone a devolverem-lhe a amante. Durante o tempo que permaneceu no Hades, esta região se transformou, cessando ali seus sofrimentos. A permissão para Eurídice voltar à luz do dia tinha uma condição: que Orfeu em hipótese alguma podia ver a amada até eles abandonarem o Reino dos Mortos. Não conteve sua ansiedade e projetou o seu olhar sobre Eurídice. O que foi fatal, tendo desaparecido para sempre. Chorando a ausência de sua querida, Orfeu desconsolado, atira pelo ar a sua Lira mágica. Lá se foram os seus poderes.

Samotrácia – Um périplo por sítios ao encontro de cidades desaparecidas – [2]




Ilha grega do mar Egeu do Norte, a poucos quilómetros a oeste da fronteira marítima com a Turquia, Samotrácia remete-nos para dois temas muito conhecidos: Mistérios de Samotrácia e Vitória de Samotrácia. Sendo a terceira maior ilha do mar Egeu, a seguir a Creta e Eubeia, foi incluída na Rede natura 2000, pelo excecional estado ecológico.

Heródoto, viajante do mundo Antigo, considerado o pai da História, em seus relatos sobre os lugares por onde passava, delimitava os espaços e a cultura de cada povo tendo em atenção o espaço do sagrado com os seus templos. Os primeiros Mistérios que ele recorda são os de Samotrácia. Depois da distribuição do fogo puro, iniciava-se uma nova vida. Ao iniciado era proporcionado um novo nascimento, através do qual, como aos antigos brâmanes da Índia, se convertia num “duas vezes nascido”. Os povos primitivos de Samotrácia eram os Pelasgos. Só depois foi colonizada pelos Fenícios.





A Vitória de Samotrácia, é uma escultura que representa a deusa grega Nice (Vitória). Fazia parte de uma fonte com a forma de proa de embarcação, em pedra calcária, doada ao santuário provavelmente pela cidade de Rodes. Ocupa hoje  lugar de destaque numa escadaria do Museu do Louvre.

Pelo pedestal estima-se que foi erguida (c. 200 a.C.) e provavelmente para comemorar uma vitória naval em Rodes. Os drapeados da vestimenta da escultura apresenta semelhanças com as do Altar de Pérgamo (c.170 a.C.). Localizada no Santuário dos Grandes Deuses na ilha de Samotrácia, dedicava-se aos Mistérios de Samotrácia, uma das principais religiões de mistérios da Grécia do período clássico. Grande parte do que se sabe sobre os Mistérios da Samotrácia se deve às várias escavações de um sítio arqueológico na ilha, que desvendaram, pouco a pouco, objetos e ruínas de um santuário.

Uma característica bastante peculiar dos Mistérios da Samotrácia é a sua acessibilidade. Para ser iniciado nos mistérios a única exigência era a peregrinação ao Santuário da ilha, onde aconteciam os rituais de iniciação e festivais. Escravos, homens comuns, escravos libertos, e até mesmo reis, poderiam ser iniciados no culto de igual maneira, independente da classe social ou condições financeiras. O principal benefício da prática do culto seria a felicidade na vida após a morte. Haveria ao menos dois estágios de iniciação nos Mistérios da Samotrácia. O primeiro deles seria o estágio de mystae e o segundo, o epoptai. Em algum momento, haveria a purificação inicial e a confissão de pecados. Passando por todo o processo, o iniciado tornar-se-ia theoroi, uma espécie de embaixador sagrado da religião.


Todos os reis gregos, desde a época cretense – senão mesmo antes – até ao período helenístico, tinham que ser iniciados nestes mistérios de poder, em Samotrácia. A teogonia dos Pelasgos, muito vinculada à de Orfeu inclui, por exemplo, os conceitos de Vida ou do Espírito universal e humano como o Grande Peregrino. A religião dos Pelasgos estava muito vinculada à magia dos números e às letras sagradas, com uma tríade formada por Axieros (o omnipotente), Axiokersos (o Homem Celeste), e Axiokersa (a Grande Mãe). Os Anactotelestos, chefes dos Mistérios protegiam os iniciados das tempestades, desgraças e doenças. E, nas suas cerimónias, para além da transmissão dos ensinamentos esotéricos, buscava-se a purificação e santificação da alma humana. O aspirante à iniciação nos Mistérios, depois de uma preparação rigorosa e duras provas, era entronizado, rito simbólico da vitória sobre a natureza, e ao seu redor os iniciados realizavam danças circulares, evocando o movimento dos astros e da vida à volta do Eu-Consciência. Era co­roa­do com folhas de oliveira em ouro e recebia uma faixa púrpura. Rendia-se culto aos Kabiros, os Santos Fogos,  o Kabiro nascido da Santa Lemnos – ilha situada perto de Samotrácia e consagrada a Hefaistos, Deus do Fogo. Estes Mistérios de Samotrácia tiveram uma grande influência nas religiões gregas e itálicas. Os romanos honraram-nos outorgando liberdade à ilha santa de Samotrácia e, inclusivamente, encontraram-se nas ilhas Britânicas vestígios dos seus cultos levados para lá pelos romanos.

Os mistérios de Samotrácia

Segundo a história mítica, Samotrácia foi célebre pelo dilúvio que alcançou o cume das mais altas montanhas, que terá tido lugar antes da era dos argonautas. A ilha tinha sido inundada pelas águas do Euxino, que até então era considerado como um lago. A ilha de Samotrácia, na parte norte do mar Egeu, em épocas antigas era uma ilha fértil, e ainda hoje se encontram na ilha abundantes fontes de água medicinais que atraiam muitos peregrinos sedentos de uma mensagem de saúde e vida.

Já desde tempos muito remotos, o Santuário dos Grandes Deuses e dos Mistérios estavam relacionados com os perigos do mar e a proteção dos navegantes. Os primeiros autóctones que habitaram a ilha 2.000 anos a.C. seriam Pelasgos, que se terão misturado pacificamente com os gregos do noroeste da Anatólia e da ilha de Lesbos, quando estes chegaram à ilha c. 700 a.C. Os Pelasgos são um lendário povo do Mar Egeu, os chamados «Povos do Mar», que assolaram as costas do Mediterrâneo no tempo de Ramsés III (séc. XII a. C.). Para Platão, os Pelasgos eram procedentes de um continente que desapareceu no oceano, chamado Atlântida, e deram origem ou se misturaram a outros povos como os Fenícios, Iberos, Etruscos, pouco tempo antes do seu desaparecimento. Criaram os Mistérios de Samotrácia, onde se divulgava a origem e evolução da humanidade e os poderes (Kabiros) que governam o mundo. Todos os reis gregos, desde a época cretense – senão mesmo antes – até ao período helenístico, tinham que ser iniciados nestes mistérios de poder, em Samotrácia.

Estes Mistérios de Samotrácia tiveram uma grande influência nas religiões gregas e itálicas. Os romanos honraram-nos outorgando liberdade à ilha santa de Samotrácia e, inclusive, encontraram-se nas ilhas Britânicas vestígios dos seus cultos. Nestes mistérios rendia-se culto aos Kabiros, os «Santos Fogos», que, segundo H. P. Blavatsky, criaram em sete lugares desta ilha, também denominada Electria, o «Kabiro nascido da Santa Lemnos» – ilha situada perto de Samotrácia e consagrada a Hefaistos, Deus do Fogo.

Em pouco tempo se converteu numa cidade grega muito importante e num Centro de Iniciação Superior, ainda que, a partir do século V a.C. comece a decair cedendo hegemonia às potências que se desenvolviam mais a sul, centralizadas em Atenas, com os Mistérios Eleusinos. Referências de Homero na Ilíada e na odisseia dão-nos a entender que, Agamémnon e Ulisses pertenciam também a Círculo daqueles inciados. Aristófanes refere também os Mistérios de Samotrácia.

Um período de espetacular desenvolvimento ocorreu durante o período helenista, quando se tornou, no reinado de Felipe II um tipo de santuário nacional da Macedónia. Era um importante lugar de culto ainda na época do Império Romano, o próprio imperador Adriano o visitou e o escritor Marco Terêncio Varrão descreveu uma parte dos mistérios, antes deles se desfazerem ao fim da antiguidade tardia. A identidade e natureza das deidades veneradas no santuário permanecem enigmáticas, principalmente porque era tabu pronunciar seus nomes. Fontes literárias da antiguidade referem-se a eles com o nome coletivo de Kabiros.

O espaço do santuário era aberto a todos que desejassem cultuar os deuses, embora as edificações consagradas aos mistérios era reservada somente aos iniciados.Os ritos mais comuns não se distinguiam daqueles praticados nos outros santuários gregos: preces e súplicas acompanhadas de sangrentos sacrifícios de animais domésticos (carneiros e porcos), queimados em holocausto no fogo sagrado, assim como libações feitas às divindades ctónicas nos tanques rituais de forma circular ou retangular, os botros (bothroi). eram utilizados numerosos altares de pedra, o maior coberto, no fim do século IV a.C. por uma cobertura monumental.

O grande festival anual, para o qual vinha gente de toda Grécia, provavelmente ocorria no meio de julho. Consistia na representação de uma peça sagrada, mostrando o casamento ritual (hiero gamos). Ele ocorria no edifício com o friso das bailarinas, construída no século IV a.C. Nesta era se acreditava que a procura da virgem desaparecida e seu casamento com o deus do submundo representava o casamento de Cadmo e Harmonia. O friso que dá nome ao recinto pode ser uma alusão a esse casamento.

Por volta de 200 a.C., uma competição dionisíaca foi adicionada ao festival, facilitada pela construção de um teatro (10) oposto ao grande altar (11). De acordo com mitos locais, foi nessa época que a cidade de Samotrácia honrou o poeta Iasos em Cária por ter composto a tragédia Dardanos e ter feito outros sobre a ilha, a cidade e o santuário.

Numerosas ofertas votivas eram feitas ao santuário, e eram guardadas num edifício próprio, próximo ao grande altar. As oferendas podiam ser estátuas de bronze, mármore ou argila, armas, vasos, etc.

A característica única do culto de mistérios em Samotrácia era a sua abertura, em comparação com Elêusis, a iniciação não tinha pré-requisitos de idade, género, posição ou nacionalidade. Todos, homens, mulheres, adultos e crianças, gregos ou não, o livre, o liberto ou o escravo podiam participar. A iniciação não era limitada a uma data precisa, e podia-se ser iniciado nos dois graus sucessivos dos mistérios no mesmo dia, a única condição era de fato estar presente no santuário. A primeira etapa da iniciação era a myésis, o mystes, quer dizer o iniciado, recebia a revelação de um relato sagrado e símbolos sagrados lhe são mostrados. No caso de Heródoto, a revelação mostrou a interpretação dos símbolos itifálicos de Hermes - Cadmilo. Segundo Varrone, o símbolo revelado nesta ocasião representava o céu e a terra. Como resultado dessa revelação, que devia permanecer secreta, o iniciado tinha assegurado alguns privilégios, como a esperança de uma vida melhor, proteção no mar, e a promessa, como em Elêusis de um pós-morte mais feliz. Durante a cerimónia, o iniciado recebia uma faixa de pano vermelha, amarrada na cintura que se supõe ser um talismã protetor. Um anel de ferro exposto ao divino poder de pedras magnéticas era provavelmente outro símbolo de proteção entregue durante a iniciação.

A preparação para a iniciação ocorria numa pequena construção ao sul do Anáctoro (16), um tipo de sacristia onde o iniciado era vestido de branco e recebia uma lâmpada. A myésis então ocorria no Anáctoro, literalmente Casa dos senhores, grande salão capaz de acomodar numerosos fiéis já iniciados, que podiam assistir a cerimonia sentados em bancos ao longo das paredes. O candidato à iniciação praticava uma lavagem ritual em tanque situado no canto sudeste e então fazia uma libação aos deuses em um fosso circular. Ao fim da cerimonia, ele tomava seu lugar sentado numa plataforma de madeira circular em frente à porta principal enquanto danças rituais ocorriam ao seu redor. Era então levados ao salão norte, o santuário onde recebia a revelação propriamente dita. O acesso a esse santuário era interdito a todas as pessoas não iniciadas. Recebia um documento atestando sua iniciação nos mistérios e podia, ao menos no período final, pagar para ter seu nome gravado em uma placa comemorativa.

O segundo grau da iniciação era chamado épopteia, literalmente a contemplação. Em vez de um ano de intervalo entre os graus, como exigido em Eleusis, o segundo grau, não obrigatório, em Samotrácia podia ser obtido imediatamente após a myésis. A despeito disso, era realizado por um pequeno número de iniciados, que nos leva a crer que envolvia outras condições, embora não fossem nem financeiras nem sociais. Lehman assegura que envolvia condições morais, quando o candidato era interrogado e devia confessar seus pecados. Esta audiência ocorria à noite em frente ao Hierão (13). Escavações revelaram a base do que devia ser uma tocha gigante. De um modo geral, a descoberta de numerosas lâmpadas e tochas naquele lugar demonstra a natureza noturna dos ritos principais. Depois do interrogatório e eventual absolvição certificada pelo sacerdote ou oficiante, o candidato era trazido ao Hierão, que também funcionava como épopteion, ou lugar de contemplação, onde ocorria um ritual de purificação e sacrifícios eram feitos num espaço sagrado, localizado no centro do recinto. Era conduzido aos fundos do prédio, que tinha a forma de uma gruta. O hierofante, também conhecido como iniciador, tomava seu lugar numa plataforma na abside onde recitava a liturgia e expunha os símbolos dos mistérios.

Durante a era romana, cerca do ano 200, a entrada do Hierão foi modificada para permitir a entrada de vítimas para serem sacrificadas. Um parapeito foi construído para proteger os espectadores e uma cripta foi posta dentro da abside. Essa modificação permitiu a celebração do Kriobolia e do Taurobolia do culto anatoliano da Grande Mãe, agora introduzidos na epoptéia. Os novos ritos faziam o iniciado, ou somente o sacerdote em seu nome, descer por uma fossa onde o sangue dos animais sacrificados era vertido sobre ele, selando um rito de natureza batismal.

Petra – Um périplo por sítios ao encontro de cidades desaparecidas [1]



Ao longo desta série de ensaios, vou percorrer sítios onde outrora floresceram cidades e civilizações que depois declinaram, restando agora apenas património arqueológico. Para estas narrativas inspirei-me em Miguel Portas e no seu Périplo Mediterrânico. Miguel Portas, no livro que publicou em parceria com o fotógrafo Camilo Azevedo Périplo 2009 – diz o seguinte: "Os bons livros no sítio certo, adquirem as cores, os cheiros e os encantos dos lugares. É assim que a narrativa é a da própria leitura, que veste a pele e o olhar do outro”. Assim, faço como ele nestas viagens imaginárias, levando na mochila um ou dois livros alusivos, dando primazia aos clássicos: Homero, Heródoto, Tucídides, Platão, Camões, Fernão Mendes Pinto…

As cidades são construídas em certos pontos porque esses locais apresentam vantagens ambientais, estratégicas ou económicas, ou porque têm algo muito forte que desperta o apelo espiritual pelo mistério, pelo sagrado. Uma grande e florescente cidade pode desaparecer de muitas maneiras. As causas podem ser humanas e/ou naturais. Se acontece alguma coisa que lhes retire a sua razão de ser, seja por fatores de ordem física e da natureza, seja por fatores de ordem humana, a cidade pode entrar, de modo mais ou menos imediato e inexorável, num processo de decadência. São os fatores de ordem humana que se verificam na maior parte dos casos, e destes, são os económicos os que mais pesam. Muitas das cidades desaparecidas têm a ver com as rotas comerciais. Um bom exemplo disso é Petra. Era um local muito importante porque, para além das condições naturais como a existência de água, originalmente combinava a facilidade das defesas naturais com as rotas comerciais que por lá passavam.

Ultimamente os historiadores estão a tomar consciência cada vez mais clara da importância dos fatores ambientais no declínio urbano. As cidades com alta densidade populacional necessitam de recursos que acabam por ter um grande impacto ambiental – água, combustíveis, matérias primas e materiais de construção – ou seja, culturas que durante milénios viveram de forma sustentável, rapidamente se depararam com problemas de ordem ambiental que se agravaram desde a 1ª Revolução Industrial, devido à adoção de modos de vida urbano altamente poluentes. 


A História nos mostra como os dias civilizatórios se sucedem às noites civilizatórias, e assim cíclica e sucessivamente segundo o princípio dos sistemas auto-organizadores, em que uma cultura ou uma civilização segue as mesmas regras de um organismo vivo. Por isso, a ideia de progresso contínuo e interminável não pode estar certa. É um mito da nossa modernidade. Estas ruinas de cidades que podemos saber como existiram, mercê de esmerados trabalhos arqueológicos, estão de novo a sofrer destruição com o risco de desaparecerem para sempre sem deixar rasto, seja por novos ataques provocados pelas alterações climáticas, seja pela negligência e maldade humana, como aliás sempre aconteceu, e continua a acontecer nos dias de hoje, como é o caso de Palmira e das estátuas gigantes de Buda às mãos do terrorismo fundamentalista islâmico.

Petra, localizada no sul da Jordânia, era originalmente conhecida como Raqmu pelos nabateus, o povo árabe que lhe deu origem. A cidade é famosa por sua arquitetura esculpida em rocha e pelo seu sistema de canalização de água. Outro nome para Petra é Cidade Rosa, devido à cor das pedras do local, nome dado por quem a descobriu em 1812, depois de um longo período de esquecimento. Em 312 a.C. era já uma cidade estabelecida, sendo a capital dos árabes nabateus


Com a designação de Mosteiro, acredita-se que o Mosteiro de Petra foi um túmulo erigido para o rei nabateu Obodas I. A semelhança com um túmulo gigante é notória, pela sua grandeza. A extensão do átrio, outrora rodeado de colunas, sugere que o espaço era usado para cerimónias sagradas. O templo com a designação atual de Mosteiro, deve o nome às cruzes esculpidas no seu interior, prova da presença de cristãos na era bizantina.