sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Os mitos do nosso tempo


Não quero para já recuar de mais no tempo para não correr o risco de me perder nas inúmeras possibilidades hermenêuticas. Leia-se, por exemplo, Génesis – 6,13 a 21: Numa segunda expulsão, Deus avisa Noé que vai exterminar todos os homens que encheram a terra de iniquidades. Por isso ordenou-lhe que construísse uma Arca… 


Bem, como toda a gente sabe a história de Noé, abrevio dizendo que houve um Dilúvio. Ora aqui está o Dilúvio, que nestes tempos pós-modernos me transporta para o degelo do Ártico, por causa das alterações climáticas, o mitema mais importante do nosso tempo. Um mitema é a partícula essencial de um mito, um elemento irredutível e imutável, similar a uma unidade genésica de um tema, tal como um gene, mas neste caso em vez de ser biológico é cultural.

De modo mais exploratório, vejamos outra face do pós-moderno a partir da visão de Maffesoli “O instante Eterno: o retorno do trágico nas sociedades contemporâneas”. Maffesoli (2003) enxerga a pós-modernidade como uma “sinergia entre o arcaico e o tecnológico, em que as festas, a tribalização, as comunidades virtuais, as manifestações juvenis seriam exemplos práticos disso”. Segundo ele, Dionísio é uma figura forte das sociedades pós-modernas, dando conta da relação corpo-prazer, do seu uso sexual, dos desregramentos desse uso e das práticas excessivas.

O VI Congresso Mundial da Internacional Comunista (Komintern) teve lugar entre julho e setembro de 1928 em Moscovo. O Congresso recebeu de Bukarine um relatório extenso e, e muitos aspetos, impressionantes, no qual se analisava a crise geral do capitalismo e apontava as condições que iriam levar a breve prazo ao seu colapso final.

E na verdade, passado pouco mais de um ano, eclodiu a grande crise económica mundial. O desemprego crescente, e o sentimento de desespero da classe trabalhadora, impunha soluções extremas. E de facto, em 1930 o Partido Comunista na Alemanha obtivera quatro milhões e meio de votos nas eleições gerais. Mas o êxito dos nazis foi ainda mais impressionante. Apesar de os dois partidos (Comunista e Nacional-Socialista) partilharem um denominador comum – destruir o sistema vigente, e por isso os seus simpatizantes oscilavam entre estes dois extremos conforme as circunstâncias de conveniência – eram inimigos e opunham-se um ao outro ferozmente. Na análise comunista do fascismo essa oposição era um elemento importante.

Para os comunistas, o fascismo, primeiro em Itália e depois tal como se estava a desenvolver na Alemanha, era mais um sinal de que o colapso do capitalismo estava iminente. Instalar-se-ia uma fase de transição burguesa, a qual abriria o caminho à revolução e à ditadura do proletariado. Nesta mesma linha de raciocínio, concluía-se que os principais opositores da revolução não eram os fascistas, mas antes aqueles elementos do Estado que, apoiando reformas moderadas, podiam prolongar a vida do sistema capitalista, e especialmente os Sociais-Democratas, ou Sociais-Fascistas na gíria política dos comunistas na época.

Apesar de a análise das condições que produziram o fascismo ser correta, foi aligeirada sobretudo no que dizia respeito ao nazismo. E essa subvalorização do inimigo iria custar imenso, tanto à União Soviética como aos partidos comunistas da Europa. O fascismo levou ao empobrecimento de muitas das classes médias, e baixas socialmente desclassificadas. Os fascistas eram antiparlamentares, antissemitas, e por via desta antipatia também atacavam o capitalismo financeiro.


A questão “como conversar com um fascista?” é um desafio democrático se pensarmos que o ato de conversar seria apenas a porta de entrada num processo de desconstrução que é o diálogo. A fuga do fascista ao diálogo se deve ao facto da desconstrução que um diálogo promove lhe ser fatal.

Assim como a psicanálise não é apenas uma conversa, mas um método em cuja base está a análise da linguagem, o diálogo é o método filosófico que acaba por se transformar em metodologia política. Justamente por o diálogo ser a metodologia política mais natural, ele deve ser sempre procurado realizar. A tragédia é quando não apenas nos alienamos do diálogo, mas nos impedimos de o promover. A verdade é que o diálogo hoje em dia nos está a ser roubado todos os dias.  Por conseguinte, a tarefa filosófica da nossa época implica que ele seja devolvido às pessoas. Dessa possibilidade depende a nossa capacidade de perfurar a blindagem fascista dos novos fascistas que estão a pôr em risco a nossa sobrevivência.

O diálogo é, neste caso, a “metodologia democrática” básica que poderia operar em situações privadas e públicas. Ele parece ser delicado demais, e por conseguinte impotente perante o ódio. Mas o diálogo em si mesmo é um desafio. Um desafio à pequena escala cuja execução pode nos ajudar a pensar no que fazer e em como agir à escala global.

Estamos, pois, num tempo em que o confronto é de novo um confronto de Outros contra Outros, como tinha sido concebido por bno Leviatã. Tempo apavorante enquanto o Outro é sempre o desconhecido, aquele que ameaça em algum sentido a “minha” realidade, a minha ordem. Ora, para termos acesso ao sentir e ao pensar do Outro, enquanto o Outro não tem acesso ao que somos, é preciso expor o que sentimos e pensamos, o que não se dá sem mediações linguísticas, ou seja, sem expressões e comunicações bem-cuidadas. É preciso permanecer no tempo-lugar do diálogo. Insistir no ato de escutar e de falar para se fazer escutar no âmbito do encontro. A qualificação do diálogo pela insistência no seu pacifismo. Para isso é preciso não ceder a ressentimentos, aos afetos ressentidos que podem surgir a meio do caminho; ao mesmo tempo tentar o entendimento, apesar da dúvida do Outro quanto à possibilidade do entendimento entre diferentes.  A "diferença" entre discurso e diálogo importa aqui. No primeiro a escuta serve à fala, no segundo, a fala serve à escuta. O diálogo não é a conversa entre iguais, não é apenas uma fala complementar, uma conversação amistosa, mas a prática real da escuta em que a dúvida, a pergunta, existe para abrir a si próprio e abrir o outro. Nesse sentido, o diálogo é aventura no desconhecido. Ato político real entre diferenças que evoluem na busca do conhecimento e da ação que dele deriva. Em todos os sentidos, diálogo é resistência. A escuta exige resistência física e emocional. Essa resistência é política, e ética num nível mais subjetivo. O diálogo é, ele mesmo, um mecanismo, um organismo, uma metodologia ético-política. A forma essencial da ético-política.

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