J.G. ficou com uma
amnésia de certo modo caprichosa depois de uma encefalite. As encefalites, de
um modo geral, quando não chegam a liquidar a vida às suas vítimas, ainda assim
as deixam em muito mau estado quanto à qualidade funcional do cérebro.
Em relação aos
três tipos de memória: episódica, semântica e procedimental – J.G. sofreu uma
perda praticamente total da episódica, uma perda ligeira da semântica, tendo
ficado com a procedimental completamente intacta. Dada a sua inteligência,
quando colocado em conversação para testar a sua memória, ele levava a conversa
para os assuntos de erudição em que ele era um grande conhecedor, e procurava
fugir aos assuntos relacionados com acontecimentos da sua vida. Acontece, todavia,
que este tipo de memória semântica, ainda que intacta, não é de grande
utilidade para a lembrança das coisas biográficas e vividas.
O paciente com
amnésia episódica é capaz de pensar sobre o conteúdo do presente imediato. É
também capaz de pensar sobre elementos que fazem parte da sua memória semântica
e dos seus conhecimentos de ordem geral. Mas o pensamento necessário a uma
adaptação bem-sucedida no quotidiano requer não apenas conhecimentos factuais,
mas também a capacidade de os recordar na ocasião apropriada, de os relacionar
com outras situações que têm a ver com a capacidade de reminiscência explícita.
Assim, J.G. era
capaz de entrar no mundo do discurso inteligente, erudito até, mas não podia
sair daquele trilho, daquele fio condutor que ligava uns assuntos aos outros,
colocando os seus interlocutores numa posição demasiado insólita. Para todos os
efeitos eram monólogos, porque a sua memória episódica não acompanhava a sua
memória semântica, colocando-o à deriva na organização da sua vida social. Por
conseguinte, J.G. todas as manhãs quando acorda tem apenas o sentimento da
existência elementar como qualquer animal, mas nunca terá a memória
autobiográfica para o sentimento de um “eu” autêntico e genuíno.
Sabemos que não
nos podemos recordar explicitamente dos acontecimentos que vivenciamos até
aproximadamente os três anos de idade. Mas uma coisa que poucas pessoas sabem é
que se estabelecem recordações ligadas às emoções no sistema límbico e outras
regiões do cérebro onde as emoções são representadas, que podem determinar o
comportamento de uma pessoa para o resto da sua vida sem que ela tenha
consciência disso. Como estas memórias emocionais implícitas não são afetadas
pela encefalite, é possível então que as memórias emocionais que ficam guardas
de uma forma implícita, possam emergir nas condições e circunstâncias
apropriadas. E é por isso que se J.G. cruzar com sua mulher na rua, não a vai
reconhecer. Mas junto dela em casa, juntando a sua aparência com a sua voz, o
seu cheiro, comportando-se do modo como sempre se comportou com ele no tempero
das suas emoções, J.G. não hesita um segundo quanto à identificação dela e
dele.
Mas o que
emocionou mais a mulher foi quando, para testar as competências performativas, o sentou ao piano. Ele tocava razoavelmente bem piano, mercê da sua formação musical
desde os tempos do colégio. Continuava a ser capaz de ler as pautas e tocar
essas músicas ao piano. A memória inconsciente dos procedimentos não havia sido
afetada. Não apenas para aquela mestria do piano, mas para aquela série de
aptidões que todos temos, uns mais outro menos, para o desempenho do dia-a-dia,
como fazer café. Mas quando pedido a J.G. para nos explicar como faz o café,
ele não consegue responder. Mas sabe fazer. Está em condições de fazer sem
dificuldade nem hesitação tudo o que comporte uma sequência de ações, ou um
padrão.
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