quinta-feira, 3 de outubro de 2019

A amnésia episódica de J.G.


          J.G. ficou com uma amnésia de certo modo caprichosa depois de uma encefalite. As encefalites, de um modo geral, quando não chegam a liquidar a vida às suas vítimas, ainda assim as deixam em muito mau estado quanto à qualidade funcional do cérebro.
          Em relação aos três tipos de memória: episódica, semântica e procedimental J.G. sofreu uma perda praticamente total da episódica, uma perda ligeira da semântica, tendo ficado com a procedimental completamente intacta. Dada a sua inteligência, quando colocado em conversação para testar a sua memória, ele levava a conversa para os assuntos de erudição em que ele era um grande conhecedor, e procurava fugir aos assuntos relacionados com acontecimentos da sua vida. Acontece, todavia, que este tipo de memória semântica, ainda que intacta, não é de grande utilidade para a lembrança das coisas biográficas e vividas.
          O paciente com amnésia episódica é capaz de pensar sobre o conteúdo do presente imediato. É também capaz de pensar sobre elementos que fazem parte da sua memória semântica e dos seus conhecimentos de ordem geral. Mas o pensamento necessário a uma adaptação bem-sucedida no quotidiano requer não apenas conhecimentos factuais, mas também a capacidade de os recordar na ocasião apropriada, de os relacionar com outras situações que têm a ver com a capacidade de reminiscência explícita.
          Assim, J.G. era capaz de entrar no mundo do discurso inteligente, erudito até, mas não podia sair daquele trilho, daquele fio condutor que ligava uns assuntos aos outros, colocando os seus interlocutores numa posição demasiado insólita. Para todos os efeitos eram monólogos, porque a sua memória episódica não acompanhava a sua memória semântica, colocando-o à deriva na organização da sua vida social. Por conseguinte, J.G. todas as manhãs quando acorda tem apenas o sentimento da existência elementar como qualquer animal, mas nunca terá a memória autobiográfica para o sentimento de um “eu” autêntico e genuíno.
          Sabemos que não nos podemos recordar explicitamente dos acontecimentos que vivenciamos até aproximadamente os três anos de idade. Mas uma coisa que poucas pessoas sabem é que se estabelecem recordações ligadas às emoções no sistema límbico e outras regiões do cérebro onde as emoções são representadas, que podem determinar o comportamento de uma pessoa para o resto da sua vida sem que ela tenha consciência disso. Como estas memórias emocionais implícitas não são afetadas pela encefalite, é possível então que as memórias emocionais que ficam guardas de uma forma implícita, possam emergir nas condições e circunstâncias apropriadas. E é por isso que se J.G. cruzar com sua mulher na rua, não a vai reconhecer. Mas junto dela em casa, juntando a sua aparência com a sua voz, o seu cheiro, comportando-se do modo como sempre se comportou com ele no tempero das suas emoções, J.G. não hesita um segundo quanto à identificação dela e dele.
          Mas o que emocionou mais a mulher foi quando, para testar as competências performativas, o sentou ao piano. Ele tocava razoavelmente bem piano, mercê da sua formação musical desde os tempos do colégio. Continuava a ser capaz de ler as pautas e tocar essas músicas ao piano. A memória inconsciente dos procedimentos não havia sido afetada. Não apenas para aquela mestria do piano, mas para aquela série de aptidões que todos temos, uns mais outro menos, para o desempenho do dia-a-dia, como fazer café. Mas quando pedido a J.G. para nos explicar como faz o café, ele não consegue responder. Mas sabe fazer. Está em condições de fazer sem dificuldade nem hesitação tudo o que comporte uma sequência de ações, ou um padrão.

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