terça-feira, 1 de outubro de 2019

Samotrácia – Um périplo por sítios ao encontro de cidades desaparecidas – [2]




Ilha grega do mar Egeu do Norte, a poucos quilómetros a oeste da fronteira marítima com a Turquia, Samotrácia remete-nos para dois temas muito conhecidos: Mistérios de Samotrácia e Vitória de Samotrácia. Sendo a terceira maior ilha do mar Egeu, a seguir a Creta e Eubeia, foi incluída na Rede natura 2000, pelo excecional estado ecológico.

Heródoto, viajante do mundo Antigo, considerado o pai da História, em seus relatos sobre os lugares por onde passava, delimitava os espaços e a cultura de cada povo tendo em atenção o espaço do sagrado com os seus templos. Os primeiros Mistérios que ele recorda são os de Samotrácia. Depois da distribuição do fogo puro, iniciava-se uma nova vida. Ao iniciado era proporcionado um novo nascimento, através do qual, como aos antigos brâmanes da Índia, se convertia num “duas vezes nascido”. Os povos primitivos de Samotrácia eram os Pelasgos. Só depois foi colonizada pelos Fenícios.





A Vitória de Samotrácia, é uma escultura que representa a deusa grega Nice (Vitória). Fazia parte de uma fonte com a forma de proa de embarcação, em pedra calcária, doada ao santuário provavelmente pela cidade de Rodes. Ocupa hoje  lugar de destaque numa escadaria do Museu do Louvre.

Pelo pedestal estima-se que foi erguida (c. 200 a.C.) e provavelmente para comemorar uma vitória naval em Rodes. Os drapeados da vestimenta da escultura apresenta semelhanças com as do Altar de Pérgamo (c.170 a.C.). Localizada no Santuário dos Grandes Deuses na ilha de Samotrácia, dedicava-se aos Mistérios de Samotrácia, uma das principais religiões de mistérios da Grécia do período clássico. Grande parte do que se sabe sobre os Mistérios da Samotrácia se deve às várias escavações de um sítio arqueológico na ilha, que desvendaram, pouco a pouco, objetos e ruínas de um santuário.

Uma característica bastante peculiar dos Mistérios da Samotrácia é a sua acessibilidade. Para ser iniciado nos mistérios a única exigência era a peregrinação ao Santuário da ilha, onde aconteciam os rituais de iniciação e festivais. Escravos, homens comuns, escravos libertos, e até mesmo reis, poderiam ser iniciados no culto de igual maneira, independente da classe social ou condições financeiras. O principal benefício da prática do culto seria a felicidade na vida após a morte. Haveria ao menos dois estágios de iniciação nos Mistérios da Samotrácia. O primeiro deles seria o estágio de mystae e o segundo, o epoptai. Em algum momento, haveria a purificação inicial e a confissão de pecados. Passando por todo o processo, o iniciado tornar-se-ia theoroi, uma espécie de embaixador sagrado da religião.


Todos os reis gregos, desde a época cretense – senão mesmo antes – até ao período helenístico, tinham que ser iniciados nestes mistérios de poder, em Samotrácia. A teogonia dos Pelasgos, muito vinculada à de Orfeu inclui, por exemplo, os conceitos de Vida ou do Espírito universal e humano como o Grande Peregrino. A religião dos Pelasgos estava muito vinculada à magia dos números e às letras sagradas, com uma tríade formada por Axieros (o omnipotente), Axiokersos (o Homem Celeste), e Axiokersa (a Grande Mãe). Os Anactotelestos, chefes dos Mistérios protegiam os iniciados das tempestades, desgraças e doenças. E, nas suas cerimónias, para além da transmissão dos ensinamentos esotéricos, buscava-se a purificação e santificação da alma humana. O aspirante à iniciação nos Mistérios, depois de uma preparação rigorosa e duras provas, era entronizado, rito simbólico da vitória sobre a natureza, e ao seu redor os iniciados realizavam danças circulares, evocando o movimento dos astros e da vida à volta do Eu-Consciência. Era co­roa­do com folhas de oliveira em ouro e recebia uma faixa púrpura. Rendia-se culto aos Kabiros, os Santos Fogos,  o Kabiro nascido da Santa Lemnos – ilha situada perto de Samotrácia e consagrada a Hefaistos, Deus do Fogo. Estes Mistérios de Samotrácia tiveram uma grande influência nas religiões gregas e itálicas. Os romanos honraram-nos outorgando liberdade à ilha santa de Samotrácia e, inclusivamente, encontraram-se nas ilhas Britânicas vestígios dos seus cultos levados para lá pelos romanos.

Os mistérios de Samotrácia

Segundo a história mítica, Samotrácia foi célebre pelo dilúvio que alcançou o cume das mais altas montanhas, que terá tido lugar antes da era dos argonautas. A ilha tinha sido inundada pelas águas do Euxino, que até então era considerado como um lago. A ilha de Samotrácia, na parte norte do mar Egeu, em épocas antigas era uma ilha fértil, e ainda hoje se encontram na ilha abundantes fontes de água medicinais que atraiam muitos peregrinos sedentos de uma mensagem de saúde e vida.

Já desde tempos muito remotos, o Santuário dos Grandes Deuses e dos Mistérios estavam relacionados com os perigos do mar e a proteção dos navegantes. Os primeiros autóctones que habitaram a ilha 2.000 anos a.C. seriam Pelasgos, que se terão misturado pacificamente com os gregos do noroeste da Anatólia e da ilha de Lesbos, quando estes chegaram à ilha c. 700 a.C. Os Pelasgos são um lendário povo do Mar Egeu, os chamados «Povos do Mar», que assolaram as costas do Mediterrâneo no tempo de Ramsés III (séc. XII a. C.). Para Platão, os Pelasgos eram procedentes de um continente que desapareceu no oceano, chamado Atlântida, e deram origem ou se misturaram a outros povos como os Fenícios, Iberos, Etruscos, pouco tempo antes do seu desaparecimento. Criaram os Mistérios de Samotrácia, onde se divulgava a origem e evolução da humanidade e os poderes (Kabiros) que governam o mundo. Todos os reis gregos, desde a época cretense – senão mesmo antes – até ao período helenístico, tinham que ser iniciados nestes mistérios de poder, em Samotrácia.

Estes Mistérios de Samotrácia tiveram uma grande influência nas religiões gregas e itálicas. Os romanos honraram-nos outorgando liberdade à ilha santa de Samotrácia e, inclusive, encontraram-se nas ilhas Britânicas vestígios dos seus cultos. Nestes mistérios rendia-se culto aos Kabiros, os «Santos Fogos», que, segundo H. P. Blavatsky, criaram em sete lugares desta ilha, também denominada Electria, o «Kabiro nascido da Santa Lemnos» – ilha situada perto de Samotrácia e consagrada a Hefaistos, Deus do Fogo.

Em pouco tempo se converteu numa cidade grega muito importante e num Centro de Iniciação Superior, ainda que, a partir do século V a.C. comece a decair cedendo hegemonia às potências que se desenvolviam mais a sul, centralizadas em Atenas, com os Mistérios Eleusinos. Referências de Homero na Ilíada e na odisseia dão-nos a entender que, Agamémnon e Ulisses pertenciam também a Círculo daqueles inciados. Aristófanes refere também os Mistérios de Samotrácia.

Um período de espetacular desenvolvimento ocorreu durante o período helenista, quando se tornou, no reinado de Felipe II um tipo de santuário nacional da Macedónia. Era um importante lugar de culto ainda na época do Império Romano, o próprio imperador Adriano o visitou e o escritor Marco Terêncio Varrão descreveu uma parte dos mistérios, antes deles se desfazerem ao fim da antiguidade tardia. A identidade e natureza das deidades veneradas no santuário permanecem enigmáticas, principalmente porque era tabu pronunciar seus nomes. Fontes literárias da antiguidade referem-se a eles com o nome coletivo de Kabiros.

O espaço do santuário era aberto a todos que desejassem cultuar os deuses, embora as edificações consagradas aos mistérios era reservada somente aos iniciados.Os ritos mais comuns não se distinguiam daqueles praticados nos outros santuários gregos: preces e súplicas acompanhadas de sangrentos sacrifícios de animais domésticos (carneiros e porcos), queimados em holocausto no fogo sagrado, assim como libações feitas às divindades ctónicas nos tanques rituais de forma circular ou retangular, os botros (bothroi). eram utilizados numerosos altares de pedra, o maior coberto, no fim do século IV a.C. por uma cobertura monumental.

O grande festival anual, para o qual vinha gente de toda Grécia, provavelmente ocorria no meio de julho. Consistia na representação de uma peça sagrada, mostrando o casamento ritual (hiero gamos). Ele ocorria no edifício com o friso das bailarinas, construída no século IV a.C. Nesta era se acreditava que a procura da virgem desaparecida e seu casamento com o deus do submundo representava o casamento de Cadmo e Harmonia. O friso que dá nome ao recinto pode ser uma alusão a esse casamento.

Por volta de 200 a.C., uma competição dionisíaca foi adicionada ao festival, facilitada pela construção de um teatro (10) oposto ao grande altar (11). De acordo com mitos locais, foi nessa época que a cidade de Samotrácia honrou o poeta Iasos em Cária por ter composto a tragédia Dardanos e ter feito outros sobre a ilha, a cidade e o santuário.

Numerosas ofertas votivas eram feitas ao santuário, e eram guardadas num edifício próprio, próximo ao grande altar. As oferendas podiam ser estátuas de bronze, mármore ou argila, armas, vasos, etc.

A característica única do culto de mistérios em Samotrácia era a sua abertura, em comparação com Elêusis, a iniciação não tinha pré-requisitos de idade, género, posição ou nacionalidade. Todos, homens, mulheres, adultos e crianças, gregos ou não, o livre, o liberto ou o escravo podiam participar. A iniciação não era limitada a uma data precisa, e podia-se ser iniciado nos dois graus sucessivos dos mistérios no mesmo dia, a única condição era de fato estar presente no santuário. A primeira etapa da iniciação era a myésis, o mystes, quer dizer o iniciado, recebia a revelação de um relato sagrado e símbolos sagrados lhe são mostrados. No caso de Heródoto, a revelação mostrou a interpretação dos símbolos itifálicos de Hermes - Cadmilo. Segundo Varrone, o símbolo revelado nesta ocasião representava o céu e a terra. Como resultado dessa revelação, que devia permanecer secreta, o iniciado tinha assegurado alguns privilégios, como a esperança de uma vida melhor, proteção no mar, e a promessa, como em Elêusis de um pós-morte mais feliz. Durante a cerimónia, o iniciado recebia uma faixa de pano vermelha, amarrada na cintura que se supõe ser um talismã protetor. Um anel de ferro exposto ao divino poder de pedras magnéticas era provavelmente outro símbolo de proteção entregue durante a iniciação.

A preparação para a iniciação ocorria numa pequena construção ao sul do Anáctoro (16), um tipo de sacristia onde o iniciado era vestido de branco e recebia uma lâmpada. A myésis então ocorria no Anáctoro, literalmente Casa dos senhores, grande salão capaz de acomodar numerosos fiéis já iniciados, que podiam assistir a cerimonia sentados em bancos ao longo das paredes. O candidato à iniciação praticava uma lavagem ritual em tanque situado no canto sudeste e então fazia uma libação aos deuses em um fosso circular. Ao fim da cerimonia, ele tomava seu lugar sentado numa plataforma de madeira circular em frente à porta principal enquanto danças rituais ocorriam ao seu redor. Era então levados ao salão norte, o santuário onde recebia a revelação propriamente dita. O acesso a esse santuário era interdito a todas as pessoas não iniciadas. Recebia um documento atestando sua iniciação nos mistérios e podia, ao menos no período final, pagar para ter seu nome gravado em uma placa comemorativa.

O segundo grau da iniciação era chamado épopteia, literalmente a contemplação. Em vez de um ano de intervalo entre os graus, como exigido em Eleusis, o segundo grau, não obrigatório, em Samotrácia podia ser obtido imediatamente após a myésis. A despeito disso, era realizado por um pequeno número de iniciados, que nos leva a crer que envolvia outras condições, embora não fossem nem financeiras nem sociais. Lehman assegura que envolvia condições morais, quando o candidato era interrogado e devia confessar seus pecados. Esta audiência ocorria à noite em frente ao Hierão (13). Escavações revelaram a base do que devia ser uma tocha gigante. De um modo geral, a descoberta de numerosas lâmpadas e tochas naquele lugar demonstra a natureza noturna dos ritos principais. Depois do interrogatório e eventual absolvição certificada pelo sacerdote ou oficiante, o candidato era trazido ao Hierão, que também funcionava como épopteion, ou lugar de contemplação, onde ocorria um ritual de purificação e sacrifícios eram feitos num espaço sagrado, localizado no centro do recinto. Era conduzido aos fundos do prédio, que tinha a forma de uma gruta. O hierofante, também conhecido como iniciador, tomava seu lugar numa plataforma na abside onde recitava a liturgia e expunha os símbolos dos mistérios.

Durante a era romana, cerca do ano 200, a entrada do Hierão foi modificada para permitir a entrada de vítimas para serem sacrificadas. Um parapeito foi construído para proteger os espectadores e uma cripta foi posta dentro da abside. Essa modificação permitiu a celebração do Kriobolia e do Taurobolia do culto anatoliano da Grande Mãe, agora introduzidos na epoptéia. Os novos ritos faziam o iniciado, ou somente o sacerdote em seu nome, descer por uma fossa onde o sangue dos animais sacrificados era vertido sobre ele, selando um rito de natureza batismal.

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