terça-feira, 8 de outubro de 2019

Sabedoria e Alegoria




 Philip Cary , em “Augustine's Invention of the Inner Self”, 2000, diz que há um Cristo durante a infância de Agostinho, e outro profundamente diferente depois. A imaginação popular não via Cristo como um Salvador padecente. Nem havia crucifixos no século IV. É com Agostinho, um neoplatónico que se tornou cristão, que Cristo passa a ser a Sabedoria de Deus. Depois de Agostinho, Cristo passa a ter o monopólio do que até aí pertencia a Platão e aos filósofos pagãos que só muito mais tarde passaram a ser conhecidos por Pré-Socráticos. A clara revelação cristã impusera-se sobre um caldeirão de opiniões contraditórias.

Agostinho (354-430), bispo de Hipona, doutor da Igreja, nasceu em Tagaste, Numídia (moderna Souk Ahras, Argélia); e morreu em Hipona, Numídia (moderna Annaba, Argélia). Nesse tempo e lugar os maniqueístas e os gnósticos pregavam um mundo natural de gente irremediavelmente capturada pelo “Mal”, com exceção, é claro, dos eleitos. O pai de Agostinho era um pagão romano. Mas, a mãe, que se chamava Mónica, era uma católica inabalável. Mónica suportou com paciência as infidelidades do marido e as heresias do filho.

A verdade é que Agostinho tornou-se referência central da cultura romana e da religião católica em África. As suas “Confissões”, a sua vida transformada em texto, são precursoras do que viria a ser a “Memória Autobiográfica” escrita. Foi o primeiro a dizer-nos que só os livros poderiam alimentar o pensamento e a memória, na sua complexa interação com a vida da mente. Mas, quanto a Agostinho ter sido o inventor do “si-próprio interior”, já é mais discutível.


A ideia da autolibertação através do saber não é, pois, exatamente o mesmo que a ideia do domínio da natureza. É muito mais a ideia de uma auto libertação espiritual do erro através da crítica das próprias ideias. Assim, a ideia da auto libertação através do saber, que o iluminismo defendeu desde sempre, continha também a ideia de que devemos aprender a distanciarmo-nos da prepotência das nossas próprias ideias falsas, em vez de nos identificarmos com elas.

Conferir um sentido à nossa vida através das nossas ações, do nosso comportamento, da nossa atitude perante a vida, perante os outros e perante o mundo, é do que precisamos para sermos sábios. Kant criticou a razão pura, e com isso discerniu que o homem não é um ser puramente racional e que o saber puramente racional não é de modo algum melhor e o mais elevado na vida humana. É a sabedoria que nos liberta espiritualmente da escravatura exercida pelas falsas ideias, pelos preconceitos e pelos ídolos.

ALEGORIA E NATUREZA

A Idade Média caracteriza-se por uma visão simbólico-alegórica do universo. A natureza é vista como um conjunto de símbolos referentes a uma dimensão transcendente. E aos elementos que a constituem (os animais, as plantas, as pedras) compete dar forma, por via das suas peculiaridades, a estas referências ultraterrenas. A um tipo de alegorismo escritural, que interpreta os símbolos contidos no texto bíblico, associa-se um alegorismo enciclopédico que explica o significado moral ou espiritual das realidades da natureza de que são expressão os bestiários, lapidários e herbários medievais.



De Naturis Rerum, de Rábano Mauro (780-856), é a primeira enciclopédia que oferece uma aprofundada visão alegórica da realidade. O autor baseia-se na obra de Isidoro de Sevilha, mas ao mesmo tempo afasta-se dela, utilizando material patrístico recolhido na literatura exegética para satisfazer a aspiração de interpretar a realidade para lá das aparências naturais, por meio da leitura alegórica do valor simbólico dos animais, das plantas e dos objetos. O pressuposto da literatura enciclopédica consiste, portanto, em considerar a natureza como espelho da revelação divina, de modo que a tarefa do sábio é captar as relações das coisas com Deus: querer conhecer a natureza em si própria seria apenas uma perigosa curiositas.



O termo grego allegoría é composto por duas palavras, állos (outro) e agoréuein (falar em público, na ágora ou praça do mercado), e significa falar de outra coisa. É uma figura retórica pela qual, por meio de uma imagem concreta, se exprime um conceito abstrato, não imediatamente inteligível porque é diferente do significado literal. Esta imagem é frequentemente extraída da natureza, de modo a que cada pessoa, cada ser animado ou inanimado ou cada ação seja um sinal de uma coisa diferente. Alegoria significa, portanto, outro modo de dizer por meio de uma imagem figurativa ou figurada.

Para os medievais, ao contrário da tradição ocidental moderna, alegoria e símbolo são sinónimos. A Idade Média herda da tradição patrística, embebida de metafísica platónica, uma visão do universo como sistema de símbolos, como linguagem figurada de Deus a apontar aos homens a verdade de ordem ética e religiosa. Os vestígios do divino são procurados na dimensão da realidade natural: os animais, os vegetais e os minerais não são descritos e analisados apenas para se conhecer a sua natureza, mas também porque nesta natureza se encontram significados divinos. Esta pansemiose metafísica está bem manifesta numa famosa afirmação de João Escoto Erígena (810-877): "não há nenhuma coisa visível e corpórea que não signifique alguma coisa incorpórea e inteligível." 

O alegorismo produzido pela exegese patrística do Antigo Testamento (alegorismo escritural) – que elabora a teoria dos quatro sentidos da escritura: o literal, que corresponde à realidade histórica do acontecimento descrito; o alegórico, que mostra os conteúdos metafóricos do Sagrado; o moral, que extrai da escritura ensinamentos; e o anagógico, que explica o que o texto sagrado afirma sobre o fim último do homem – é enriquecido na Idade Média, segundo o ensinamento de Agostinho (354-430) em Da Doutrina Cristã, pela tendência de considerar a escritura não só no seu significado retórico (in verbis), mas também no seu significado histórico (in factis). Para desvendar a allegoria historiædas das Escrituras, recorre-se aos conhecimentos enciclopédicos da época (alegorismo enciclopédico), que fornecem a descrição e o significado espiritual dos objetos, dos prodígios da natureza e dos acontecimentos narrados no texto sagrado. Os dois tipos de alegorismo coexistem na Idade Média e exprimem-se na literatura hexâmera, e o outro na tradição enciclopédica medieval, que teve a sua máxima expressão simbólica nos bestiários, herbários e lapidários.

A tradição enciclopédica medieval começa com Etymologiæ, de Isidoro de Sevilha (560-636), em que as muitas esferas do conhecimento são tratadas de modo didascálico e sem aprofundamento, pois o objetivo da obra é oferecer uma síntese do saber antigo e cristão para restituir, pelo método da análise da etimologia, uma visão unitária do mundo. Beda, O Venerável (673-735) - que escreveu obras científicas, históricas e teológicas, de interesses muito vastos que iam da métrica aos comentários exegéticos, conhecedor da literatura não apenas patrística, mas também de Plínio, Virgílio, Lucrécio, Ovídio, Horácio e outros escritores antigos - descreve a composição do criador servindo-se de uma vasta erudição de orientação bíblica. Segundo Beda, a organização do saber tem como objetivo orientar o crente na compreensão da narrativa sagrada, densa de símbolos para interpretar alegoricamente. 

Na Idade Média, o material extraído das enciclopédias, produz também herbários e lapidários nos quais as plantas e as ervas, interpretadas e classificadas segundo categorias mágicas; e as pedras apresentadas segundo as suas propriedades curativas e talismânicas, é tomado como verdadeiro receituário médico e mineralogia médica. Nem sempre se associa às plantas e às pedras, na interpretação alegórica, a suposta moralidade e o sentido religioso. O pressuposto em que os bestiários se baseiam é a eterna comparação do homem com os animais. O seu objetivo é claramente moral e didascálico, porque a realidade animal, mesmo a imaginada, é um símbolo do divino, e por isso deve procurar-se nela um significado profundo e escondido. O clero chega a esta zoologia sagrada pela catequese e pela educação moral dos fiéis. De cada animal são primeiramente descritas as propriedades físicas e as características de comportamento; em seguida, são deduzidas destes elementos as moralidades, isto é, as características espirituais: o leão, por exemplo, que apaga as suas pegadas ao pressentir a chegada do caçador, simboliza Cristo, que oculta a sua natureza divina, e o filhote do leão nado-morto, que ao terceiro dia é ressuscitado pelo fôlego do pai, é também Jesus Cristo, ressuscitado pelo Pai para salvar o género humano. Até um animal fantástico, como o unicórnio, é símbolo de Cristo, porque este animal, dotado de uma força extraordinária e com um único corno no meio da testa, não se deixa caçar por ninguém. Nasceu do ventre da Virgem Maria.

A literatura hexâmera é a literatura cristã medieval baseada na história da criação narrada no Génesis. Comenta alegoricamente as implicações cosmológicas e teológicas do mundo e do universo criados em seis dias. Este género literário teve o seu início com Hexæmeron de Basílio de Cesareia (330-379) e tem outros exemplos na literatura cristã tardo-antiga com Hexæmeron de Ambrósio (339-397) e De Genesi ad Litteram de Agostinho (354-430). Hexæmeron de Anastácio Sinaíta (640- 700), monge grego e abade do mosteiro de Santa Catarina do Monte Sinai, é uma das mais extensas alegorias místicas da época bizantina que não se perderam. Anastácio oferece uma exegese anagógica dos primeiros três capítulos do Génesis. Citando trechos da Bíblia, dos profetas e das epístolas de São Paulo, põe o leitor em guarda perante uma leitura exclusivamente literal do texto sagrado, convidando-o a abrir-se ao Espírito mediante as palavras para receber o seu verdadeiro significado espiritual. Segundo Anastácio, o profeta Moisés, autor do Génesis, foi instruído pelo Espírito Santo não só sobre a criação do mundo terreno, mas também acerca da nova criação realizada com o advento de Cristo. Deste modo, Adão representa o Salvador e Eva representa a Igreja, sua eterna esposa. Graças a esta alegoria, Anastácio merece o epíteto de Novo Moisés. Diferentemente da famosa exegese De Vita Mosis, de Gregório de Nissa (335-395), o seu Hexæmeron não considera a alma individual misticamente unida a Deus, mas descreve a Igreja inteira, esposa de Cristo, no seu processo de ascese mística para o divino.

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