É muito possível
que muitos dos atuais adultos europeus que ainda não fizeram 65 anos de idade,
quando chegarem ao fim do tempo de vida de cada um, a Europa já não seja a
mesma em termos de paisagem cultural e política. E é possível que uma boa parte
desses europeus não vá gostar de chamar à Europa a sua casa. Mas uma outra
parte vai estar disposta a aceitar viver numa Europa com um genoma diferente
daquele que a vem caracterizando há pelo menos trezentos anos. É o caso de um líder
político sueco, que já foi primeiro-ministro, pelo que diz. Ele diz,
provavelmente vergado pelo peso da culpa do passado, que a verdadeira barbárie
está no interior da Europa, e que do exterior vêm muitas coisas boas. Mas o
sentimento da maioria dos suecos atualmente não parece ser esse, a avaliar pelo
crescimento repentino da extrema-direita xenófoba expressa pelo voto em
eleições.
Seja como for,
aconteça o que acontecer, hoje já há muitos lugares da Europa que deixaram de
ser lugares preenchidos por gente europeia autóctone. Nesses lugares o estilo
de vida é muito diferente do estilo a que esses lugares estavam habituados,
inclusivamente o tipo de língua falada. E isso é assim porque os seus líderes
políticos fingiram que isso era normal, assobiando para o lado.
Sabemos pela
História que destino tiveram civilizações cultas do passado por via das
chamadas “invasões pacíficas dos bárbaros”. Para certas pessoas, não há
problema nenhum, porque estão cansadas existencialmente deste tipo de
civilização, envergonhados pelas coisas menos boas do passado, e por isso
resignados por a história desta Europa ter chegado ao fim.
Há evidências
claras pelos factos históricos que, a imputarmos culpas pelo que está a
acontecer à Europa, os maiores responsáveis são em primeiro lugar os próprios
europeus. Por um lado, as sociedades europeias têm a culpa principal pelo
estado a que aqueles países, cujos povos hoje se sentem obrigados a fugir,
chegaram. E por outro lado, depois de saberem o que fizeram, não souberam, ou
não quiseram tomar as medidas corretas de integração desses povos uma vez aqui
chegados.
Não se deve
confundir o conceito de “migração” com o conceito de “expansão demográfica”.
Expansão demográfica é simplesmente a ocupação do terreno de uma forma cada vez
mais alargada por uma população cujo efetivo vai aumentando de número. E o
conceito de “migração” consiste na mudança de lugar de residência temporária ou
permanente de indivíduos ou grupos sem caráter de ocupação.
Não vou terminar
este artigo, talvez mais longo do que esperava, sem fazer uma análise mais
abrangente do fenómeno das migrações que inclui aspetos que raramente são
abordados em artigos de opinião generalistas como este, e que tem a ver com a
migração dos genes e das línguas faladas desses povos, já para não ir mais
longe e dizer que o fenómeno das migrações não está apenas intrinsecamente
ligado à história do homo sapiens
desde que saiu de África há 70 mil anos, mas é um fenómeno à escala animal, com
especial expressão na vida dos pássaros ou aves de arribação.
Ao nível dos genes
pode haver migração de genes sem haver migração de indivíduos. Nas migrações
temporárias, os indivíduos podem regressar ao lugar de origem, mas
simultaneamente deixar no outro lugar os seus genes, como quem deixa a semente
de eucalipto em Portugal de um eucalipto que ficou na Austrália. E assim, o seu
legado genético pode expandir-se por outros meios. O que está contido no
património genético ilustra as migrações e miscigenações ocorridas ao longo da
história da espécie humana.
Assim, pelos genes
podemos saber que a partir de África, a Austrália foi colonizada pelo homo sapiens antes da Europa. As razões estão
evidentemente relacionadas com o clima, numa altura em que a Europa estava
praticamente coberta de gelo, com a exceção talvez do sul da Península Ibérica.
Hoje a genética
recorre ao ADN mitocondrial, que é sempre passado por via materna, e ao
cromossoma Y, necessariamente passado por via paterna, para estudar as
migrações humanas. Apesar de em cada geração se perder muito do material
genético dos ancestrais, em contrapartida a história genealógica por via
materna ou por via paterna é muito mais fácil de reconstituir, dado que ao ser
estudado um bloco de genes monoparentais evita-se o “ruído” causado pela recombinação
genética. As linhagens maternas e paternas fornecem informação quanto à
distribuição geográfica. Há combinações que são caracteristicamente
subsarianas; outras são tipicamente europeias; outras estão apenas presentes na
Ásia, na América do Sul, e na Polinésia. Como é óbvio, esta informação é muito
importante para a reconstituição das migrações populacionais ao longo da
história humana.
Vou dar apenas
alguns exemplos. O caso do povo Rom ou Cigano, com uma identidade genética bem
distinta, é paradigmático porque não evoluiu com miscigenação significativa.
Mas, ainda assim, a comunidade cigana portuguesa da atualidade é mais uma
construção social do que uma realidade biológica ou étnica, que resultou de um
processo demograficamente complexo em mudança. Em Portugal não aconteceu a
persistência de outra língua, como sucedeu em comunidades de outros países. Na
análise de uma amostra genética de ciganos colhida em vários locais de Portugal
continental, há uma proporção ainda apreciável de genes originários da primeira
migração que teve início na Índia há cerca de mil anos (17%). Noutro estudo
realizado na Europa Central, 31% dos Rom europeus possuem genes de populações
não Rom oriundos dos Balcãs e Médio Oriente, onde houve tempo para miscigenação
dado o povo Rom ter permanecido aí bastante tempo antes de continuar a sua
migração para ocidente.
Outro contributo
da genética para o estudo das migrações é o ligado ao diagnóstico de doenças
raras. Por exemplo, no caso da “Doença de Machado-Joseph”, uma doença
neurológica frequente nos Açores e conhecida lá por “doença do entrançar das
pernas”, no início pensava-se que a origem primária era os Açores, mas agora
sabe-se coisa diferente. Sabe-se que a a mutação não é originariamente
portuguesa, mas começou no Extremo Oriente (China ou Japão). Uma vez que a
entrada em Portugal se terá passado garantidamente depois da época do
Neolítico, fica por determinar qual foi o movimento migratório que a
transportou para cá. A moral da história é a seguinte: o facto de determinado
traço genético ser atualmente muito frequente numa dada área geográfica, não
significa que esse traço genético seja originário dessa mesma área. Pode ter a
sua origem no outro lado do mundo.
Por fim, o estudo
das línguas é outro campo de estudo muito interessante. No conjunto das línguas
do mundo, muitas se distinguem por não conhecerem a escrita. Essas línguas
quando acederam à escrita foi por via da escrita dos povos que colonizaram as
regiões onde se situam. São exemplo as línguas dos povos da atual Amazónia, ou
dos bosquímanos da África Central. E o mesmo se poderia dizer dos esquimós. Mas
também importa aqui referir casos como Egito, que apesar de o Egito Antigo ter
tido uma escrita hieroglífica ou ideográfica, incluído no grupo das primeiras escritas
no mundo de forma independente umas das outras, tenha por motivos políticos e
culturais adotado a língua árabe e a escrita árabe. O árabe acabou por dominar todo
o norte de África depois de Maomé, século VII da presente era. E é evidente que
o árabe deixou amplas marcas na língua portuguesa, ao se ter combinado com a língua
românica residual, uma língua de raiz indo-europeia, diferente do árabe que é
uma língua de raiz semita. O indo-europeu terá surgido por volta de 1.500 antes
da presente era, cuja representação mais próxima da primitiva será o sânscrito,
uma língua da Índia fixada nos livros sagrados primordiais.
1 comentário:
Li com muito interesse, quando procurava uma referência sobre a expressão “doença do entrançar das pernas” que também conhecia (sou um dos coautores do artigo em que se demonstra a origem oriental da variante genética responsável), mas não consigo encontrar...
Será que pode ajudar?
Antecipadamente grato,
Antonio Amorim, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, amamorim@fc.up.pt
Enviar um comentário