terça-feira, 4 de setembro de 2018

A face do mal em perspetiva: entre o Carmo e a Trindade, e as Torres Gémeas



Dando de barato que a expressão “caiu o Carmo e a Trindade” tem origem no Terramoto de 1755, em que desabaram as igrejas do Carmo e da Trindade em Lisboa, o que nos interessa considerar aqui é quão o Mal ameaça a razão humana, pois desafia a nossa esperança de que o mundo faça sentido. Até ao 11 de setembro de 2001, havia duas referências magistrais para mostrar o que era o mal: o Terramoto de Lisboa enquanto crueldade divina, e Auschwitz enquanto encarnação extrema da crueldade humana.

Ao examinarmos a nossa compreensão do Mal, digamos entre a Inquisição e o terrorismo jihadista contemporâneo, quer em termos teológicos, quer seculares, o que mais nos perturba é a sua ininteligibilidade. Pode haver significado num mundo no qual inocentes sofrem? Pode a crença no poder divino ou no progresso humano sobreviver a uma catalogação do Mal? Filósofos tradicionais, de Leibniz a Hegel, buscaram defender o Criador de um mundo que continha o Mal. Inevitavelmente, os seus esforços corroeram a crença na benevolência, no poder e na relevância de Deus, até Nietzsche alegar que Ele estava morto.

O século XVIII costumava usar a palavra “Lisboa” tanto quanto até agora se usava a palavra “Auschwitz”, e provavelmente a partir de agora “11 de setembro”. Quanto peso uma referência bruta é capaz de carregar? Não é preciso mais do que pronunciar esses nomes para que toda a gente perceba quão frágil é a confiança que podemos ter no sentido mais básico do mundo: os fundamentos da civilização. O terramoto de 1755 que destruiu a cidade de Lisboa, e fez desaparecer em poucas horas vários milhares dos seus habitantes, provocou uma ampla reação, tão veloz que Voltaire e Rousseau se puseram rapidamente de acordo quanto à urgência de discutirem o assunto por troca de correspondência, apesar de Frederico o Grande ter considerado exagerado o cancelamento dos preparativos para o carnaval do ano seguinte. Nesta Prússia Oriental Iluminista, até um estudioso de importância menor de Königsberg, Immanuel Kant era um desconhecido ao lado de Voltaire e Roussau, fez estremecer o Iluminismo com três ensaios sobre a natureza dos terramotos, que saíram no jornal de Königsberg.

No entanto, comparar Lisboa a Auschwitz não passa de um equívoco. Sob esse aspeto, Lisboa e Auschwitz são dois tipos de acontecimento completamente diferentes. Para Auschwitz, a reflexão conceptual demorou a chegar. É de espantar que os filósofos contemporâneos desses acontecimentos, salvo raras exceções como é o caso de Hannah Arendt, não tenham percebido a importância de um acontecimento dessa magnitude. Uma das razões dadas para a ausência de reflexão filosófica é a dificuldade do pensamento dada a magnitude do problema. O que aconteceu nos campos da morte nazis foi tão absolutamente mau, que, diferente de qualquer outro acontecimento na história mundial, desafiou a capacidade humana de compreensão durante muitos anos.

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