sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Cosmopolitismo vs./ multiculturalismo


Daniel Oliveira na sua última crónica do Expresso Diário, diz que não é um “principista”, isto porque questões de princípio podem sabotar os valores que supostamente se querem defender. Por exemplo, é contra a proibição do uso do hijab nas escolas francesas porque não só acha essa imposição escusada e contraproducente, como vai privar pessoas de um bem maior que é a instrução e o conhecimento. Mas prossegue dizendo que por não ser um “principista” não significa que aceite a atomização cultural. Daí se segue que não se considera um multiculturalista, mas um cosmopolita. O multiculturalismo, segundo Daniel Oliveira, é a recusa do cosmopolitismo por via do isolamento. Portanto, um cosmopolita é, por assim dizer, um “promíscuo cultural” no bom sentido, na medida em que há uma partilha bidirecional de culturas na sua rica diversidade por serem expressas em liberdade, apesar de todas obedecerem às mesmas leis do país em que vivem.

No debate atual sobre a imigração há quem negligencie ou desvalorize a diferença entre culturas. E a realidade dos factos diz-nos que para cada um a sua cultura é, por inerência, sempre melhor do que a cultura alheia. Mas na objetividade as posições dividem-se, porque há quem não admita que na diversidade das culturas haja evidência que umas sejam objetivamente e honestamente melhores do que outras. Os alemães em 2015, quando aceitaram receber em muito pouco tempo um milhão de refugiados sírios, sentiram-se, e com razão, orgulhosos por a sua cultura alemã ser, de certa maneira, melhor do que a cultua síria.

O debate em torno deste tema não deve ser conduzido como se houvesse uma razão absoluta. Isso não significa que não se possa estabelecer uma linha que separe o bem e o mal. Trata-se de uma discussão de prós e contras na vida prática em clima democrático. É muito mais fácil um muçulmano emigrar para a Alemanha do que um cristão emigrar para a Síria. O racismo é moralmente aberrante. E cientificamente estúpido. Os biólogos, e particularmente os geneticistas, provaram de forma inequívoca que as diferenças físicas entre pessoas nativas de partes do mundo geograficamente distintas, eram irrelevantes para o carácter único que especifica o homo sapiens em qualquer canto do mundo. Tudo o que certos autores, antropólogos ou não a coberto da ciência, até aí tinham dito sobre umas raças humanas serem superiores a outras quanto ao nível de inteligência, não só foi deitado para o caixote do lixo, como veementemente repudiado por todos os cientistas a seguir à Segunda Guerra Mundial. Isso não contradizia o facto de haver diferenças significativas entre as várias culturas humanas.

Mas a dada altura, na segunda metade do século 20, surgiram os relativistas culturais a fazer o seu caminho defendendo que as diferenças culturais não implicavam que houvesse uma hierarquia valorativa que determinasse umas culturas superiores às outras. Naturalmente que todas as crenças e todas as práticas sociais devem ser comemoradas, porém, devemos nos interpelar em relação a algumas práticas culturais que legitimam: o infanticídio; a lapidação por adultério; a mutilação genital feminina; e por aí fora, entre muitas outras. Neste contexto, manifestações contra essas práticas tradicionais de algumas culturas, na verdade, devem ser classificadas de manifestações de crítica cultural, e não de manifestações racistas.

Atualmente já não deve haver desculpa nem condescendência para qualquer manifestação racista, que fique bem claro. A perda do seu fundamento leva também à perda de qualquer respeitabilidade política. Mas não dever ser a primeira hipótese quando está envolvido o agente da autoridade na sua missão de proteger os cidadãos, seja qual for a sua cor de pele. As práticas policiais seguem os melhores padrões ditados pelas instâncias internacionais alicerçados no historial da experiência passada. É claro que isto não significa que o móbil biológico se possa sobrepor à razão cultural, e tenha implicações profundas nos juízos de avaliação contaminados pelo preconceito, tanto idiossincrático como ideológico.

Antropólogos e sociólogos sentem-se muito desconfortáveis por temerem que o debate candente resvale para primarismo de todos os tempos. Não se pode negar que certas diferenças culturais ainda são objeto de grande conflito. O que está em causa são os termos e os momentos circunstanciais históricos em que vivemos. Dando um exemplo: pode não ser aceitável, mas compreensível, que um trabalhador português numa empresa na China tenha os mesmos problemas – quanto à justiça feita com a sua promoção – que um trabalhador chinês numa empresa em Portugal. Aqui o que está em causa são realidades distintas umas das outras, e que não há que levar a mal que na China o chinês passe à frente do português, e em Portugal seja o português a passar à frente do chinês numa promoção, sem que o critério tenha sido por mérito.

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