Daniel Oliveira na
sua última crónica do Expresso Diário, diz que não é um “principista”, isto
porque questões de princípio podem sabotar os valores que supostamente se
querem defender. Por exemplo, é contra a proibição do uso do hijab nas escolas
francesas porque não só acha essa imposição escusada e contraproducente, como
vai privar pessoas de um bem maior que é a instrução e o conhecimento. Mas
prossegue dizendo que por não ser um “principista” não significa que aceite a
atomização cultural. Daí se segue que não se considera um multiculturalista,
mas um cosmopolita. O multiculturalismo, segundo Daniel Oliveira, é a recusa do
cosmopolitismo por via do isolamento. Portanto, um cosmopolita é, por assim
dizer, um “promíscuo cultural” no bom sentido, na medida em que há uma partilha
bidirecional de culturas na sua rica diversidade por serem exprimidas em
liberdade, apesar de todas obedecerem às mesmas leis do país em que vivem.
Uma questão muito
colocada no debate atual sobre a imigração é a da diferença entre culturas: As
culturas valem inerentemente todas o mesmo, ou há evidência que na diversidade
das culturas umas são objetivamente e honestamente melhores do que outras? Os
alemães, ao integrarem em muito pouco tempo um milhão de refugiados sírios,
podem sentir-se, com razão, orgulhosos, quando pensam que a cultura alemã é, de
certa maneira, melhor do que a cultua síria?
O debate em torno
deste tema não deve ser conduzido como uma luta absoluta entre o bem e o mal.
Trata-se de uma discussão de prós e contras na vida prática em clima
democrático. É muito mais fácil um muçulmano emigrar para a Alemanha do que um
cristão emigrar para a Arábia Saudita. E depois? Se efetivamente é assim,
haverá algum mal, ou dir-se-á algum disparate se se disser que a cultura alemã
é melhor do que a cultura saudita?
O racismo, após
1945, passou a ser não apenas moralmente aberrante, como cientificamente
abominável. Os biólogos, e particularmente os geneticistas, provaram de forma
inequívoca que as diferenças físicas entre pessoas nativas de partes do mundo
geograficamente distintas, eram irrelevantes para o caráter único que
especifica o homo sapiens em qualquer canto do mundo. Tudo o que certos
autores, antropólogos ou não a coberto da ciência, até aí tinham dito sobre
umas raças humanas serem superiores a outras quanto ao nível de inteligência,
não só foi deitado para o caixote do lixo, como veementemente repudiado por
todos os cientistas a seguir à Segunda Guerra Mundial. Isso não contradizia o
facto de haver diferenças significativas entre as várias culturas humanas.
A dada altura, na segunda
metade do século 20, surgiram os relativistas culturais a fazer o seu caminho defendendo
que as diferenças culturais não implicavam que houvesse uma hierarquia
valorativa de umas serem superiores às outras. Todas as crenças e todas as
práticas sociais deviam ser comemoradas. Porém, a prática veio interpelar-nos
para nos pronunciarmos em relação a algumas práticas tais como o infanticídio,
a lapidação por adultério, mutilação genital feminina, e por aí fora entre muitas
outras.
Portanto, algumas
manifestações que vemos hoje em dia pronunciar-se contra certas práticas
tradicionais de uma cultura ou outra, e que vemos outras pessoas classificar
essas manifestações de racismo, na verdade, deviam ser classificados, quando
muito, de culturismo.
Hoje em dia, ainda
que prevaleçam algumas franjas da sociedade que se comportem como racistas
tradicionais, elas perderam todo o seu fundamento e respeitabilidade política. Mas
poderá ser mais correto chamar culturista, e não racista, a um polícia que se vale da cor
da pele como heurística de trabalho para construir a sua grelha de suspeições.
Pode, eventualmente, estar imbuído de racismo, mas não é essa a hipótese que
devemos colocar em primeiro lugar na maioria dos casos em que está envolvido o
agente da autoridade na sua missão de proteger os cidadãos. As práticas
policiais seguem padrões que são ditados, quer pela História, quer pelo
historial da experiência passada. É claro que isto não significa que a mudança
do móbil biológico para a razão cultural não tenha implicações profundas,
algumas boas, outras más. Há a tentação para considerar que, se os “outros”
adotarem a nossa cultura, tanto melhor. Mas isso é o que Daniel Oliveira chama
a atenção para a sua preferência pelo cosmopolitismo sobre o multiculturalismo.
Em muitos casos não se encontra justificação para que se exija que se adote uma
dada particularidade da nossa cultura, quando se trata de puro preconceito ou
idiossincrasia.
No entanto, os antropólogos
e sociólogos de hoje sentem-se muito desconfortáveis nestas discussões porque é
muito fácil o resvalo para o “politicamente incorreto”, o que pode levar a que
tudo volte ao princípio, ao primarismo de todos os tempos. Não se pode negar que
certas diferenças culturais ainda são objeto de grande conflito. Muitas vezes tem-se
a ideia errada de que o que é nosso é sempre melhor do que o que é do outro,
quando o que está em causa são apenas termos e momentos locais ou circunstanciais
históricos. Dando um exemplo: pode não ser aceitável, mas compreensível, que um
trabalhador português numa empresa na China tenha os mesmos problemas – quanto
à justiça feita com a sua promoção – que um trabalhador chinês numa empresa em
Portugal. Aqui o que está em causa são realidades distintas umas das outras, e
que não há que levar a mal que na China o chinês passe à frente do português, e
em Portugal seja o português a passar à frente do chinês na promoção sem que o
critério tenha sido por mérito.
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