terça-feira, 18 de setembro de 2018

De Damasco a Malmo: a saga de H. al-S. (3ª e última parte)


          Já falta pouco para H. al-S. conseguir o seu desiderato de entrar clandestinamente em Malmo e aí pedir asilo. Ainda se encontra em Hamburgo, numa altura em que lhe chegam notícias contraditórias. Por um lado, Merkel acabou de dar maior abertura à imigração vinda da Síria. Mas por outro a situação na Suécia sofreu um certo revés após os últimos acontecimentos relacionados com atentados jihadistas. Nesta altura, 2015, a opinião pública europeia, ainda não os seus líderes pelo menos oficialmente, dava como falhada a parte mais fácil do quebra-cabeças da imigração: conseguirem os europeus serem misericordiosos com os necessitados sem serem injustos consigo próprios. Não está na mão dos europeus resolver a situação na Síria.
          Agora a escassez de alojamentos na Suécia está a criar problemas ao governo sueco. Devido ao clima frio da Suécia, a solução das tendas usadas nos países do Sul, na Escandinávia custa entre 50 a 100 vezes mais. É difícil convencer o povo sueco de que os migrantes sírios vão ficar no país temporariamente até o país estabilizar, quando já têm a experiência com as dezenas de milhar de migrantes oriundos dos Balcãs, e que ainda estão por lá passados mais de vinte anos.
          H. al-S. ainda tem que tomar cuidados de camuflagem. Por isso, depois de ter comprado na máquina self-service o bilhete para Copenhaga, prefere passar ali a noite e viajar de dia. Às vezes há controlos na fronteira dinamarquesa, e é-se mais notado se se viaja à noite. Compra uma pequena fatia de pizza por dois euros. Agora o apetite começa a voltar.
          Às primeiras horas da manhã de terça-feira H. al-S. põe os pés no cais da capital dinamarquesa, treze dias depois de partir do Egito, seis depois de chega a Itália, está apenas a uma hora da terra prometida. Nas duas últimas semanas arriscou a prisão, a morte, passou fome para atravessar um mar e um continente. Cheira mal, falta de sono e uma ferida no pé infetada. Com os nervos à flor da pele que chegar lá sem ser preso, encontrar um refúgio a curto prazo e assegurar um futuro a longo prazo. O comboio entra na ponte e lá fora está escuro como breu, apenas as luzes da costa distante da Suécia. Chegado ao cais, a mudança é quase impercetível. H. al-S. olha pela janela para ver se aparece algum polícia. São 2:41, 22 de abril de 2015, Malmo, a primeira grande cidade da Suécia, acaba de chegar ao país a que espera chamar a sua casa para o resto da vida. Telefona à mulher lá longe no Egito e diz: “Cheguei”. E telefona ao cunhado que o virá buscar para o ajudar a orientar-se nos dias longos que ainda vai ter de penar até obter asilo.
          Em 23 de outubro de 2015 H. al-S., o que não é habitual nele, chora. Na biblioteca pública de Skinnskatteberg, a percorrer o Facebook, aparecem entradas familiares sobre o que está a acontecer na Síria. Mas a informação oque o põe a chorar é o que alguém escreveu: os partidos políticos da Suécia concordaram conjuntamente em acabar com a autorização de residência permanente para os sírios, com exceção dos que vierem acompanhados da família. Seis meses passados na Suécia e ainda está à espera de saber se lhe foi concedido asilo. Regressa ao “centro de alojamento de Skinnskatteberg” onde estão lá outros como ele também a falar do mesmo assunto, ainda mais desanimados do que ele. Um sírio que já está na Suécia há um ano, berra e dá murros nas paredes. O número elevado de novos candidatos a asilo sobrecarregou o sistema sueco, ao ponto de ter praticamente parado a tomada de decisões.
          Este “centro de alojamento de Skinnskatteberg”, foi o melhor que a Migrationsverket pôde arranjar a H. al-S. e a mais setenta estrangeiros assustados. As autoridades já têm dificuldade em arranjar lugar para tantos recém-chegados. No início colocaram-no num quarto com mais quatro homens. Mas ele entrou logo em pânico, porque desde que esteve preso passou a sofrer de síndrome de stress pós-traumático, e para não entrar em pânico precisava de um quarto só para ele. Apesar da simpatia dos funcionários do Migrationsverket ainda demorou algum tempo a conseguir esse quarto. Infelizmente não dura muito. Uma semana depois, ao regressar de uma caminhada, vê outro sírio deitado no andar de cima do seu beliche. Fica tão perturbado que essa noite vai passá-la sentado na sala de jatar, com medo de dormir. Por azar, havia cometido o erro de dizer olá a uma eritreia. O eritreu, que assistiu à interação, ao pedir-lhe satisfações acabou por lhe dar um murro. Depois disso, o eritreu, sempre que o encontra no corredor, insulta-o. Te medo de sair do quarto, mas sente-se mal se não sair. Enfim, até agora a Suécia apenas lhe ofereceu o purgatório.
          Mas o sentimento de miserável dissipa-se quando faz as pazes com o eritreu e a Migrationsverket lhe proporciona novamente um quarto só para ele, e chega finalmente o dia da sua entrevista. Entra no elevador, sobe até ao sétimo andar, e espera que abra o escritório da Migrationsverket. Durante duas horas são-lhe feitas uma série de perguntas sistematizadas: É de que parte da Síria? Como é a zona? Qual é a situação nessa zona? Porque foi preso, alguma vez manifestou filiação política? Porque partiu? e… e por aí fora.
          Já passou um mês, depois da entrevista, e é penosa a sua visita ao portal da Migrationsverket várias vezes por dia à procura da resposta. Anda numa pilha de nervos, preocupado com a falta de informação. E o clima político vai-se adensando com o outono a entrar. A pressão dos refugiados é cada vez maior e a Suécia continua isolada a suportar um fardo desproporcional: 170 mil até finais de 2015. Os políticos irritam-se, com a extrema direita a atiçar o risco de a Suécia ter deixado de ser para os suecos. Os “Democratas da Suécia”, um parido de extrema direita com alguns membros fundadores de índole neonazi, sobem nas sondagens. O partido dos “Conservadores” conhecido como “Moderados”, na oposição, propõem acabar com a autorização de residência permanente para os sírios. Os “Sociais Democratas”, numa coligação de esquerda no governo, cedem, concordando que a política de residência permanente acabe dentro de meses. O acesso ao reagrupamento familiar também será restringido.
          H. al-S. anda muito perturbado com estas notícias, receando que a sua decisão não chegue a tempo. A Migrationsverket apela ao exército sueco para ajudar a gerir a situação. Já não há alojamentos suficientes para os refugiados, e é preciso improvisar a que os suecos há muito que não estavam habituados, como colocar refugiados a dormir no chão em cinco centros de acolhimento. Por isso, não nos deve surpreender que tudo isto tenha provocado uma crise de identidade sueca.
Até que finalmente chega o dia em que H. al-S. lê na página da Migrationsverket, traduzido em árabe: “Estado da Candidatura. O seu pedido de residência, de autorização de trabalho, de permissão para estudar, de cidadania ou de asilo foi recebido. O Conselho de Imigração da Suécia tomou uma decisão relativa à concessão ou recusa do seu pedido”. E mais nada. Nada que explique se a decisão foi positiva ou negativa. SE com as regras do novo regime ou do antigo.
          H. al-S. volta a apresentar-se mais uma vez na Migrationsverket. Um balde de água fria. A decisão realmente ainda não está pronta. Dizem-lhe para voltar dali a uma semana. Quando volta passado uma semana, são 8:30 e é o primeiro da fila. A ansiedade é muita, mas não quer admitir sequer que a viagem do Egito, a travessia do Mediterrâneo e a seguir a Europa, tenha toda essa provação sido em vão.
          Finalmente a porta abre-se. A multidão irrompe. Vai ser dos primeiros a ser atendido. Nem um minuto passou e vê o número da sua senha a piscar no visor pendurado na parede. Entra no gabinete correspondente, e é recebido por uma mulher com ar grave do outro lado do balcão, que ato compassado lhe empurra um envelope na sua direção, com um cartão lá dentro. Tira o cartão e lê finalmente as palavras de que há muito estava à espera: “Permanent Uppehallstillstand”.
          Em maio de 2016 a família de H. al-S. já fez o pedido de reagrupamento familiar. Já não se veem há mais de dois anos, mas há de chegar o dia em que finalmente H. al-S., a mulher e os seus três filhos ficarão todos juntos a viver H. al-S.  na Suécia.

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