segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Os suplícios e a moldura do castigo



          Em Vigiar e Punir, Michel Foucault diz ao que vem começando por apresentar o relato de duas condenações no século XVIII em França, sendo que a segunda distanciada da primeira cerca de trinta anos, para evidenciar como evoluiu positivamente a moldura do castigo quanto aos métodos de suplício. Entre tantas modificações, o desaparecimento dos suplícios. É instituído o júri cujo caráter é o corretivo. Punições menos diretamente físicas, menos ostentação dos métodos.
          Assim, de um momento para o outro desapareceram os suplícios, os corpos esquartejados, expostos como espetáculo. No fim do século XVIII e começo do XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai-se extinguindo. É suprimido o espetáculo punitivo. O cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser um ato de procedimento administrativo. A confissão pública dos crimes é abolida em França pela primeira vez em 1791, depois novamente em 1830 após ter sido restabelecida por breve tempo. A França aboliu o pelourinho em 1789 e a Inglaterra em 1837. Na Áustria, Suíça e algumas províncias americanas como a Pensilvânia, acabou o espetáculo nas ruas dos condenados com coleiras de ferro, em vestes multicores, grilhetas nos pés, trocando com o povo desafios, injúrias, zombarias, pancadas, sinais de rancor ou de cumplicidade. Quanto às cadeias que arrastavam os condenados a serviços forçados através de toda a França, até Brest e Toulon, foram substituídas em 1837 por decentes carruagens celulares, pintadas de preto. A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena, uma fornalha em que se acende a violência. A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal.
          A justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada ao seu exercício. O facto de ela matar ou ferir já não é mais a glorificação de sua força que envolvia ao mesmo tempo o carrasco e o condenado: e se por um lado sempre estava a ponto de transformar em piedade ou em glória a vergonha infligida ao supliciado, por outro lado, ele fazia redundar geralmente em infâmia a violência legal do executor: “O essencial da pena que nós, juízes, infligimos não creiais que consista em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, curar. O tempo das forças, do pelourinho, do patíbulo, do chicote, da roda, são vergonhas do passado, marcas de uma barbárie sem nome nem razão.”
          Van Meenen ao abrir sessenta anos mais tarde, o segundo congresso penitenciário, em Bruxelas, lembrava o tempo da sua infância como uma época passada: “Vi o solo semeado de rodas, de forcas, de patíbulos, de pelourinhos; vi esqueletos horrendamente estendidos sobre rodas”.
          Dir-se-á: “a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio, a deportação – que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos – são penas físicas, com exceção da multa, se referem diretamente ao corpo.”
          Mas a relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem. Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado”. Por efeito dessa nova retenção, surgem novos agentes que vieram substituir o carrasco, o anatomista imediato do sofrimento. Vieram guardas, médicos, capelães, psiquiatras e psicólogos educadores. A garantia de que a dor do corpo não é o objetivo último da ação punitiva. O médico deve cuidar dos condenados, mesmo daqueles condenados à morte, até ao último instante.

1 comentário:

Fernando Dias disse...

Hoje em dia só o Estado é detentor do exclusivo direito de punir. O que é essencial para que vivamos em paz e segurança. Mas esse ganho nos impõe um alto e grave custo pessoal. A fim de nos induzir a fazê-lo, martelam-nos constantemente a cabeça com a mensagem de que buscar a vingança é algo muito mau. Mas, embora se devam impedir as ações inspiradas por sentimentos de vingança, sabemos pela psicologia e pelas neurociências que esses sentimentos nos foram selecionados ao longo de milénios pela evolução natural. Esses sentimentos são naturais e intensos, quando algum parente nosso é vítima de um dano grave, como o assassinato.
Estudos etnográficos de sociedades humanas tradicionais, que vivem quase inteiramente fora do controle de governos estatais, têm mostrado que vivem em estado permanente de conflito com vizinhos. E, todavia, os membros dessas sociedades são, com frequência, pessoas normais, felizes e bem ajustadas. A diferença das nossas sociedades é que somos ensinados a abraçar normas que apenas em tempos de guerra é permitido violá-las. Sendo repostas depois de concluído um tratado de paz.
De facto, ainda ocorre em alguns países ser garantido aos parentes de vítimas de crimes alguma satisfação pessoal, permitindo que estejam presentes no julgamento do acusado; permitindo, em alguns casos, que se dirijam ao juiz ou ao júri; ou providenciando encontros privados com o criminoso, por meio do sistema de justiça restaurativa. Como cidadãos de Estados modernos, costumamos ignorar quão forte pode ser a sede de vingança. Entre as emoções humanas, esta se situa ao lado do amor, da raiva, da tristeza e do medo. No entanto, as modernas sociedades de Estado permitem e encorajam as expressões de amor, raiva, tristeza e medo, mas não a nossa sede de vingança.
Crescemos aprendendo que os sentimentos de vingança são uma coisa primitiva da qual nos devemos envergonhar, algo que devemos transcender. Assim as sociedades recorrem a crenças, geralmente de índole religiosa, mas nem sempre, que são inculcadas para nos desencorajarmos a buscar vingança pessoal. Não há dúvida de que nos seria impossível coexistir pacificamente como concidadãos do mesmo Estado se não abjurássemos nosso direito de exercer a vingança pessoal e se não deixássemos a punição nas mãos do Estado. E, no entanto, é compreensível, mesmo quando se fez justiça, todos nós quando somos vítimas de algo, permanecemos atormentados, ainda por muito tempo, por não termos tido a satisfação da vingança pessoal.
Embora os casos de ódio que se geram por via da guerra entre países, não tenham nada a ver com o ódio interpessoal ou passional, sobretudo neste estádio de Estados modernos, hoje em dia o panorama é diverso. Por exemplo, muitos soldados de uma boa parte dos países designados por “países ocidentais”, envolvidos em cenários de guerra real, não conseguem se obrigar a apontar a arma contra o inimigo e disparar. E aqueles que o fazem, e matam, acabam por sofrer de síndrome de stresse pós-traumático. Quando voltam para casa, longe de se vangloriarem da matança, têm pesadelos e não falam sobre o assunto com ninguém, a não ser com os outros colegas que tiveram a mesma experiência. Felizmente para mim, não passei pela experiência da Guerra do Ultramar, como uma boa parte da rapaziada do meu tempo do liceu, alguns com uma duradoura síndrome de stress pós-traumático.
Portanto, não sei o que é ser um veterano de guerra. Nem consigo imaginar como me sentiria se algum desses amigos me contasse os detalhes pessoais de como ele matou soldados inimigos. No decurso da minha vida, tive centenas de conversas acerca da guerra, alguns deles parentes próximos. Mas nem um único deles jamais me relatou como matou alguém. Portanto, desconheço que tipo de monstros deturpados são essas pessoas que falam tão descaradamente do seu prazer de matar inimigos.

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