Em Vigiar e Punir,
Michel Foucault diz ao que vem começando por apresentar o relato de duas
condenações no século XVIII em França, sendo que a segunda distanciada da
primeira cerca de trinta anos, para evidenciar como evoluiu positivamente a
moldura do castigo quanto aos métodos de suplício. Entre tantas modificações, o
desaparecimento dos suplícios. É instituído o júri cujo caráter é o corretivo. Punições
menos diretamente físicas, menos ostentação dos métodos.
Assim, de um
momento para o outro desapareceram os suplícios, os corpos esquartejados,
expostos como espetáculo. No fim do século XVIII e começo do XIX, a despeito de
algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai-se extinguindo. É
suprimido o espetáculo punitivo. O cerimonial da pena vai sendo obliterado e
passa a ser um ato de procedimento administrativo. A confissão pública dos
crimes é abolida em França pela primeira vez em 1791, depois novamente em 1830
após ter sido restabelecida por breve tempo. A França aboliu o pelourinho em
1789 e a Inglaterra em 1837. Na Áustria, Suíça e algumas províncias americanas
como a Pensilvânia, acabou o espetáculo nas ruas dos condenados com coleiras de
ferro, em vestes multicores, grilhetas nos pés, trocando com o povo desafios,
injúrias, zombarias, pancadas, sinais de rancor ou de cumplicidade. Quanto às
cadeias que arrastavam os condenados a serviços forçados através de toda a
França, até Brest e Toulon, foram substituídas em 1837 por decentes carruagens
celulares, pintadas de preto. A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena,
uma fornalha em que se acende a violência. A punição vai-se tornando, pois, a
parte mais velada do processo penal.
A justiça não mais
assume publicamente a parte de violência que está ligada ao seu exercício. O facto
de ela matar ou ferir já não é mais a glorificação de sua força que envolvia ao
mesmo tempo o carrasco e o condenado: e se por um lado sempre estava a ponto de
transformar em piedade ou em glória a vergonha infligida ao supliciado, por
outro lado, ele fazia redundar geralmente em infâmia a violência legal do
executor: “O essencial da pena que nós, juízes, infligimos não creiais que
consista em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, curar. O tempo das
forças, do pelourinho, do patíbulo, do chicote, da roda, são vergonhas do
passado, marcas de uma barbárie sem nome nem razão.”
Van Meenen ao
abrir sessenta anos mais tarde, o segundo congresso penitenciário, em Bruxelas,
lembrava o tempo da sua infância como uma época passada: “Vi o solo semeado de
rodas, de forcas, de patíbulos, de pelourinhos; vi esqueletos horrendamente
estendidos sobre rodas”.
Dir-se-á: “a
prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição
de domicílio, a deportação – que parte tão importante tiveram nos sistemas
penais modernos – são penas físicas, com exceção da multa, se referem
diretamente ao corpo.”
Mas a relação
castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo encontra-se
aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre
ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de
sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem. Segundo
essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de
obrigações e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais
os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações
insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver
que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância,
propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais
“elevado”. Por efeito dessa nova retenção, surgem novos agentes que vieram substituir
o carrasco, o anatomista imediato do sofrimento. Vieram guardas, médicos,
capelães, psiquiatras e psicólogos educadores. A garantia de que a dor do corpo
não é o objetivo último da ação punitiva. O médico deve cuidar dos condenados,
mesmo daqueles condenados à morte, até ao último instante.
1 comentário:
Hoje em dia só o Estado é detentor do exclusivo direito de punir. O que é essencial para que vivamos em paz e segurança. Mas esse ganho nos impõe um alto e grave custo pessoal. A fim de nos induzir a fazê-lo, martelam-nos constantemente a cabeça com a mensagem de que buscar a vingança é algo muito mau. Mas, embora se devam impedir as ações inspiradas por sentimentos de vingança, sabemos pela psicologia e pelas neurociências que esses sentimentos nos foram selecionados ao longo de milénios pela evolução natural. Esses sentimentos são naturais e intensos, quando algum parente nosso é vítima de um dano grave, como o assassinato.
Estudos etnográficos de sociedades humanas tradicionais, que vivem quase inteiramente fora do controle de governos estatais, têm mostrado que vivem em estado permanente de conflito com vizinhos. E, todavia, os membros dessas sociedades são, com frequência, pessoas normais, felizes e bem ajustadas. A diferença das nossas sociedades é que somos ensinados a abraçar normas que apenas em tempos de guerra é permitido violá-las. Sendo repostas depois de concluído um tratado de paz.
De facto, ainda ocorre em alguns países ser garantido aos parentes de vítimas de crimes alguma satisfação pessoal, permitindo que estejam presentes no julgamento do acusado; permitindo, em alguns casos, que se dirijam ao juiz ou ao júri; ou providenciando encontros privados com o criminoso, por meio do sistema de justiça restaurativa. Como cidadãos de Estados modernos, costumamos ignorar quão forte pode ser a sede de vingança. Entre as emoções humanas, esta se situa ao lado do amor, da raiva, da tristeza e do medo. No entanto, as modernas sociedades de Estado permitem e encorajam as expressões de amor, raiva, tristeza e medo, mas não a nossa sede de vingança.
Crescemos aprendendo que os sentimentos de vingança são uma coisa primitiva da qual nos devemos envergonhar, algo que devemos transcender. Assim as sociedades recorrem a crenças, geralmente de índole religiosa, mas nem sempre, que são inculcadas para nos desencorajarmos a buscar vingança pessoal. Não há dúvida de que nos seria impossível coexistir pacificamente como concidadãos do mesmo Estado se não abjurássemos nosso direito de exercer a vingança pessoal e se não deixássemos a punição nas mãos do Estado. E, no entanto, é compreensível, mesmo quando se fez justiça, todos nós quando somos vítimas de algo, permanecemos atormentados, ainda por muito tempo, por não termos tido a satisfação da vingança pessoal.
Embora os casos de ódio que se geram por via da guerra entre países, não tenham nada a ver com o ódio interpessoal ou passional, sobretudo neste estádio de Estados modernos, hoje em dia o panorama é diverso. Por exemplo, muitos soldados de uma boa parte dos países designados por “países ocidentais”, envolvidos em cenários de guerra real, não conseguem se obrigar a apontar a arma contra o inimigo e disparar. E aqueles que o fazem, e matam, acabam por sofrer de síndrome de stresse pós-traumático. Quando voltam para casa, longe de se vangloriarem da matança, têm pesadelos e não falam sobre o assunto com ninguém, a não ser com os outros colegas que tiveram a mesma experiência. Felizmente para mim, não passei pela experiência da Guerra do Ultramar, como uma boa parte da rapaziada do meu tempo do liceu, alguns com uma duradoura síndrome de stress pós-traumático.
Portanto, não sei o que é ser um veterano de guerra. Nem consigo imaginar como me sentiria se algum desses amigos me contasse os detalhes pessoais de como ele matou soldados inimigos. No decurso da minha vida, tive centenas de conversas acerca da guerra, alguns deles parentes próximos. Mas nem um único deles jamais me relatou como matou alguém. Portanto, desconheço que tipo de monstros deturpados são essas pessoas que falam tão descaradamente do seu prazer de matar inimigos.
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