Com cem dólares no
bolso H. al-S. não passaram mutios dias até se aperceber que o Egito
não tardaria a estar à beira de uma guerra civil. À falta de melhor arranjou
maneira de chegar a uma localidade perto do Suez onde vivia um amigo seu.
Assim, sem
dinheiro para alugar uma casa, durante quatro meses, enquanto ele trabalhava
numa fábrica de carvão a 100 dólares por mês, a família viveu nos arrumos de um
pequeno ateliê de confeção. Por esta altura, recebe a notícia da morte do pai. Um dia, num
caminho à saída do trabalho, um homem parou ao seu lado e pediu-lhe os
documentos. Ele ainda refilou, mas o carro da polícia que estava por perto
aproximou-se e o capitão pegou nele e atirou-o para o banco de trás e arrancou
de imediato. O que eles pretendiam era extorquir-lhe dinheiro. Levaram-no para as
dunas. Como de facto não tinha dinheiro, mandaram-no sair deixando-o ali na
escuridão.
Até que veio o
verão de 2014 e um amigo a viver na Alemanha ofereceu-se para lhe adiantar o
dinheiro para a família ir de barco para a Europa. Para o efeito eram necessários
7.000 dólares. A fazer já contas de cabeça, a Suécia parecia-lhe a melhor
opção. Desde os finais de 2013 que o governo da Suécia havia permitido dar
residência permanente a todos os sírios que pedissem asilo. Mas, primeiro, era
preciso chegar lá.
Assim, metidos num
apartamento mixuruca de subúrbio, por conta dos contrabandistas, aguardaram
dias a fio com falsas partidas em mais do que uma tentativa. Um dia vieram
buscá-los ao cair da noite, e juntamente com centenas de outras pessoas foram
metidos em quatro ou cinco autocarros com as cortinas corridas e conduzidos
para o ponto de embarque. Passadores à frente e atrás da caravana com a cara
tapada, escoltaram-nos numa viagem muito atribulada que durou horas em direção
oeste. Houve uma paragem a meio do caminho, em que se ouviram tiros, mas
prosseguiram como se nada tivesse acontecido.
Ao chegarem ao
destino fixado, chegaram a entrar na água através de um buraco apertado na
vedação, mas não chegaram a subir para os botes que balouçavam a alguns metros
de distância e que depois os iria transportar para um barco maior fundeado mais
ao largo. Mas inesperadamente surge do nada a polícia, que misteriosamente, ou
não, é ajudada pelos traficantes a juntar as pessoas na praia. H.
al-S., a família e os outros acabaram por ir parar à cadeia onde
estiveram oito dias. Durante o interrogatório perguntaram a H.
al-S. quem tentou passá-los. Ele mencionou o nome de uma pessoa, mas
percebeu que o inquiridor escreveu o nome de outra. Ainda nessa noite mais
tarde recebeu pelo Viber a ameaça de um passador: “Sabemos que falastes de nós
à polícia. Se voltares a falar, matamos-te a ti, a tua mulher e os teus filhos.
Sabemos onde te encontrar, onde quer que estejas”.
O barco em que
deveriam embarcar, com 500 pessoas a bordo, acabou por naufragar. Ninguém se
salvou.
Ao fim de dois
anos estacionados no Egito, H. al-S. muda de estratégia. Deixa a
família para trás e arrisca pela enésima vez a sua sorte sozinho, seis meses
daquele episódio que por um triz teria sido fatal. São os mesmos passadores
apesar de eles fingirem que são um bando diferente. Mas desta vez é bem-sucedido
na sua entrada na Europa pela Itália, não contando as peripécias inerentes a
estas odisseias de náufragos no Mediterrâneo, más demais para as saber descrever.
No primeiro dia de quatro de viagem em mar alto, quando o sol começa a pôr-se,
há ainda outra mudança de barcos. Os passadores sabem que vão perder a
embarcação quando chegarem a Itália, e então usam um navio que podem
permitir-se perder. Neste outro barco o cansaço começa a tomar conta dos
pensamentos e H. al-S. pensa nos filhos. Se conseguir chegar à Suécia, pode
mandá-los ir ter com ele. Se conseguir chegar à Suécia, eles terão um futuro.
O tempo da
narrativa de H. al-S. é abril de 2015, antes dos atentados de novembro de
2015, em Paris. E antes dos primeiros atentados no Reino Unido em 2017. E
depois foi a vez de Estocolmo, quando um requerente de asilo do Usbequistão que
chegara à Suécia em 2014 roubou um camião e o dirigiu contra as pessoas que
andavam às compras numa das ruas mais movimentadas da Suécia. Cinco pessoas
morreram e muitas mais ficaram feridas. E H. al-S. não tinha o dom da
adivinhação para saber que o pior ainda estava para vir. Novas cercas-fronteira
estavam a ser erguidas na Europa Central.
Há horas que está
em pé sobre uma perna, para dar a outras pessoas mais espaço para dormirem. Às quatro
da manhã um passageiro dá o seu lugar a H. al-S. para ele dormir. Já é dia
quando é acordado com um abanão. Quatro enormes barcos vermelhos insufláveis que
envolvem o navio deles. Cada um tem uma cabine branca e as letras pintadas “Guardia
Costiera”. Ainda estão a um dia de Itália, mas por agora o pesadelo acabou. São
transferidos para um navio de casco de aço de maior calado, primeiro as
mulheres e as crianças. As pessoas dão vivas a Itália. No dia seguinte aportam
em Catânia, na Sicília, e os traficantes egípcios são facilmente topados pela
polícia que subiu a bordo antes que alguém desembarcasse. Os migrantes negaram
que eram eles, mas não adiantou de nada, foram detidos e levados sob escolta.
Dezoito horas depois H. al-S. já se encontrava em Veneza.
No dia seguinte, depois de uma dormida nos bancos da estação de Mestre, chegam
ao terminal principal de Milão, a plataforma das viagens para o norte da Europa.
Aqui, consegue levantar via Western Union 500 euros que o cunhado na Suécia há
um ano lhe enviou para fazer face às despesas básicas.
Nos primeiros
passos de H. al-S.na Europa, não estavam nos seus planos ver-se obrigado
a saltar ainda mais obstáculos: pontos de passagem de fronteiras, polícia… Aconselhado
telefonicamente por um amigo, que agora se encontra salvo na Alemanha depois de
ter passado pelo mesmo, opta por chegar à Alemanha via França, Nice. Num
comboio já em território francês, o objetivo é chegar à Alemanha sem que seja
apanhado pela polícia. Na Alemanha o procedimento e candidatura ao
reagrupamento familiar é considerado mais simples, sem registo das impressões
digitais. Mas primeiro tem de atravessar a França, porque se for apanhado em
França e obrigado a pedir asilo aqui, não poderá deslocar-se para nenhum dos
seus destinos preferidos. Eis senão quando os gendarmes franceses entram no
comboio. Enquanto ele se esconde nos lavabos mesmo a tempo, dois eritreus são
presos na mesma carruagem, para serem recambiados para Itália, onde a polícia recolherá
as suas impressões digitais, um procedimento formal que significa que terão de
pedir asilo em Itália.
Desta vez H.
al-S. escapou, sentindo-se aliviado ao descer do comboio na estação de
Nice, onde de imediato destrói todas as provas de que alguma vez tenha estado
em Itália. Compra o Le Monde, mete-o debaixo do braço. E depois compra um
bilhete de comboio que o levará até à capital. Chegado à Gare d’Austerlitz,
apanha o metro para a Gare de l’Est, onde vai apanhar o comboio para a
Alemanha. Na bilheteira, pede um bilhete para Hamburgo, via Frankfurt: 250
euros. H. al-S. piscou os olhos, porque não queria acreditar que o
bilhete fosse assim tão caro. Mas neste momento não tem outra escolha. Os
caminhos de ferro da Europa não param de o impressionar. Ainda tem tempo de
comprar giletes descartáveis, porque as aparências contam quando entrar na
Alemanha. Assim, também compra o jornal “Süddeeutsche Zeitung”. Senta-se no seu
lugar com o jornal pousado no colo, põe uns auscultadores nos ouvidos, e com o jornal no colo embrenha-se na
música, esperando que ninguém venha pô-lo à prova na leitura, até que a carruagem inteira
tem um sobressalto: o comboio pára em Saarbrücken, e algumas pessoas voltam-se
e olham.
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