Num dia de 2012, à
tardinha, batem-lhe à porta. Era vinte homens fardados que o vinham buscar, a
ele e a metade das pessoas da sua rua, a poucos quilómetros a sueste de Damasco.
Não sabia quem eram, se do exército, se da polícia ou se da milícia. Nessa
altura o ditador, Bashar al-Assad, ex-médico oftalmologista, já se tinha fartado
de tratar o seu povo a ferro-e-fogo. H. al-S. foi levado para uma rede
secreta de celas subterrâneas construídas sob o aeroporto de Damasco. Não
falemos aqui das torturas.
Passados seis
meses, sem contar, um oficial foi ter com ele e disse que ia ser libertado por
amnistia. Conduzido numa carrinha para o centro da cidade, com outros prisioneiros,
onde são atirados para a rua. Quando chega a casa, nada é como dantes. Dois irmãos
haviam sido mortos pelo mesmo sniper no mesmo dia, enquanto o segundo tentava
recolher o cadáver do primeiro. Então decide sair dali à procura de mais
segurança. Pega na mulher e nos três filhos e vai para outra aldeia perto dali.
Mas passados poucos dias, também não está em sítio seguro, com bombas a cair a
metros dos seus filhos no regresso da escola. Muda-se então para uma outra
aldeia do outro lado de Damasco.
Em fevereiro de
2013 a sua casa foi definitivamente destruída. H. al-S. ainda traz
consigo no bolso a chave de casa, mas a porta que abria já não existe. A Síria
deixou de ser um país. Agora são os jihadistas que comandam a rebelião, e o
grupo que viria a chamar-se Estado Islâmico começa a fazer avanços significativos
no norte da Síria.
Então, é quando decide
um passaporte para sair do país que é novamente detido e levado para a prisão,
que apesar de tudo é mais curta que a primeira. Depois de ser libertado soube que
numa série de interrogatórios a colegas seus do serviço de águas, um deles,
alauita, defendeu-o. Encorajado, tentou de novo a sua sorte indo ao serviço de
emigração para obter um passaporte. E para sua surpresa o pedido foi aceite.
É para o Egito que
decide ir com a família, se conseguir arranjar o dinheiro, claro. Na primavera
de 2013 o governo egípcio estava a receber bem os sírios. Estão preparados para
partir, mas H. al-S. ainda precisa de convencer o pai. O pai lamenta-se com
o facto de o filho o abandonar, mas H. al-S. não tem outra hipótese, por
muito que lhe custe deixar o velho entregue à sua sorte. A mulher e os seus
três filhos tocam mais alto.
Metidos num auto-Pullman
que outrora transportava os turistas, seguiram até Aqaba, no Mar Vermelho,
passando provações por uma série de postos de controlo. Num dos postos do
regime, um jovem fazia parte da lista dos procurados. Um soldado agarrou-o e
obrigou-o a sair do autocarro. Os passageiros horrorizados, pois sabem que o
seu destino é ser morto, falam com o motorista e pedem-lhe para perguntar aos
guardas quanto querem para o libertar. O condutor volta com um número: duas mil
libras sírias. Faz-se uma coleta e cada um contribui com as suas últimas
economias. A vida do homem foi salva.
Chegados a Aqaba,
à meia noite de um fim de junho de 2013 entram no ferry que os faz chegar a uma
cidade turística do Sinai peninsular egípcio por volta das quatro da manhã. Foram
os últimos sírios a fazer esta travessia, porque dois dias depois a fronteira
era encerrada.
Quando a guerra
civil na Síria começou, as pessoas clamaram para que as nações ocidentais interviessem
em nome dos direitos humanos, que estavam incontestavelmente a ser violados.
Mas não havia qualquer vontade política para proteger esses direitos porque
tínhamos perdido a fé de os poder fazer cumprir. A Europa passou a ser a utopia
literal, um não-lugar, no preciso momento em que milhões de pessoas de outras
culturas manifestaram vontade de habitar. Mas uma cultura culpada, exausta e
moribunda como pode funcionar incorporando de repente milhões de recém-chegados?
. . . [esta narrativa irá continuar em próximos
apontamentos neste blogue]. . .
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