sexta-feira, 28 de setembro de 2018

A moral é muito mais antiga do que a arrogância chauvinística de cada povo ou cultura quer crer


          Não é apenas ao eurocêntricos que me estou a referir. A maioria das pessoas em qualquer parte do mundo está propensa a acreditar que é o centro do mundo, e que a sua cultura é o sustentáculo da história humana. É desnecessário dizer que britânicos, franceses, alemães, americanos, russos, japoneses e incontáveis outros grupos estão, da mesma forma, convencidos de que a humanidade teria vivido numa bárbara e imoral ignorância não fosse pelas espetaculares conquistas da sua nação.
          Mas nenhuma das religiões ou nações atuais existia quando os humanos se espalharam pelo planeta domesticando plantas e animais, construindo as primeiras cidades, ou inventando a escrita e o dinheiro. Moralidade, arte, espiritualidade e criatividade são aptidões humanas universais desde os primórdios dado estarem incorporadas no genoma. É, portanto, arrogância chauvinística atribuí-los a um lugar e um tempo mais recentes.
          Quem ouve falar os fanáticos literalistas da Bíblia até parece que a Bíblia foi o primeiro texto a pregar a moralidade universal, como se os humanos, antes da época de Abraão e de Moisés, vivessem num estado da natureza sem nenhum comprometimento moral, e como se toda a moralidade contemporânea derivasse dos Dez Mandamentos. É uma ideia sem fundamento e insolente, que ignora muitas das mais importantes tradições éticas do mundo. É difícil de engolir a ideia de que os europeus, que desapossaram com violência os nativos das suas terras aquando da colonização, eram possuidores de padrões morais superiores aos deles. Pelo contrário, todos esses povos já possuíam uma visão ética do mundo bem desenvolvida, tal como os nossos antepassados caçadores-coletores da Idade da Pedra. E ainda podemos ir mais atrás no tempo e na escala evolutiva para dizer que chimpanzés, gorilas, golfinhos, lobos, e por aí fora, possuem regras morais ou éticas.
          Os cientistas hoje em dia afirmam que a moralidade, na verdade, tem profundas raízes evolutivas que precedem o surgimento do homem em milhões de anos. Por exemplo, quando filhotes de lobo brincam uns com os outros, eles têm regras de “jogo limpo”. Se um filhote morde com muita força, ou continua a morder um adversário que rolou de costas, rendendo-se, os outros filhotes vão parar. Se um chimpanzé fêmea jovem encontra uma banana, comumente até mesmo o macho alfa evitará roubá-la para si mesmo, porque ao transgredir essa regra vai perder estatuto. Um caso ainda mais tocante aconteceu nas selvas da Costa do Marfim. Depois de perder a mãe, um jovem chimpanzé teve que lutar para sobreviver sozinho. Nenhuma das outras fêmeas quis adotá-lo, porque estavam sobrecarregadas com as suas próprias crias. Magro e doente, quando tudo parecia perdido, o jovem chimpanzé foi “adotado” pelo macho alfa do grupo.
          Então como se explica que chegados aos nossos dias parece que nada melhorou no que diz respeito à crueldade humana e ao mal moral desde esses tempos imemoriais?
          Teorias não faltam. Por exemplo, Yuval Noah Harari, no seu livro mais recente “21 Lições para o Século 21” é muito eloquente quando diz que o monoteísmo só piorou as coisas –  “O Antigo Testamento, o Talmude e muitos (embora não todos) rabinos sustentam que a vida de um judeu vale mais do que a vida de um gentio, o que explica, por exemplo, por que é permitido a um judeu profanar o Shabat para salvar um judeu da morte, mas é proibido fazer isso para salvar um gentio.”
          Alguns sábios judeus alegaram que até mesmo o famoso mandamento “Ama o próximo como a ti mesmo” se refere apenas a judeus, e que não existe nenhum mandamento para amar gentios. Essa suspeita é muito reforçada pelo facto de que a Bíblia ordena aos judeus que exterminem certos povos. Essas são as primeiras ocasiões registadas na história humana em que o genocídio é apresentado como um dever religioso.
          A Bíblia está longe de ser a fonte exclusiva da moralidade humana, quando contém muitas narrativas que incitam atitudes racistas, misóginas e homofóbicas. Enquanto muitos judeus até hoje acreditam que o assim chamado “povo eleito” está mais perto de Deus do que estão outras nações, devemos enfatizar que pelo menos o cristianismo tornou-se uma espécie de aperfeiçoamento revolucionário de inspiração grega no sei do judaísmo, quando veio pregar uma ética universal. Leiam-se as cartas de São Paulo. Mas depois a prática ao longo dos primeiros séculos veio mostrar o pior.
          Confúcio, Lao Zi, Buda e Mahavira estabeleceram códigos de ética universais muito antes de Paulo e de Jesus. Confúcio ensinou que toda a pessoa deve amar os outros como ama a si mesma quinhentos anos antes de o rabino Hilel, o Velho, ter dito que essa era a essência da Torá. E, numa época em que o judaísmo ainda ordenava o sacrifício de animais e o extermínio sistemático de populações humanas inteiras, Buda e Mahavira já instruíam seus seguidores que evitassem fazer mal não apenas a seres humanos, mas a quaisquer seres sencientes, inclusive insetos. Por isso não faz nenhum sentido creditar ao judaísmo e à sua descendência cristã e muçulmana a criação da moralidade humana.
          De um ponto de vista ético, continuando a parafrasear Yuval Noah Harari, o monoteísmo foi sem dúvida uma das piores ideias na história humana. O monoteísmo pouco fez para melhorar os padrões morais dos humanos. O que o monoteísmo sem dúvida fez foi deixar as pessoas muito mais intolerantes do que eram, contribuindo assim para a disseminação das perseguições religiosas e guerras santas. No entanto sociedades politeístas acham aceitável que povos diferentes cultuem deuses diferentes e realizem ritos e rituais diversos. Raramente, se é que alguma vez, combatem, perseguem ou matam pessoas só por causa de suas crenças religiosas. Os monoteístas, em contraste, acreditam que seu Deus é o único deus, e que Ele exigiu obediência universal. Consequentemente, quando o cristianismo e o islamismo se espalharam pelo mundo, espalhou-se também a incidência de cruzadas, jihads, inquisições e discriminação religiosa.

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