quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Como se explica a desertificação da esquerda?


          A fraqueza global da esquerda é em muitos aspetos surpreendente, uma vez que seria de esperar o contrário depois da crise financeira que rebentou em 2008, e de a desigualdade, o fosso entre ricos e pobres dentro de cada país, ter aumentado ao longo das três últimas décadas. Dentro de cada país, não entre países. Isto contraria o que a esquerda vaticinava há décadas. O mundo tornou-se muito mais rico graças a ganhos de produtividade, mas esses ganhos não foram igualmente distribuídos. E assim, nestas circunstâncias, seria de esperar que se assistisse a um rejuvenescimento da esquerda. Tal não aconteceu.
          É possível que as causas se tenham começado a desencadear há mais tempo. A velha esquerda, de base classista, tem estado num declínio de longo prazo no mundo inteiro desde o desabamento do comunismo arrastado pela queda do Muro, que a seguir arrastou consigo na queda também a social-democracia, uma das forças dominantes, sobretudo na maioria dos países europeus. Então, o que se verificou com esses partidos, que inclui os socialistas, foi que toda a esquerda deu uma guinada para o centro, ao ritmo da terceira via de Blair, para acompanhar a lógica da economia de mercado.
          Mas pior do que terem perdido influência sobre a base do seu eleitorado tradicional, simplificada com a designação de “classe trabalhadora”, os partidos da esquerda perderam-na para a extrema direita nacionalista. Os marxistas ficaram perplexos, porque não estavam à espera que a História entregasse o ouro ao bandido. O que acontece é que é na nação que o povo revê a sua identidade. As motivações económicas subordinam-se às questões de identidade. A indignidade da invisibilidade é pior do que a falta de recursos.
          Ainda que muitos países, chamados em vias de desenvolvimento, tenham visto uma certa percentagem de cidadãos saírem da faixa de pobreza e passado a constituir a classe média, terem passado a usufruir de recursos materiais que definem a classe média, a verdade é que, paradoxalmente, essa passagem conferiu-lhes melhor conhecimento da dignidade a que tinham direito. As pessoas são muito mais sensíveis às perdas, do que aos ganhos. Isto pode explicar porque é que é que as classes médias são aquelas que se manifestam e desestabilizam os regimes políticos, e não os desesperadamente pobres. Sentir perda, e sobretudo perda de estatuto social é o verdadeiro motor da revolta.
          O desejo de reconhecimento da própria dignidade é muito mais forte que o desejo da mera melhoria das condições materiais de vida. E neste estádio evolutivo da condição social que essas pessoas vêm para a rua indignar-se com a situação política. São movidos mais por razões de justiça do que por necessidade de aumento salarial. Ser notado, sentir aprovação social, tudo isso são aspetos que se sobrepõem à ambição de riqueza. A estima de Si só se pode fundar e alimentar se for objeto de atenção e aprovação por parte dos outros.
          Ter um emprego não garante apenas recursos, mas também reconhecimento pelo resto da sociedade de que uma pessoa está a fazer alguma coisa socialmente valiosa. Dar uma esmola a um pobre, ou a um sem-abrigo, ou o rendimento mínimo garantido a uma cigana com três filhos, mas sem os olharmos nos olhos, estamos a aliviar a carência material, mas não a reconhecer e a partilhar a sua humanidade. A verdadeira dor da pobreza é a perda de dignidade. As pessoas gostam de se comparar umas com as outras. E é por isso que uma pessoa rica pode nunca estar satisfeita com a sua riqueza e querer enriquecer mais, porque ainda não é tão rico como fulano e sicrano. Um qualquer padrão de riqueza que limite essa ambição não existe, porque o que nos move na obtenção de riqueza é o desejo de estatuto social, desejo esse que está inscrito na nossa condição biológica de primata.
          A ameaça percebida pela classe média à sua perda de estatuto, devido às profundas transformações nos paradigmas de vida processados na viragem do século XX para o século XXI, pode ser uma das explicações do fenómeno de desertificação da esquerda e da ascensão do nacionalismo populista em muitas partes do mundo nesta segunda década do século XXI. As pessoas que ascenderam à classe média significa que passaram a ter mais estudos. E com isso adquiriram uma consciência de classe mais fácil de mobilizar e mais tempo para a atividade política.
         Assim, a classe média dos dias de hoje de países como os Estados Unidos da América e Inglaterra, é formada por cidadãos ressentidos que temem a perda de estatuto, e apontam o dedo não apenas às elites, mas também a outros grupos sociais ainda mais desfavorecidos, como é o caso de imigrantes à procura de asilo. É considerada gente dolosa não merecedora de lhes passar à frente no usufruto de recursos produto do seu esforço. Por isso não veem com bons olhos gente vulgar que está à espera numa longa fila para entrar pela porta do sonho americano.

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