A fraqueza global
da esquerda é em muitos aspetos surpreendente, uma vez que seria de esperar o
contrário depois da crise financeira que rebentou em 2008, e de a desigualdade,
o fosso entre ricos e pobres dentro de cada país, ter aumentado ao longo das
três últimas décadas. Dentro de cada país, não entre países. Isto contraria o
que a esquerda vaticinava há décadas. O mundo tornou-se muito mais rico graças
a ganhos de produtividade, mas esses ganhos não foram igualmente distribuídos. E
assim, nestas circunstâncias, seria de esperar que se assistisse a um rejuvenescimento
da esquerda. Tal não aconteceu.
É possível que as
causas se tenham começado a desencadear há mais tempo. A velha esquerda, de
base classista, tem estado num declínio de longo prazo no mundo inteiro desde o
desabamento do comunismo arrastado pela queda do Muro, que a seguir arrastou
consigo na queda também a social-democracia, uma das forças dominantes, sobretudo
na maioria dos países europeus. Então, o que se verificou com esses partidos, que
inclui os socialistas, foi que toda a esquerda deu uma guinada para o centro, ao
ritmo da terceira via de Blair, para acompanhar a lógica da economia de
mercado.
Mas pior do que terem
perdido influência sobre a base do seu eleitorado tradicional, simplificada com
a designação de “classe trabalhadora”, os partidos da esquerda perderam-na para
a extrema direita nacionalista. Os marxistas ficaram perplexos, porque não
estavam à espera que a História entregasse o ouro ao bandido. O que acontece é
que é na nação que o povo revê a sua identidade. As motivações económicas subordinam-se
às questões de identidade. A indignidade da invisibilidade é pior do que a
falta de recursos.
Ainda que muitos
países, chamados em vias de desenvolvimento, tenham visto uma certa percentagem
de cidadãos saírem da faixa de pobreza e passado a constituir a classe média, terem
passado a usufruir de recursos materiais que definem a classe média, a verdade
é que, paradoxalmente, essa passagem conferiu-lhes melhor conhecimento da
dignidade a que tinham direito. As pessoas são muito mais sensíveis às perdas,
do que aos ganhos. Isto pode explicar porque é que é que as classes médias são
aquelas que se manifestam e desestabilizam os regimes políticos, e não os
desesperadamente pobres. Sentir perda, e sobretudo perda de estatuto social é o
verdadeiro motor da revolta.
O desejo de
reconhecimento da própria dignidade é muito mais forte que o desejo da mera
melhoria das condições materiais de vida. E neste estádio evolutivo da condição
social que essas pessoas vêm para a rua indignar-se com a situação política. São
movidos mais por razões de justiça do que por necessidade de aumento salarial. Ser
notado, sentir aprovação social, tudo isso são aspetos que se sobrepõem à
ambição de riqueza. A estima de Si só se pode fundar e alimentar se for objeto de
atenção e aprovação por parte dos outros.
Ter um emprego não
garante apenas recursos, mas também reconhecimento pelo resto da sociedade de
que uma pessoa está a fazer alguma coisa socialmente valiosa. Dar uma esmola a
um pobre, ou a um sem-abrigo, ou o rendimento mínimo garantido a uma cigana com
três filhos, mas sem os olharmos nos olhos, estamos a aliviar a carência
material, mas não a reconhecer e a partilhar a sua humanidade. A verdadeira dor
da pobreza é a perda de dignidade. As pessoas gostam de se comparar umas com as
outras. E é por isso que uma pessoa rica pode nunca estar satisfeita com a sua
riqueza e querer enriquecer mais, porque ainda não é tão rico como fulano e
sicrano. Um qualquer padrão de riqueza que limite essa ambição não existe,
porque o que nos move na obtenção de riqueza é o desejo de estatuto social,
desejo esse que está inscrito na nossa condição biológica de primata.
A ameaça percebida
pela classe média à sua perda de estatuto, devido às profundas transformações nos
paradigmas de vida processados na viragem do século XX para o século XXI, pode ser
uma das explicações do fenómeno de desertificação da esquerda e da ascensão do
nacionalismo populista em muitas partes do mundo nesta segunda década do século
XXI. As pessoas que ascenderam à classe média significa que passaram a ter mais
estudos. E com isso adquiriram uma consciência de classe mais fácil de
mobilizar e mais tempo para a atividade política.
Assim, a classe
média dos dias de hoje de países como os Estados Unidos da América e
Inglaterra, é formada por cidadãos ressentidos que temem a perda de estatuto, e
apontam o dedo não apenas às elites, mas também a outros grupos sociais ainda
mais desfavorecidos, como é o caso de imigrantes à procura de asilo. É
considerada gente dolosa não merecedora de lhes passar à frente no usufruto de
recursos produto do seu esforço. Por isso não veem com bons olhos gente vulgar
que está à espera numa longa fila para entrar pela porta do sonho americano.
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