quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Intuição versus Racionalidade


          É por intuição e não por razão que vemos o mundo muito mais arrumado, simples, previsível e coerente, quando na realidade não é. E isto biologicamente tem de ser assim: ilusório. É apaziguador para o nosso espírito ter a ilusão que controlamos o nosso futuro porque conhecemos o nosso passado. Estas ilusões reduzem a ansiedade quando experimentamos por vezes que a vida é incerta e não segura. São reconfortantes.
          É uma sorte ganharmos quando tivemos de arriscar e arriscámos. Mas muitas vezes ficamos com a ilusão que tivemos faro e antevisão para antecipar o sucesso. Alguns lances de sorte podem coroar um político imprudente com uma aura de presciência e ousadia. E as pessoas sensatas que duvidaram deles passam a ser vistas como medíocres e fracas.
          A intuição está preparada para saltar para conclusões a partir de pouca evidência. E não está preparada para conhecer o tamanho dos seus saltos. Para algumas das nossas crenças mais importantes não temos qualquer tipo de evidência, a não ser o facto de as pessoas que amamos e nas quais confiamos possuírem estas crenças.
          Fazendo um recuo até aos finais dos anos 1990, quando comecei a interessar-me mais pela neurociência por causa de António Damásio, dizia-se que nós, seres humanos, comportávamo-nos como se tivéssemos dois cérebros protagonizados pelo hemisfério direito e esquerdo. E dizia-se que o hemisfério direito processava a maior parte das nossas intuições, e o hemisfério esquerdo era o responsável pela nossa racionalidade.
          Hoje sabe-se que as coisas não são bem assim, mas continuam válidos os aforismos, tal como aquele do “faz o que eu digo e não o que eu faço” para ilustrar que o que o Eu faz hora da verdade (O Eu portador da consciência e conhecedor) é o que o nosso hemisfério direito nos dita, apesar da retórica e dos eufemismos que nos chegam do hemisfério esquerdo. Isto, claro, se houver um Eu em qualquer lado, resultante da convergência dos dois hemisférios e que alguns neurocientistas alegaram poder estar no lobo da ínsula, situado profundamente no fundo do sulco lateral. Faz parte do sistema límbico e coordena as emoções. Situa-se sobreposta à zona em que o telencéfalo e o diencéfalo se fundiram aquando do desenvolvimento embrionário. A ínsula pode ser visível se se afastar o opérculo que a envolve na zona do sulco lateral, ou se se retirar parte da zona envolvente. O seu córtex apresenta uma forma triangular com o ápice dirigido antero-inferiormente para abrir na fossa lateral (límen). Existe o opérculo frontal, opérculo temporal e opérculo parietal que correspondem às zonas que cobrem a ínsula.
          Os seres humanos são incorrigivelmente inconsistentes ao fazerem juízos sumários a partir de informação complexa. Quando é pedida para avaliarmos duas vezes a mesma informação, é frequente as respostas serem dadas de modo diferente. Assim, como os juízos que daí resultam não podendo ser fiáveis, também não podem ser previsores válidos seja do que for. Daí que não nos admiremos que os algoritmos sejam melhores que o nosso sistema intuitivo, dado que este, devido à sua extrema dependência contextual, é suscetível de inconsistências alargadas. Algoritmos? Sim, a prática estatística dominante nas ciências sociais é atribuir pesos a diferentes previsores segundo um algoritmo – regressão múltipla – que está agora incorporado no software convencional.
          Ainda hoje é usado em todas as salas de parto o teste de Apgar. O índice de Apgar tem o nome da médica norte-americana Virgínia Apgar, que o adotou para avaliar o índice de vitalidade do recém-nascido nos primeiros minutos após o nascimento. Ao aplicar a pontuação de Apgar , o pessoal das salas de parto tinham uma escala consistente para determinar quais os bebés que estavam com problemas, e assim contribuindo para a redução da mortalidade infantil. Até a anestesista Virgínia Apgar introduzir os seus métodos, os médicos e as parteiras usavam o seu juízo clínico para determinar se um bebé estava em dificuldades. Assim, diferentes praticantes usavam diferentes critérios. Sem um procedimento padronizado, os sinais de perigo eram muitas vezes ignorados e muitos recém-nascidos morriam. Mas durante praticamente a segunda metade do século XX a hostilidade dos médicos aos algoritmos foi total. Estavam claramente sob o domínio de uma ilusão: a ilusão nas suas capacidades e perícia.
          A evidência estatística da inferioridade do “olho clínico” em comparação com as funções algorítmicas veio a mostrar-se esmagadora, contrariando a experiência quotidiana dos clínicos acerca da qualidade dos seus juízos. É claro que isto não significa que seja negligenciável o valor da experiência clínica de muitos anos confirmada pelas provas dadas. A linha entre aquilo que os clínicos podem fazer bem e aquilo que de nenhum modo podem fazer não é óbvia. Mas em geral, as previsões a longo prazo acerca do futuro dos seus pacientes são muito mais difíceis de fazer.
          Hoje em dia já se veem os proponentes da aplicação de algoritmos à medicina, particularmente aos diagnósticos clínicos, afirmarem veementemente que não é ético confiar nos juízos intuitivos dos seres humanos quando estão em causa decisões importantes, uma vez que já há provas irrefutáveis de que os algoritmos disponíveis cometem muito menos erros do que as nossas intuições.
          O mundo é difícil, a culpa não é dos especialistas. Os erros de previsão são inevitáveis porque o mundo é imprevisível. O único erro das pessoas está na elevada confiança na sua subjetividade. Os especialistas são enganados pela forma como os seus cérebros operam para que eles tenham como boas as suas crenças. É claro que as pessoas não são todas iguais quanto ao seu grau de convicção e arrogância. Há aqueles que pensam que sabem uma grande coisa, e inclusivamente constroem teorias acerca do mundo. E a sua confiança na coerência do seu esquema mental é de tal modo que chega a ser retumbante a sua arrogância em relação àqueles que não veem as coisas à sua maneira. Mas, por outro lado, também há aqueles que são mais complexos e profundos nos seus pensamentos ao ponto de muitas vezes ninguém os compreender. São profundamente céticos e nunca acreditam que algo de importante na História tenha sido determinado por um único acontecimento, ou por influência de um único homem. São mais dados a reconhecer que a realidade emerge da interação de muitos agentes e forças diferentes, incluindo o acaso e a necessidade que acabam por dar origem a grandes e imprevisíveis desfechos.

Sem comentários:

Enviar um comentário