sexta-feira, 2 de novembro de 2018

A Democracia e o Poder


Só o poder pode criar o “governo das leis” e só as leis num “estado de direito” podem limitar o poder. Este é considerado segundo a tradição – que podíamos fazê-la recuar até Péricles (492-429), a maior personalidade política desse século de ouro da democracia de Atenas – o melhor enquadramento de um regime democrático.

Até ao início dessa Guerra do Peloponeso (431 a.C. - 404 a.C.) os problemas sociais eram mínimos devido ao equilíbrio e sucesso da democracia ateniense. Em 405 a.C., Esparta venceu Atenas na Guerra do Peloponeso, impondo várias mudanças para impedir a retoma do poder ateniense. Os muros do Porto do Pireu foram demolidos com a entrega de todos os navios. Assim, foi instalado em Atenas o governo dos Trinta Tiranos, um governo oligárquico que ocasionou uma crise no regime democrático. Mas em 403, um exército comandado por Trasíbulo derruba a oligarquia dos Trinta Tiranos. A democracia ateniense foi reestabelecida graças ao exército democrata, constituído inclusive por escravos e metecos.

Então é na década de 380 que Platão publica a República, analisando como o poder funciona e como a Atenas deveria ser governada, muito crítico em relação à Democracia, desqualificando-a. Um regime em que qualquer pessoa livre podia manifestar-se e deliberar na Ágora, não podia ser bom.

Platão tem o pensamento socrático como o melhor para o desenvolvimento do seu sistema político-filosófico crítico à democracia. A postura de Platão seria, portanto, uma radicalização da leitura socrática sobre a democracia. Conforme a visão ética de Sócrates, toda atividade humana deveria ser orientada para o conhecimento (episteme), ou seja, o saber sobre tudo que envolve determinado ofício. Somente a partir do domínio do conhecimento (episteme) é que se alcançaria a excelência ou virtude (areté) no fazer. Com isso, a excelência advém do conhecer o bem relativo à ação que se pretende realizar, o que indicaria que não há, efetivamente, virtude sem conhecimento. Nesse sentido, Platão descreve que para uma cidade ser considerada sábia, é necessário que aqueles que são responsáveis pela vigilância dela, possuam todo o conhecimento acerca da boa vigilância. A ordem moral e o saber orientariam os homens na aplicação da justiça como virtude, que significa que cada indivíduo cumpriria o que deve ser feito dentro da sua função na cidade.

Portanto, na Democracia, a ausência desta motivação e preparação adequada para uma atividade específica acarretava que o poder era apropriado por pessoas amadoras e despreparadas para exercerem as atividades de gerenciamento da pólis. De acordo com Platão, um governo sábio e legítimo seria de responsabilidade dos governantes que se dedicam ao conhecimento (episteme) da organização da cidade e à melhor conduta possível da mesma. O ponto negativo indicado por Platão é que, como no regime democrático não haveria uma divisão entre ricos e pobres da sociedade como na oligarquia, isso acarretaria no aparecimento de todo o tipo de comportamentos, que antes eram impedidos pela rigidez oligárquica. Esta liberdade distorcida, desenfreada e sem limites se resumiria à realização de desejos frívolos e superficiais, instaurando um laxismo e desrespeito às leis e aos indivíduos da cidade.

Mas a hegemonia de Esparta foi curta, tendo-a perdido para Tebas, que despontava como nova soberana da Grécia. Em 360 a.C., Esparta e Atenas uniram-se contra Tebas, ocasionando um enfraquecimento das grandes cidades gregas no final do século IV a.C. Com a divisão política conflituosa, e a dificuldade de se mantarem como centros de polarização política, tanto Esparta como Atenas permitiram a ascensão de outras pólis, sobretudo a hegemonia macedónica, apoderando-se da Grécia. E assim o regime democrático foi destruído para sempre em Atenas.

Então o que é o Poder? À primeira vista o pensamento que nos vem à cabeça é dizer que este Platão devia ter vergonha na cara, quando para nós a Democracia é o melhor dos regimes políticos que alguma vez tenham sido inventados, particularmente a Democracia Antiga de Atenas do tempo de Péricles, paradigma da boa Democracia, a mais perfeita das formas históricas de Democracia. Platão acreditava que o exercício do Poder não era para todos, infelizmente, porque nem todos eram dotados de certas virtudes para o exercício de governar e deliberar sobre os rumos da pólis.

Para Platão o Poder era a força legítima sobre os outros, mas não a dominação. A dominação era ilegítima. E a Democracia era ilegítima porque era a mera dominação da vontade de uma maioria despreparada. Ele acreditava que para fazer leis era preciso saber fazê-las, sabedoria essa que ele apenas reconhecia aos filósofos. Foi daqui que surgiu um cisma entre democratas e filósofos, tendo perdurado até aos dias de hoje.

Em suma, para Platão, as pessoas que eram dotadas do “amor pelo conhecimento”, portanto, eram dignas de comandar as vidas alheias. Para todos os efeitos, era o bem que tinha algo de legítimo para se apropriar do poder. E só a procura do bem e a luta contra o mal faria sentido na vida de um filósofo. Foi com pensamento semelhante que o clero da Idade Média invocou Deus para legitimar a sua fonte de poder. E por ironia, foi também com o mesmo pensamento que os revolucionários da era Moderna invocaram o Povo de que emanava todo o poder para escolher os seus representantes. E para os dias de hoje a Constituição. O poder do deputado legislador, representante do Povo, vem-lhe do Povo. O que não é outra coisa senão Representação Transcendental do Poder no vocabulário platónico.

Para Espinosa e Maquiavel o poder invocado pelo clero não passava de uma qualquer forma de dominação legitimada por Deus. Era preciso uma grande disposição de espírito para ser vitorioso no jogo da dominação. Disposição essa que Maquiavel chamou “virtu”. O poder é algo que se conquista e se mantém com muito esforço. Não é uma dádiva natural. Ter “virtu” é ter conhecimento do que é necessário fazer para se conquistar e manter o poder, e ao mesmo tempo tem que se ser impetuoso o suficiente para levar a cabo o que se sabe ser necessário para tanto. Para Maquiavel, a política é a continuação da guerra por outros meios: mentira, engano, traição e por diante.

Associado ao conceito de Democracia está a ideia excessivamente benévola de cidadão educado para a cidadania investido do poder de eleger os próprios governantes escolhidos de entre os mais sábios, os mais honestos e os mais esclarecidos.

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