sexta-feira, 28 de setembro de 2018

A moral é muito mais antiga do que a arrogância chauvinística de cada povo ou cultura quer crer


          Não é apenas ao eurocêntricos que me estou a referir. A maioria das pessoas em qualquer parte do mundo está propensa a acreditar que é o centro do mundo, e que a sua cultura é o sustentáculo da história humana. É desnecessário dizer que britânicos, franceses, alemães, americanos, russos, japoneses e incontáveis outros grupos estão, da mesma forma, convencidos de que a humanidade teria vivido numa bárbara e imoral ignorância não fosse pelas espetaculares conquistas da sua nação.
          Mas nenhuma das religiões ou nações atuais existia quando os humanos se espalharam pelo planeta domesticando plantas e animais, construindo as primeiras cidades, ou inventando a escrita e o dinheiro. Moralidade, arte, espiritualidade e criatividade são aptidões humanas universais desde os primórdios dado estarem incorporadas no genoma. É, portanto, arrogância chauvinística atribuí-los a um lugar e um tempo mais recentes.
          Quem ouve falar os fanáticos literalistas da Bíblia até parece que a Bíblia foi o primeiro texto a pregar a moralidade universal, como se os humanos, antes da época de Abraão e de Moisés, vivessem num estado da natureza sem nenhum comprometimento moral, e como se toda a moralidade contemporânea derivasse dos Dez Mandamentos. É uma ideia sem fundamento e insolente, que ignora muitas das mais importantes tradições éticas do mundo. É difícil de engolir a ideia de que os europeus, que desapossaram com violência os nativos das suas terras aquando da colonização, eram possuidores de padrões morais superiores aos deles. Pelo contrário, todos esses povos já possuíam uma visão ética do mundo bem desenvolvida, tal como os nossos antepassados caçadores-coletores da Idade da Pedra. E ainda podemos ir mais atrás no tempo e na escala evolutiva para dizer que chimpanzés, gorilas, golfinhos, lobos, e por aí fora, possuem regras morais ou éticas.
          Os cientistas hoje em dia afirmam que a moralidade, na verdade, tem profundas raízes evolutivas que precedem o surgimento do homem em milhões de anos. Por exemplo, quando filhotes de lobo brincam uns com os outros, eles têm regras de “jogo limpo”. Se um filhote morde com muita força, ou continua a morder um adversário que rolou de costas, rendendo-se, os outros filhotes vão parar. Se um chimpanzé fêmea jovem encontra uma banana, comumente até mesmo o macho alfa evitará roubá-la para si mesmo, porque ao transgredir essa regra vai perder estatuto. Um caso ainda mais tocante aconteceu nas selvas da Costa do Marfim. Depois de perder a mãe, um jovem chimpanzé teve que lutar para sobreviver sozinho. Nenhuma das outras fêmeas quis adotá-lo, porque estavam sobrecarregadas com as suas próprias crias. Magro e doente, quando tudo parecia perdido, o jovem chimpanzé foi “adotado” pelo macho alfa do grupo.
          Então como se explica que chegados aos nossos dias parece que nada melhorou no que diz respeito à crueldade humana e ao mal moral desde esses tempos imemoriais?
          Teorias não faltam. Por exemplo, Yuval Noah Harari, no seu livro mais recente “21 Lições para o Século 21” é muito eloquente quando diz que o monoteísmo só piorou as coisas –  “O Antigo Testamento, o Talmude e muitos (embora não todos) rabinos sustentam que a vida de um judeu vale mais do que a vida de um gentio, o que explica, por exemplo, por que é permitido a um judeu profanar o Shabat para salvar um judeu da morte, mas é proibido fazer isso para salvar um gentio.”
          Alguns sábios judeus alegaram que até mesmo o famoso mandamento “Ama o próximo como a ti mesmo” se refere apenas a judeus, e que não existe nenhum mandamento para amar gentios. Essa suspeita é muito reforçada pelo facto de que a Bíblia ordena aos judeus que exterminem certos povos. Essas são as primeiras ocasiões registadas na história humana em que o genocídio é apresentado como um dever religioso.
          A Bíblia está longe de ser a fonte exclusiva da moralidade humana, quando contém muitas narrativas que incitam atitudes racistas, misóginas e homofóbicas. Enquanto muitos judeus até hoje acreditam que o assim chamado “povo eleito” está mais perto de Deus do que estão outras nações, devemos enfatizar que pelo menos o cristianismo tornou-se uma espécie de aperfeiçoamento revolucionário de inspiração grega no sei do judaísmo, quando veio pregar uma ética universal. Leiam-se as cartas de São Paulo. Mas depois a prática ao longo dos primeiros séculos veio mostrar o pior.
          Confúcio, Lao Zi, Buda e Mahavira estabeleceram códigos de ética universais muito antes de Paulo e de Jesus. Confúcio ensinou que toda a pessoa deve amar os outros como ama a si mesma quinhentos anos antes de o rabino Hilel, o Velho, ter dito que essa era a essência da Torá. E, numa época em que o judaísmo ainda ordenava o sacrifício de animais e o extermínio sistemático de populações humanas inteiras, Buda e Mahavira já instruíam seus seguidores que evitassem fazer mal não apenas a seres humanos, mas a quaisquer seres sencientes, inclusive insetos. Por isso não faz nenhum sentido creditar ao judaísmo e à sua descendência cristã e muçulmana a criação da moralidade humana.
          De um ponto de vista ético, continuando a parafrasear Yuval Noah Harari, o monoteísmo foi sem dúvida uma das piores ideias na história humana. O monoteísmo pouco fez para melhorar os padrões morais dos humanos. O que o monoteísmo sem dúvida fez foi deixar as pessoas muito mais intolerantes do que eram, contribuindo assim para a disseminação das perseguições religiosas e guerras santas. No entanto sociedades politeístas acham aceitável que povos diferentes cultuem deuses diferentes e realizem ritos e rituais diversos. Raramente, se é que alguma vez, combatem, perseguem ou matam pessoas só por causa de suas crenças religiosas. Os monoteístas, em contraste, acreditam que seu Deus é o único deus, e que Ele exigiu obediência universal. Consequentemente, quando o cristianismo e o islamismo se espalharam pelo mundo, espalhou-se também a incidência de cruzadas, jihads, inquisições e discriminação religiosa.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Nacionalismos e migrações forçadas


          Os séculos XIX e XX foram marcados pela expansão do nacionalismo. O nacionalismo estimulou novos projetos políticos com rearranjos de estados que anteriormente estavam organizados segundo a lógica dos impérios. Isto teve impacto sobre preconceitos étnicos associados a pressupostos religiosos e rácicos. Para além da identidade nacional se estruturar à volta de uma língua, a identidade religiosa ganhou uma importância renovada.
          Assim, a reestruturação das fronteiras centrou o debate político na disputa dos territórios, sobretudo na Europa Central e de Leste. Veio a Primeira Guerra Mundial, por via da qual se desintegraram os três impérios: Otomano, Austríaco e Russo, todos eles multiétnicos por natureza. E depois veio a Segunda Guerra Mundial, em que a supremacia racial da Alemanha teve como oposição a virtude da classe operária soviética.
          A participação do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial, aliado aos alemães e aos austro-húngaros contra os russos, foi o golpe fatal nas relações precárias entre comunidades. A derrota otomana fez dos arménios o bode expiatório, justificando a limpeza étnica, a mobilização da população turca e o envolvimento dos curdos em ações criminosas. Várias centenas de milhar de curdos foram deportados após a remoção dos arménios. O genocídio da população arménia na Anatólia foi o resultado mais desastroso de um século de migrações forçadas, massacres e limpezas étnicas, desencadeado pelo projeto político dos Jovens Turcos de reservar a Anatólia e a Trácia Oriental para a sua própria nação.
          Na segunda Guerra Mundial o nacionalismo russo revelou-se a mais eficaz das armas ideológicas no que diz respeito à mobilização da população contra a invasão alemã nazi. E o internacionalismo serviu para alargar a influência da União Soviética e criar uma comunidade de interesses entre os agentes orgânicos da classe operária. Durante algum tempo a divisão de classes revelou-se mais inclusiva do que a divisão racial, divisão que o sistema soviético recusava. No sistema fascista-nazi os ciganos encontravam-se no fundo da escala; os negros eram considerados de pouco valor; os judeus eram visados como inimigo interno; e os eslavos eram rotulados como raça inferior.
          A deportação das minorias nacionais na Europa não parou com o final da Segunda Guerra Mundial. É verdade que a base do conflito surgira com as invasões nazis, os massacres, as deportações e a colonização de territórios conquistados pelos alemães. Os horrores da guerra e as suas bases raciais haviam deixado memórias bem claras nos territórios ocupados, mas a paz poderia ter sarado as feridas e imposto métodos civis para a integração das minorias. Contudo, não foi isso que aconteceu. Estima-se que 12 milhões de alemães tenham sido desenraizados entre 1945 e 1948, com provavelmente 500.000 a morrer durante o processo. A lealdade nacional tornara-se uma questão crucial após a guerra. O conceito de Estado-Nação tornou-se fulcral, mesmo nos países da chamada cortina de ferro.
          A reconstituição da Jugoslávia após a Segunda Guerra Mundial, sob a liderança de Tito, um croata comunista, adiou grandes erupções de vingança étnica e nacional, até que rebentou depois da queda do Muro de Berlim. Foi a guerra entre sérvios, croatas e bósnios muçulmanos ou albaneses entre 1991 e 1995.
          Enfim, podiam ser dados muitos mais exemplos para dizer que o racismo precedeu a teoria das raças, mas a inclusão numa estrutura científica de preconceitos novos e antigos relacionados com a descendência étnica acentuou a ação discriminatória, uma vez que cristalizou os preconceitos étnicos, atribuindo-lhes um estatuto de conhecimento superior. O nacionalismo trouxe consigo a fusão de nação e de raça, com a identidade coletiva a ser baseada na ideia de uma língua e de uma descendência partilhadas. O preconceito quanto à descendência foi visível na África colonial, levando a várias formas de discriminação e de segregação. Embora as teorias de raças garantissem uma estrutura científica às classificações da humanidade, a religião confundiu-se com as perceções de descendência nas formas de ódio étnico. A violência das limpezas étnicas atingiu níveis sem precedentes no século XX, com formas nunca vistas de escravatura e de genocídio que se espalharam da Europa para outros continentes onde já se vislumbravam dinâmicas específicas de conflito étnico.
         Felizmente que agora na maior parte do mundo prevalece o comportamento antirracista. Mas tal como o que se diz para a democracia, neste mundo humano nada está garantido para todo o sempre. É preciso dizer que o racismo não desapareceu. Agora já não são as diferenças físicas, mas são as diferenças culturais que estão em causa. São os atrasos culturais e as inerentes incapacidades de adaptação que são invocadas como argumento contra as atuais imigrações para a Europa. Agora os imigrantes são acusados de oportunismo por quererem desfrutar benefícios de assistência social superior àqueles a que alguma vez conseguiram criar.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Desejo e identidade



Para que tudo corra pelo melhor, e já agora com valor, apoio-me no filósofo moral Derek Parfit (1942-2017) para dizer que não basta envolvermo-nos apenas nas atividades racionais que fazem parte da vida. É preciso também apelar ao instintivo desejo de viver com prazer e por querer, ainda que com esforço. É preciso estar envolvido nas atividades e querer intensamente esse envolvimento. Se tivermos desejos contrários, então devemos frear esses desejos. Isto faz-me lembrar o “conatus”, expressão latina usada por vários filósofos clássicos, nomeadamente Espinosa, para denotar o esforço de perseverança, não apenas como algo que se faz, mas também como algo que faz parte da verdadeira essência da vida.

[On What Matters, 2011] é a última obra de Parfit, e muito discutido na atualidade. [Reasons and Persons,1984] é a obra mais conhecida, onde aborda a teoria da “identidade pessoal e continuidade psicológica" como intuição. A continuidade mental, não física, identifica-nos como a mesma pessoa. Mas no caso do TELETRANSPORTE, apesar de termos uma continuidade psicológica tão completa quanto na vida comum, também parece, acima de qualquer dúvida, que o que é criado é uma cópia, um clone, que ao fim de contas não é o mesmo que a pessoa clonada.

São originais e extraordinárias as suas experiências de pensamento sobre identidade pessoal. No teletransporte as charadas de Stelius são as mais surpreendentes. O que acontece se o “eu” original não é destruído? Quem é o verdadeiro Stelius, o da Terra, ou o teletransportado para Marte?




terça-feira, 18 de setembro de 2018

De Damasco a Malmo: a saga de H. al-S. (3ª e última parte)


          Já falta pouco para H. al-S. conseguir o seu desiderato de entrar clandestinamente em Malmo e aí pedir asilo. Ainda se encontra em Hamburgo, numa altura em que lhe chegam notícias contraditórias. Por um lado, Merkel acabou de dar maior abertura à imigração vinda da Síria. Mas por outro a situação na Suécia sofreu um certo revés após os últimos acontecimentos relacionados com atentados jihadistas. Nesta altura, 2015, a opinião pública europeia, ainda não os seus líderes pelo menos oficialmente, dava como falhada a parte mais fácil do quebra-cabeças da imigração: conseguirem os europeus serem misericordiosos com os necessitados sem serem injustos consigo próprios. Não está na mão dos europeus resolver a situação na Síria.
          Agora a escassez de alojamentos na Suécia está a criar problemas ao governo sueco. Devido ao clima frio da Suécia, a solução das tendas usadas nos países do Sul, na Escandinávia custa entre 50 a 100 vezes mais. É difícil convencer o povo sueco de que os migrantes sírios vão ficar no país temporariamente até o país estabilizar, quando já têm a experiência com as dezenas de milhar de migrantes oriundos dos Balcãs, e que ainda estão por lá passados mais de vinte anos.
          H. al-S. ainda tem que tomar cuidados de camuflagem. Por isso, depois de ter comprado na máquina self-service o bilhete para Copenhaga, prefere passar ali a noite e viajar de dia. Às vezes há controlos na fronteira dinamarquesa, e é-se mais notado se se viaja à noite. Compra uma pequena fatia de pizza por dois euros. Agora o apetite começa a voltar.
          Às primeiras horas da manhã de terça-feira H. al-S. põe os pés no cais da capital dinamarquesa, treze dias depois de partir do Egito, seis depois de chega a Itália, está apenas a uma hora da terra prometida. Nas duas últimas semanas arriscou a prisão, a morte, passou fome para atravessar um mar e um continente. Cheira mal, falta de sono e uma ferida no pé infetada. Com os nervos à flor da pele que chegar lá sem ser preso, encontrar um refúgio a curto prazo e assegurar um futuro a longo prazo. O comboio entra na ponte e lá fora está escuro como breu, apenas as luzes da costa distante da Suécia. Chegado ao cais, a mudança é quase impercetível. H. al-S. olha pela janela para ver se aparece algum polícia. São 2:41, 22 de abril de 2015, Malmo, a primeira grande cidade da Suécia, acaba de chegar ao país a que espera chamar a sua casa para o resto da vida. Telefona à mulher lá longe no Egito e diz: “Cheguei”. E telefona ao cunhado que o virá buscar para o ajudar a orientar-se nos dias longos que ainda vai ter de penar até obter asilo.
          Em 23 de outubro de 2015 H. al-S., o que não é habitual nele, chora. Na biblioteca pública de Skinnskatteberg, a percorrer o Facebook, aparecem entradas familiares sobre o que está a acontecer na Síria. Mas a informação oque o põe a chorar é o que alguém escreveu: os partidos políticos da Suécia concordaram conjuntamente em acabar com a autorização de residência permanente para os sírios, com exceção dos que vierem acompanhados da família. Seis meses passados na Suécia e ainda está à espera de saber se lhe foi concedido asilo. Regressa ao “centro de alojamento de Skinnskatteberg” onde estão lá outros como ele também a falar do mesmo assunto, ainda mais desanimados do que ele. Um sírio que já está na Suécia há um ano, berra e dá murros nas paredes. O número elevado de novos candidatos a asilo sobrecarregou o sistema sueco, ao ponto de ter praticamente parado a tomada de decisões.
          Este “centro de alojamento de Skinnskatteberg”, foi o melhor que a Migrationsverket pôde arranjar a H. al-S. e a mais setenta estrangeiros assustados. As autoridades já têm dificuldade em arranjar lugar para tantos recém-chegados. No início colocaram-no num quarto com mais quatro homens. Mas ele entrou logo em pânico, porque desde que esteve preso passou a sofrer de síndrome de stress pós-traumático, e para não entrar em pânico precisava de um quarto só para ele. Apesar da simpatia dos funcionários do Migrationsverket ainda demorou algum tempo a conseguir esse quarto. Infelizmente não dura muito. Uma semana depois, ao regressar de uma caminhada, vê outro sírio deitado no andar de cima do seu beliche. Fica tão perturbado que essa noite vai passá-la sentado na sala de jatar, com medo de dormir. Por azar, havia cometido o erro de dizer olá a uma eritreia. O eritreu, que assistiu à interação, ao pedir-lhe satisfações acabou por lhe dar um murro. Depois disso, o eritreu, sempre que o encontra no corredor, insulta-o. Te medo de sair do quarto, mas sente-se mal se não sair. Enfim, até agora a Suécia apenas lhe ofereceu o purgatório.
          Mas o sentimento de miserável dissipa-se quando faz as pazes com o eritreu e a Migrationsverket lhe proporciona novamente um quarto só para ele, e chega finalmente o dia da sua entrevista. Entra no elevador, sobe até ao sétimo andar, e espera que abra o escritório da Migrationsverket. Durante duas horas são-lhe feitas uma série de perguntas sistematizadas: É de que parte da Síria? Como é a zona? Qual é a situação nessa zona? Porque foi preso, alguma vez manifestou filiação política? Porque partiu? e… e por aí fora.
          Já passou um mês, depois da entrevista, e é penosa a sua visita ao portal da Migrationsverket várias vezes por dia à procura da resposta. Anda numa pilha de nervos, preocupado com a falta de informação. E o clima político vai-se adensando com o outono a entrar. A pressão dos refugiados é cada vez maior e a Suécia continua isolada a suportar um fardo desproporcional: 170 mil até finais de 2015. Os políticos irritam-se, com a extrema direita a atiçar o risco de a Suécia ter deixado de ser para os suecos. Os “Democratas da Suécia”, um parido de extrema direita com alguns membros fundadores de índole neonazi, sobem nas sondagens. O partido dos “Conservadores” conhecido como “Moderados”, na oposição, propõem acabar com a autorização de residência permanente para os sírios. Os “Sociais Democratas”, numa coligação de esquerda no governo, cedem, concordando que a política de residência permanente acabe dentro de meses. O acesso ao reagrupamento familiar também será restringido.
          H. al-S. anda muito perturbado com estas notícias, receando que a sua decisão não chegue a tempo. A Migrationsverket apela ao exército sueco para ajudar a gerir a situação. Já não há alojamentos suficientes para os refugiados, e é preciso improvisar a que os suecos há muito que não estavam habituados, como colocar refugiados a dormir no chão em cinco centros de acolhimento. Por isso, não nos deve surpreender que tudo isto tenha provocado uma crise de identidade sueca.
Até que finalmente chega o dia em que H. al-S. lê na página da Migrationsverket, traduzido em árabe: “Estado da Candidatura. O seu pedido de residência, de autorização de trabalho, de permissão para estudar, de cidadania ou de asilo foi recebido. O Conselho de Imigração da Suécia tomou uma decisão relativa à concessão ou recusa do seu pedido”. E mais nada. Nada que explique se a decisão foi positiva ou negativa. SE com as regras do novo regime ou do antigo.
          H. al-S. volta a apresentar-se mais uma vez na Migrationsverket. Um balde de água fria. A decisão realmente ainda não está pronta. Dizem-lhe para voltar dali a uma semana. Quando volta passado uma semana, são 8:30 e é o primeiro da fila. A ansiedade é muita, mas não quer admitir sequer que a viagem do Egito, a travessia do Mediterrâneo e a seguir a Europa, tenha toda essa provação sido em vão.
          Finalmente a porta abre-se. A multidão irrompe. Vai ser dos primeiros a ser atendido. Nem um minuto passou e vê o número da sua senha a piscar no visor pendurado na parede. Entra no gabinete correspondente, e é recebido por uma mulher com ar grave do outro lado do balcão, que ato compassado lhe empurra um envelope na sua direção, com um cartão lá dentro. Tira o cartão e lê finalmente as palavras de que há muito estava à espera: “Permanent Uppehallstillstand”.
          Em maio de 2016 a família de H. al-S. já fez o pedido de reagrupamento familiar. Já não se veem há mais de dois anos, mas há de chegar o dia em que finalmente H. al-S., a mulher e os seus três filhos ficarão todos juntos a viver H. al-S.  na Suécia.

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

De Damasco a Malmo: a saga de H. al-S. (2ª parte)


          Com cem dólares no bolso H. al-S. não passaram mutios dias até se aperceber que o Egito não tardaria a estar à beira de uma guerra civil. À falta de melhor arranjou maneira de chegar a uma localidade perto do Suez onde vivia um amigo seu.
          Assim, sem dinheiro para alugar uma casa, durante quatro meses, enquanto ele trabalhava numa fábrica de carvão a 100 dólares por mês, a família viveu nos arrumos de um pequeno ateliê de confeção. Por esta altura, recebe a notícia da morte do pai. Um dia, num caminho à saída do trabalho, um homem parou ao seu lado e pediu-lhe os documentos. Ele ainda refilou, mas o carro da polícia que estava por perto aproximou-se e o capitão pegou nele e atirou-o para o banco de trás e arrancou de imediato. O que eles pretendiam era extorquir-lhe dinheiro. Levaram-no para as dunas. Como de facto não tinha dinheiro, mandaram-no sair deixando-o ali na escuridão.
          Até que veio o verão de 2014 e um amigo a viver na Alemanha ofereceu-se para lhe adiantar o dinheiro para a família ir de barco para a Europa. Para o efeito eram necessários 7.000 dólares. A fazer já contas de cabeça, a Suécia parecia-lhe a melhor opção. Desde os finais de 2013 que o governo da Suécia havia permitido dar residência permanente a todos os sírios que pedissem asilo. Mas, primeiro, era preciso chegar lá.
          Assim, metidos num apartamento mixuruca de subúrbio, por conta dos contrabandistas, aguardaram dias a fio com falsas partidas em mais do que uma tentativa. Um dia vieram buscá-los ao cair da noite, e juntamente com centenas de outras pessoas foram metidos em quatro ou cinco autocarros com as cortinas corridas e conduzidos para o ponto de embarque. Passadores à frente e atrás da caravana com a cara tapada, escoltaram-nos numa viagem muito atribulada que durou horas em direção oeste. Houve uma paragem a meio do caminho, em que se ouviram tiros, mas prosseguiram como se nada tivesse acontecido.
          Ao chegarem ao destino fixado, chegaram a entrar na água através de um buraco apertado na vedação, mas não chegaram a subir para os botes que balouçavam a alguns metros de distância e que depois os iria transportar para um barco maior fundeado mais ao largo. Mas inesperadamente surge do nada a polícia, que misteriosamente, ou não, é ajudada pelos traficantes a juntar as pessoas na praia. H. al-S., a família e os outros acabaram por ir parar à cadeia onde estiveram oito dias. Durante o interrogatório perguntaram a H. al-S. quem tentou passá-los. Ele mencionou o nome de uma pessoa, mas percebeu que o inquiridor escreveu o nome de outra. Ainda nessa noite mais tarde recebeu pelo Viber a ameaça de um passador: “Sabemos que falastes de nós à polícia. Se voltares a falar, matamos-te a ti, a tua mulher e os teus filhos. Sabemos onde te encontrar, onde quer que estejas”.
          O barco em que deveriam embarcar, com 500 pessoas a bordo, acabou por naufragar. Ninguém se salvou.
          Ao fim de dois anos estacionados no Egito, H. al-S. muda de estratégia. Deixa a família para trás e arrisca pela enésima vez a sua sorte sozinho, seis meses daquele episódio que por um triz teria sido fatal. São os mesmos passadores apesar de eles fingirem que são um bando diferente. Mas desta vez é bem-sucedido na sua entrada na Europa pela Itália, não contando as peripécias inerentes a estas odisseias de náufragos no Mediterrâneo, más demais para as saber descrever. No primeiro dia de quatro de viagem em mar alto, quando o sol começa a pôr-se, há ainda outra mudança de barcos. Os passadores sabem que vão perder a embarcação quando chegarem a Itália, e então usam um navio que podem permitir-se perder. Neste outro barco o cansaço começa a tomar conta dos pensamentos e H. al-S. pensa nos filhos. Se conseguir chegar à Suécia, pode mandá-los ir ter com ele. Se conseguir chegar à Suécia, eles terão um futuro.
          O tempo da narrativa de H. al-S. é abril de 2015, antes dos atentados de novembro de 2015, em Paris. E antes dos primeiros atentados no Reino Unido em 2017. E depois foi a vez de Estocolmo, quando um requerente de asilo do Usbequistão que chegara à Suécia em 2014 roubou um camião e o dirigiu contra as pessoas que andavam às compras numa das ruas mais movimentadas da Suécia. Cinco pessoas morreram e muitas mais ficaram feridas. E H. al-S. não tinha o dom da adivinhação para saber que o pior ainda estava para vir. Novas cercas-fronteira estavam a ser erguidas na Europa Central.
          Há horas que está em pé sobre uma perna, para dar a outras pessoas mais espaço para dormirem. Às quatro da manhã um passageiro dá o seu lugar a H. al-S. para ele dormir. Já é dia quando é acordado com um abanão. Quatro enormes barcos vermelhos insufláveis que envolvem o navio deles. Cada um tem uma cabine branca e as letras pintadas “Guardia Costiera”. Ainda estão a um dia de Itália, mas por agora o pesadelo acabou. São transferidos para um navio de casco de aço de maior calado, primeiro as mulheres e as crianças. As pessoas dão vivas a Itália. No dia seguinte aportam em Catânia, na Sicília, e os traficantes egípcios são facilmente topados pela polícia que subiu a bordo antes que alguém desembarcasse. Os migrantes negaram que eram eles, mas não adiantou de nada, foram detidos e levados sob escolta. Dezoito horas depois H. al-S. já se encontrava em Veneza. No dia seguinte, depois de uma dormida nos bancos da estação de Mestre, chegam ao terminal principal de Milão, a plataforma das viagens para o norte da Europa. Aqui, consegue levantar via Western Union 500 euros que o cunhado na Suécia há um ano lhe enviou para fazer face às despesas básicas.
          Nos primeiros passos de H. al-S.na Europa, não estavam nos seus planos ver-se obrigado a saltar ainda mais obstáculos: pontos de passagem de fronteiras, polícia… Aconselhado telefonicamente por um amigo, que agora se encontra salvo na Alemanha depois de ter passado pelo mesmo, opta por chegar à Alemanha via França, Nice. Num comboio já em território francês, o objetivo é chegar à Alemanha sem que seja apanhado pela polícia. Na Alemanha o procedimento e candidatura ao reagrupamento familiar é considerado mais simples, sem registo das impressões digitais. Mas primeiro tem de atravessar a França, porque se for apanhado em França e obrigado a pedir asilo aqui, não poderá deslocar-se para nenhum dos seus destinos preferidos. Eis senão quando os gendarmes franceses entram no comboio. Enquanto ele se esconde nos lavabos mesmo a tempo, dois eritreus são presos na mesma carruagem, para serem recambiados para Itália, onde a polícia recolherá as suas impressões digitais, um procedimento formal que significa que terão de pedir asilo em Itália.
          Desta vez H. al-S. escapou, sentindo-se aliviado ao descer do comboio na estação de Nice, onde de imediato destrói todas as provas de que alguma vez tenha estado em Itália. Compra o Le Monde, mete-o debaixo do braço. E depois compra um bilhete de comboio que o levará até à capital. Chegado à Gare d’Austerlitz, apanha o metro para a Gare de l’Est, onde vai apanhar o comboio para a Alemanha. Na bilheteira, pede um bilhete para Hamburgo, via Frankfurt: 250 euros. H. al-S. piscou os olhos, porque não queria acreditar que o bilhete fosse assim tão caro. Mas neste momento não tem outra escolha. Os caminhos de ferro da Europa não param de o impressionar. Ainda tem tempo de comprar giletes descartáveis, porque as aparências contam quando entrar na Alemanha. Assim, também compra o jornal “Süddeeutsche Zeitung”. Senta-se no seu lugar com o jornal pousado no colo, põe uns auscultadores nos ouvidos, e com o jornal no colo embrenha-se na música, esperando que ninguém venha pô-lo à prova na leitura, até que a carruagem inteira tem um sobressalto: o comboio pára em Saarbrücken, e algumas pessoas voltam-se e olham.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

De Damasco a Malmo: a saga de H. al-S. (1ª parte)


          Num dia de 2012, à tardinha, batem-lhe à porta. Era vinte homens fardados que o vinham buscar, a ele e a metade das pessoas da sua rua, a poucos quilómetros a sueste de Damasco. Não sabia quem eram, se do exército, se da polícia ou se da milícia. Nessa altura o ditador, Bashar al-Assad, ex-médico oftalmologista, já se tinha fartado de tratar o seu povo a ferro-e-fogo. H. al-S. foi levado para uma rede secreta de celas subterrâneas construídas sob o aeroporto de Damasco. Não falemos aqui das torturas.
         Passados seis meses, sem contar, um oficial foi ter com ele e disse que ia ser libertado por amnistia. Conduzido numa carrinha para o centro da cidade, com outros prisioneiros, onde são atirados para a rua. Quando chega a casa, nada é como dantes. Dois irmãos haviam sido mortos pelo mesmo sniper no mesmo dia, enquanto o segundo tentava recolher o cadáver do primeiro. Então decide sair dali à procura de mais segurança. Pega na mulher e nos três filhos e vai para outra aldeia perto dali. Mas passados poucos dias, também não está em sítio seguro, com bombas a cair a metros dos seus filhos no regresso da escola. Muda-se então para uma outra aldeia do outro lado de Damasco.
          Em fevereiro de 2013 a sua casa foi definitivamente destruída. H. al-S. ainda traz consigo no bolso a chave de casa, mas a porta que abria já não existe. A Síria deixou de ser um país. Agora são os jihadistas que comandam a rebelião, e o grupo que viria a chamar-se Estado Islâmico começa a fazer avanços significativos no norte da Síria.
          Então, é quando decide um passaporte para sair do país que é novamente detido e levado para a prisão, que apesar de tudo é mais curta que a primeira. Depois de ser libertado soube que numa série de interrogatórios a colegas seus do serviço de águas, um deles, alauita, defendeu-o. Encorajado, tentou de novo a sua sorte indo ao serviço de emigração para obter um passaporte. E para sua surpresa o pedido foi aceite.
          É para o Egito que decide ir com a família, se conseguir arranjar o dinheiro, claro. Na primavera de 2013 o governo egípcio estava a receber bem os sírios. Estão preparados para partir, mas H. al-S. ainda precisa de convencer o pai. O pai lamenta-se com o facto de o filho o abandonar, mas H. al-S. não tem outra hipótese, por muito que lhe custe deixar o velho entregue à sua sorte. A mulher e os seus três filhos tocam mais alto.
          Metidos num auto-Pullman que outrora transportava os turistas, seguiram até Aqaba, no Mar Vermelho, passando provações por uma série de postos de controlo. Num dos postos do regime, um jovem fazia parte da lista dos procurados. Um soldado agarrou-o e obrigou-o a sair do autocarro. Os passageiros horrorizados, pois sabem que o seu destino é ser morto, falam com o motorista e pedem-lhe para perguntar aos guardas quanto querem para o libertar. O condutor volta com um número: duas mil libras sírias. Faz-se uma coleta e cada um contribui com as suas últimas economias. A vida do homem foi salva.
          Chegados a Aqaba, à meia noite de um fim de junho de 2013 entram no ferry que os faz chegar a uma cidade turística do Sinai peninsular egípcio por volta das quatro da manhã. Foram os últimos sírios a fazer esta travessia, porque dois dias depois a fronteira era encerrada.
          Quando a guerra civil na Síria começou, as pessoas clamaram para que as nações ocidentais interviessem em nome dos direitos humanos, que estavam incontestavelmente a ser violados. Mas não havia qualquer vontade política para proteger esses direitos porque tínhamos perdido a fé de os poder fazer cumprir. A Europa passou a ser a utopia literal, um não-lugar, no preciso momento em que milhões de pessoas de outras culturas manifestaram vontade de habitar. Mas uma cultura culpada, exausta e moribunda como pode funcionar incorporando de repente milhões de recém-chegados?

. . . [esta narrativa irá continuar em próximos apontamentos neste blogue]. . .

Missing Migrants Project

Desde janeiro, contam-se mais de 105 mil pessoas que tentaram atravessar o Mediterrâneo. Só 73 696 chegaram à Europa, segundo dados do Missing Migrants Project http://missingmigrants.iom.int/

Todas as outras, para além das que morreram, foram intercetadas no caminho e, possivelmente, devolvidas aos países de onde partiram, quase sempre a Líbia. O desembarque de navios de ONG em Itália estão a ser dificultados pelas autoridades. Como os navios não têm onde atracar, o número de missões diminuiu. No entanto, no Mediterrâneo, todos os dias centenas de pessoas continuam a fazer a travessia. Assim, é esperado que o número de mortes aumente drasticamente.

Ficar dias à espera que lhes seja atribuído um porto seguro tornou-se quase regra para os navios das ONG, após o regate de migrantes. O mais mediático dos casos, e por ter sido o primeiro, foi o do Aquarius (com mais de 600 pessoas a bordo). Seguiram-se outros casos, incluindo o navio Lifeline – do qual Portugal recebeu também 30 pessoas, que chegaram a 29 de julho a Lisboa e foram acolhidos pelo Conselho Português para os Refugiados, no Centro de Acolhimento da Bobadela.

Um dos problemas apontados pelas autoridades é o dos traficantes e contrabandistas que se aproveitam de um negócio que explora a miséria humana. O Conselho Europeu e os líderes de todos os Estados-membros apelam a todos os navios que respeitem a lei internacional e não interfiram com as operações da Guarda Costeira Líbia. Mas sem ONG, e com as águas patrulhadas pela Guarda Costeira Líbia, as pessoas são intercetadas e transportadas novamente para a Líbia, onde são sujeitas a tortura e abusos. A última vez que não houve qualquer navio de resgate operado por uma ONG no Mediterrâneo, mais de 300 pessoas morreram no mar. Foram 11 dias sem ninguém para acorrer a eventuais salvamentos. O último caso reportado pelos Médicos Sem Fronteiras é de um naufrágio no Mediterrâneo onde terão morrido 100 pessoas. No dia 1 de setembro dois barcos de borracha deixaram a costa da Líbia, cada um com cerca de 160 pessoas oriundas de vários países entre os quais: Sudão, Gana, Camarões, Nigéria e Mali.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

A Europa e as migrações


         É muito possível que muitos dos atuais adultos europeus que ainda não fizeram 65 anos de idade, quando chegarem ao fim do tempo de vida de cada um, a Europa já não seja a mesma em termos de paisagem cultural e política. E é possível que uma boa parte desses europeus não vá gostar de chamar à Europa a sua casa. Mas uma outra parte vai estar disposta a aceitar viver numa Europa com um genoma diferente daquele que a vem caracterizando há pelo menos trezentos anos. É o caso de um líder político sueco, que já foi primeiro-ministro, pelo que diz. Ele diz, provavelmente vergado pelo peso da culpa do passado, que a verdadeira barbárie está no interior da Europa, e que do exterior vêm muitas coisas boas. Mas o sentimento da maioria dos suecos atualmente não parece ser esse, a avaliar pelo crescimento repentino da extrema-direita xenófoba expressa pelo voto em eleições.
          Seja como for, aconteça o que acontecer, hoje já há muitos lugares da Europa que deixaram de ser lugares preenchidos por gente europeia autóctone. Nesses lugares o estilo de vida é muito diferente do estilo a que esses lugares estavam habituados, inclusivamente o tipo de língua falada. E isso é assim porque os seus líderes políticos fingiram que isso era normal, assobiando para o lado.
          Sabemos pela História que destino tiveram civilizações cultas do passado por via das chamadas “invasões pacíficas dos bárbaros”. Para certas pessoas, não há problema nenhum, porque estão cansadas existencialmente deste tipo de civilização, envergonhados pelas coisas menos boas do passado, e por isso resignados por a história desta Europa ter chegado ao fim.
          Há evidências claras pelos factos históricos que, a imputarmos culpas pelo que está a acontecer à Europa, os maiores responsáveis são em primeiro lugar os próprios europeus. Por um lado, as sociedades europeias têm a culpa principal pelo estado a que aqueles países, cujos povos hoje se sentem obrigados a fugir, chegaram. E por outro lado, depois de saberem o que fizeram, não souberam, ou não quiseram tomar as medidas corretas de integração desses povos uma vez aqui chegados.
          Não se deve confundir o conceito de “migração” com o conceito de “expansão demográfica”. Expansão demográfica é simplesmente a ocupação do terreno de uma forma cada vez mais alargada por uma população cujo efetivo vai aumentando de número. E o conceito de “migração” consiste na mudança de lugar de residência temporária ou permanente de indivíduos ou grupos sem caráter de ocupação.
          Não vou terminar este artigo, talvez mais longo do que esperava, sem fazer uma análise mais abrangente do fenómeno das migrações que inclui aspetos que raramente são abordados em artigos de opinião generalistas como este, e que tem a ver com a migração dos genes e das línguas faladas desses povos, já para não ir mais longe e dizer que o fenómeno das migrações não está apenas intrinsecamente ligado à história do homo sapiens desde que saiu de África há 70 mil anos, mas é um fenómeno à escala animal, com especial expressão na vida dos pássaros ou aves de arribação.
          Ao nível dos genes pode haver migração de genes sem haver migração de indivíduos. Nas migrações temporárias, os indivíduos podem regressar ao lugar de origem, mas simultaneamente deixar no outro lugar os seus genes, como quem deixa a semente de eucalipto em Portugal de um eucalipto que ficou na Austrália. E assim, o seu legado genético pode expandir-se por outros meios. O que está contido no património genético ilustra as migrações e miscigenações ocorridas ao longo da história da espécie humana.
          Assim, pelos genes podemos saber que a partir de África, a Austrália foi colonizada pelo homo sapiens antes da Europa. As razões estão evidentemente relacionadas com o clima, numa altura em que a Europa estava praticamente coberta de gelo, com a exceção talvez do sul da Península Ibérica.
          Hoje a genética recorre ao ADN mitocondrial, que é sempre passado por via materna, e ao cromossoma Y, necessariamente passado por via paterna, para estudar as migrações humanas. Apesar de em cada geração se perder muito do material genético dos ancestrais, em contrapartida a história genealógica por via materna ou por via paterna é muito mais fácil de reconstituir, dado que ao ser estudado um bloco de genes monoparentais evita-se o “ruído” causado pela recombinação genética. As linhagens maternas e paternas fornecem informação quanto à distribuição geográfica. Há combinações que são caracteristicamente subsarianas; outras são tipicamente europeias; outras estão apenas presentes na Ásia, na América do Sul, e na Polinésia. Como é óbvio, esta informação é muito importante para a reconstituição das migrações populacionais ao longo da história humana.
          Vou dar apenas alguns exemplos. O caso do povo Rom ou Cigano, com uma identidade genética bem distinta, é paradigmático porque não evoluiu com miscigenação significativa. Mas, ainda assim, a comunidade cigana portuguesa da atualidade é mais uma construção social do que uma realidade biológica ou étnica, que resultou de um processo demograficamente complexo em mudança. Em Portugal não aconteceu a persistência de outra língua, como sucedeu em comunidades de outros países. Na análise de uma amostra genética de ciganos colhida em vários locais de Portugal continental, há uma proporção ainda apreciável de genes originários da primeira migração que teve início na Índia há cerca de mil anos (17%). Noutro estudo realizado na Europa Central, 31% dos Rom europeus possuem genes de populações não Rom oriundos dos Balcãs e Médio Oriente, onde houve tempo para miscigenação dado o povo Rom ter permanecido aí bastante tempo antes de continuar a sua migração para ocidente.
          Outro contributo da genética para o estudo das migrações é o ligado ao diagnóstico de doenças raras. Por exemplo, no caso da “Doença de Machado-Joseph”, uma doença neurológica frequente nos Açores e conhecida lá por “doença do entrançar das pernas”, no início pensava-se que a origem primária era os Açores, mas agora sabe-se coisa diferente. Sabe-se que a a mutação não é originariamente portuguesa, mas começou no Extremo Oriente (China ou Japão). Uma vez que a entrada em Portugal se terá passado garantidamente depois da época do Neolítico, fica por determinar qual foi o movimento migratório que a transportou para cá. A moral da história é a seguinte: o facto de determinado traço genético ser atualmente muito frequente numa dada área geográfica, não significa que esse traço genético seja originário dessa mesma área. Pode ter a sua origem no outro lado do mundo.
          Por fim, o estudo das línguas é outro campo de estudo muito interessante. No conjunto das línguas do mundo, muitas se distinguem por não conhecerem a escrita. Essas línguas quando acederam à escrita foi por via da escrita dos povos que colonizaram as regiões onde se situam. São exemplo as línguas dos povos da atual Amazónia, ou dos bosquímanos da África Central. E o mesmo se poderia dizer dos esquimós. Mas também importa aqui referir casos como Egito, que apesar de o Egito Antigo ter tido uma escrita hieroglífica ou ideográfica, incluído no grupo das primeiras escritas no mundo de forma independente umas das outras, tenha por motivos políticos e culturais adotado a língua árabe e a escrita árabe. O árabe acabou por dominar todo o norte de África depois de Maomé, século VII da presente era. E é evidente que o árabe deixou amplas marcas na língua portuguesa, ao se ter combinado com a língua românica residual, uma língua de raiz indo-europeia, diferente do árabe que é uma língua de raiz semita. O indo-europeu terá surgido por volta de 1.500 antes da presente era, cuja representação mais próxima da primitiva será o sânscrito, uma língua da Índia fixada nos livros sagrados primordiais.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Eles Aterrorizam



Foi o que aconteceu em 11 de setembro de 2001. Os norte-americanos perderam a paciência e deram o golpe de misericórdia ao Médio Oriente. Agora, o terrorismo floresce ainda mais entre os escombros. Os terroristas mataram três mil pessoas. E 500 milhões passaram a ver um assassino à espreita atrás de cada árvore. É o nosso próprio terror interno que incita as televisões a mostrar imagens; e os governos a terem que dizer alguma coisa.

Os terroristas são mestres em espalhar o medo. No terrorismo, o medo é a narrativa principal. De resto, há uma grande desproporção entre a força efetiva dos terroristas – que deitaram abaixo as torres gémeas, e com elas mais ou menos três mil pessoas – e o poder militar dos Estados Unidos da América.

E é aqui onde eles querem chegar, fazer com que o inimigo perca a cabeça para que este retalie com força desproporcional. E foi isso que aconteceu: o Iraque, o Afeganistão, e já agora a Síria que num caos nunca visto se fragmentaram em pedaços. É o espetáculo teatral que interessa ao terrorista, esperando assim provocar o inimigo e fazê-lo exagerar na reação. Os terroristas montam com o máximo de violência uma cena aterradora de violência, que ao matar um punhado que seja, de pessoas, amedrontam milhões.

A estratégia do terrorismo é à primeira vista muito bizarra, porque deixa o mais importante nas mãos do inimigo. Porque o poder militar do inimigo não é beliscado, quando muito reforçado. O inimigo mantém todas as opções de ataque preservadas, à sua disposição para o usar quando quiser. Para aplacar os temores das suas populações civis os governos reagem ao teatro do terror com um equivalente “show” de segurança, orquestrando demonstrações de força através da invasão de países estrangeiros. Dizem os governantes: “Não toleraremos a violência dentro das nossas fronteiras”. E os cidadãos, por sua vez, levaram a sério a política da “violência zero”. Mas, na maioria dos casos, estas opções políticas colocam em risco as pessoas, ainda mais. E os militares, sabendo que assim é, tentam evitar essa situação a todo o custo. É este o paradoxo, o próprio sucesso dos estados modernos tornou-os particularmente vulneráveis ao terrorismo. Por isso, o fito do terror é gerar temores viscerais que por sua vez vão espalhar a anarquia por todo o lado, fazendo com que as pessoas se sintam como se a ordem social estivesse prestes a entrar em colapso.

Assim, a ação mais inteligente contra o terrorismo tem de ser uma ação clandestina, em que uma das lanças mais certeiras é o boicote financeiro que alimenta os terroristas. Isso não é algo que os cidadãos possam ver na televisão. Mas não, o que os cidadãos de todo o mundo viram foi a encenação de um espetáculo ainda com mais fogo e fumaça. Assim, em vez de os Aliados agirem silenciosa e eficientemente, desencadearam uma poderosa tempestade, que acalentou ainda mais os sonhos dos terroristas.

Mas há pessimistas que vislumbram os dias que hão de vir ainda mais sombrios. Por um lado, o ciberterrorismo e o bioterrorismo serão muito mais ameaçadores. E por outro lado haverá outras frentes ainda mais catastróficas. Quando Nova Iorque e Londres se estiverem a afundar sob as águas do Atlântico, ninguém vai saber para que lado se virar. Mas até lá os pessimistas ainda esperam a guerra aberta Europa-Rússia com EUA e China a arbitrarem. Simplesmente não há mãos que cheguem para nos podermos preparar para toda e qualquer eventualidade.

É difícil estabelecer prioridades em tempo real, enquanto é muito fácil criticar retrospetivamente decisões sobre prioridades. Nós acusamos os líderes de terem fracassado, mas ignoramos outras catástrofes que poderiam ter acontecido e não chegaram a materializar-se. Na década de 1990 pouca gente imaginava que os terroristas islâmicos fossem capazes de desencadear um conflito global arremessando aviões comerciais contra os arranha-céus de Nova Iorque. Na verdade, muitos temiam que a Rússia entrasse em colapso total e perdesse o controlo não apenas de seu território, mas também de milhares de bombas nucleares e biológicas. Uma outra preocupação era que as guerras sangrentas na antiga Jugoslávia pudessem se espalhar para outras partes da Europa oriental, resultando em conflitos entre a Hungria e a Roménia, entre a Bulgária e a Turquia, ou entre a Polónia e a Ucrânia. Muitos ficaram ainda mais inquietos com a reunificação da Alemanha. Hoje podemos ridicularizar esses cenários porque sabemos que não se materializaram. A situação na Rússia estabilizou-se, a maior parte da Europa oriental foi absorvida pacificamente pela União Europeia, a Alemanha reunificada é saudada hoje com o agrado de todos, e a China tornou-se o motor económico do mundo inteiro.

sábado, 8 de setembro de 2018

As crises identitárias


As crises identitárias, quer na Europa, quer nos Estados Unidos, estão relacionadas com duas coisas. Primeiro, com o aparecimento do "outro" no nosso país e com o medo de que o "outro" transforme a nossa sociedade. Essa crise identitária existe quer na Europa, quer nos Estados Unidos, e não parece que vá passar de um momento para o outro. O segundo aspeto relaciona-se com a mobilidade social. As pessoas perguntam-se se a entrada em massa de imigrantes não condiciona o seu acesso à riqueza, o acesso dos seus filhos a uma boa vida. Até há pouco tempo, os nossos valores políticos maioritários, na Europa e nos Estados Unidos, eram a ideia de que somos povos hospitaleiros, que temos de abrir as portas a outros. Mas a crise dos migrantes veio alterar essa ideia. Da ideia de que somos povos hospitaleiros, porque somos cosmopolitas e internacionalistas, passámos à ideia de que temos de proteger o nosso país contra a mudança.

Agora, se os imigrantes fizerem um esforço sincero para se integrarem – e, em especial, para adotarem o valor da tolerância –, o país de acolhimento tem o dever de os tratar como cidadãos de pleno direito. Se os imigrantes de terceira geração não são vistos e tratados como cidadãos de pleno direito, isto significa que o país de acolhimento não está a cumprir as suas obrigações. Por exemplo, uma adolescente nascida em França, depois dos seus avós terem imigrado para lá vindos da Argélia, ela fala francês e não árabe, e nunca na vida visitou a Argélia, é impossível que agora alguém lhe diga que não pertence a esta terra e que deve “voltar” para um sítio onde nunca viveu.

Ninguém te dúvidas acerca das diferenças culturais que existem, por exemplo, entre europeus, árabes e africanos ou magrebinos. Mas também é verdade que a maior parte das lideranças europeias ocidentais dos últimos trinta anos envidaram esforços para a construção de um sistema multicultural próspero.

O que se passou então para que muitas dessas mesmas pessoas considerem que agora a Europa corre o risco de colapsar se não for capaz de solucionar o atual problema das migrações? Por irónico que possa parecer, foi precisamente o sucesso europeu no que respeita ao clima de acolhimento que fez atrair tantos imigrantes, o que por um círculo vicioso e não virtuoso teria inevitavelmente que levar a uma crise identitária. Neste momento em que escrevo, os europeus estão divididos entre aqueles mais a leste que acham que a Europa tem de se fechar às migrações se quiser evitar a catástrofe; e aqueles mais a ocidente que acham que a Europa não pode fechar a porta aos imigrantes, se não quiser trair os ideais multiculturais e tolerantes que tanto trabalho deu a edificar. E, por outro lado, fazem questão de lembrar que que não se pode querer ter o melhor de dois mundos: aceitar temporariamente trabalhadores estrangeiros só para lhes explorar a força e talento para o trabalho barato, e com isso criar um submundo de tráfico humano (trabalhadores ilegais e outras coisas mais); e depois dizerem que não querem mais estrangeiros. Seria bom que os europeus começassem por se entender todos. Enquanto isso não acontecer, dificilmente se conseguirá ter uma política clara acerca da imigração.

Agora vejamos esta questão: o acolhimento de imigrantes deve ser entendido como um dever (obrigação) ou um favor? Porquê acusar as pessoas de racismo só porque acham que já não há condições para receber mais estrangeiros? Se os suecos agora já não querem mais sírios a entrar no seu país, estão no direito de lhes recusar a entrada, ou não? E se o número de extremistas ultrapassar um determinado limiar que transforme por completo a natureza de uma determinada sociedade ou comunidade?

A boa integração do imigrante num pais de acolhimento ainda que se compreenda que se desenvolva gradualmente, e não de um dia para o outro, exige de ambas as partes alguns deveres tais como o dever de o imigrante se esforçar por assimilar aspetos da cultura local que tenham importância na saudável convivência, como os valores da tolerância e os valores da liberdade, desde que esta não colida com os mesmos direitos das outras pessoas. Assim, não poder ser tolerada, por exemplo, a misoginia, a homofobia, o antissemitismo, e por aí adiante. Os imigrantes que receberam autorização para entrar na Suécia deviam sentir-se extremamente gratos por tudo o que receberam e não aparecerem agora com uma lista de exigências como se fossem donos de tudo. O que parece mais sensato a determinados imigrantes que têm problemas com certas idiossincrasias de um país, é procurar outro país.

Donald Trump, O método no caos



Neste livro Tiago Moreira de Sá e Diana Soller explicam a importância que uma dada comunidade teve para a eleição de Trump, e analisam a influência dessa comunidade numa nova visão do mundo a partir de Washington. O contexto social americano, as narrativas históricas dos Estados Unidos e os discursos e políticas de Trump permitem-nos ir além da personalidade do homem, para compreender aquilo a que se chamou method in madness. Assim, apesar da intempestividade da sua personalidade, dos desvios próprios dos debates internos e dos fatores inesperados que surgem no desempenho das suas funções, é possível traçar uma política externa, uma grande estratégia e até uma visão da ordem internacional com uma racionalidade própria.

Os Estados Unidos, até Obama, eram globalistas no sentido económico, mas também no sentido político, tinham alianças permanentes e preferência por certos Estados em relação a outros por razões ideológicas. Para um populista nacionalista como Trump, nada disso faz sentido. Porque, segundo Trump — e isto foi uma mensagem muito veiculada durante a campanha —, o estrangeiro, seja o que está nos Estados Unidos, seja o que está fora, fez batota com os americanos. Usou as instituições que os americanos criaram para tirar proveitos para si próprio sem dar nada em troca e até prejudicando a América. Isso não é verdade, mas ressoou de uma maneira muito profunda no eleitorado americano. Por isso é que o slogan de campanha era "América primeiro", subentendendo-se que todos os outros — internos e externos — estão depois. Esta é a mudança mais profunda nos EUA.


Há, de facto, uma dose de imprevisibilidade e impreparação, uma vez que ele não é um político profissional. Mas há muito mais racionalidade do que geralmente se diz. Antes de Trump ter sido eleito, durante as eleições primárias do Partido Republicano, ninguém acreditava que ele chegasse ao fim desse processo. Mas chegou e ganhou. Depois, disseram que nunca chegaria a Presidente, mas chegou. Depois, disseram que seria destituído. Não foi, e não é provável que venha a ser. Estas reações são, sobretudo, emocionais. É uma análise baseada na vontade e no desejo, e não em querer compreender.


Quem está com ele são as populações brancas, de rendimento e escolaridade baixos, uma comunidade ressentida porque sempre houve um certo desprezo por ela. É a esta gente que um autor chamou “os jacksonianos”. Os jacksonianos são individualistas, desconfiados do Governo federal, e consideram que o Governo não tem que se meter nas vidas deles. A crise económica de 2008 fez com que as classes-média e média-baixa enfrentassem uma crise de emprego, de valores e de identidade. Por outro lado, essa comunidade foi-se estendendo por áreas geográficas onde não costumava estar. Hoje em dia estão noutros estados — por exemplo, nas cinturas fabris do Ohio e do Illinois —, onde têm uma nova influência.


Agora a comunidade popular alargou-se. Uma grande parte da classe média, que estava bem na vida e que até era preconceituosa em relação à América jacksoniana, passou a identificar-se com os mesmos problemas. Este fenómeno é profundamente moral, e quando nós entramos numa conceção moral da política, o mensageiro não é tão importante como a mensagem. A mensagem, sendo moral, é um absoluto, algo em que as pessoas acreditam absolutamente. E é por isso que se vão esbatendo aquelas distinções entre notícias verdadeiras e fake news, a verdade e a mentira, ou o bem e o mal.


sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Multiculturalismo ou cosmopolitismo, mas não racismo


          Daniel Oliveira na sua última crónica do Expresso Diário, diz que não é um “principista”, isto porque questões de princípio podem sabotar os valores que supostamente se querem defender. Por exemplo, é contra a proibição do uso do hijab nas escolas francesas porque não só acha essa imposição escusada e contraproducente, como vai privar pessoas de um bem maior que é a instrução e o conhecimento. Mas prossegue dizendo que por não ser um “principista” não significa que aceite a atomização cultural. Daí se segue que não se considera um multiculturalista, mas um cosmopolita. O multiculturalismo, segundo Daniel Oliveira, é a recusa do cosmopolitismo por via do isolamento. Portanto, um cosmopolita é, por assim dizer, um “promíscuo cultural” no bom sentido, na medida em que há uma partilha bidirecional de culturas na sua rica diversidade por serem exprimidas em liberdade, apesar de todas obedecerem às mesmas leis do país em que vivem.
          Uma questão muito colocada no debate atual sobre a imigração é a da diferença entre culturas: As culturas valem inerentemente todas o mesmo, ou há evidência que na diversidade das culturas umas são objetivamente e honestamente melhores do que outras? Os alemães, ao integrarem em muito pouco tempo um milhão de refugiados sírios, podem sentir-se, com razão, orgulhosos, quando pensam que a cultura alemã é, de certa maneira, melhor do que a cultua síria?
          O debate em torno deste tema não deve ser conduzido como uma luta absoluta entre o bem e o mal. Trata-se de uma discussão de prós e contras na vida prática em clima democrático. É muito mais fácil um muçulmano emigrar para a Alemanha do que um cristão emigrar para a Arábia Saudita. E depois? Se efetivamente é assim, haverá algum mal, ou dir-se-á algum disparate se se disser que a cultura alemã é melhor do que a cultura saudita?
          O racismo, após 1945, passou a ser não apenas moralmente aberrante, como cientificamente abominável. Os biólogos, e particularmente os geneticistas, provaram de forma inequívoca que as diferenças físicas entre pessoas nativas de partes do mundo geograficamente distintas, eram irrelevantes para o caráter único que especifica o homo sapiens em qualquer canto do mundo. Tudo o que certos autores, antropólogos ou não a coberto da ciência, até aí tinham dito sobre umas raças humanas serem superiores a outras quanto ao nível de inteligência, não só foi deitado para o caixote do lixo, como veementemente repudiado por todos os cientistas a seguir à Segunda Guerra Mundial. Isso não contradizia o facto de haver diferenças significativas entre as várias culturas humanas.
          A dada altura, na segunda metade do século 20, surgiram os relativistas culturais a fazer o seu caminho defendendo que as diferenças culturais não implicavam que houvesse uma hierarquia valorativa de umas serem superiores às outras. Todas as crenças e todas as práticas sociais deviam ser comemoradas. Porém, a prática veio interpelar-nos para nos pronunciarmos em relação a algumas práticas tais como o infanticídio, a lapidação por adultério, mutilação genital feminina, e por aí fora entre muitas outras.
          Portanto, algumas manifestações que vemos hoje em dia pronunciar-se contra certas práticas tradicionais de uma cultura ou outra, e que vemos outras pessoas classificar essas manifestações de racismo, na verdade, deviam ser classificados, quando muito, de culturismo.
          Hoje em dia, ainda que prevaleçam algumas franjas da sociedade que se comportem como racistas tradicionais, elas perderam todo o seu fundamento e respeitabilidade política. Mas poderá ser mais correto chamar culturista, e não racista, a um polícia que se vale da cor da pele como heurística de trabalho para construir a sua grelha de suspeições. Pode, eventualmente, estar imbuído de racismo, mas não é essa a hipótese que devemos colocar em primeiro lugar na maioria dos casos em que está envolvido o agente da autoridade na sua missão de proteger os cidadãos. As práticas policiais seguem padrões que são ditados, quer pela História, quer pelo historial da experiência passada. É claro que isto não significa que a mudança do móbil biológico para a razão cultural não tenha implicações profundas, algumas boas, outras más. Há a tentação para considerar que, se os “outros” adotarem a nossa cultura, tanto melhor. Mas isso é o que Daniel Oliveira chama a atenção para a sua preferência pelo cosmopolitismo sobre o multiculturalismo. Em muitos casos não se encontra justificação para que se exija que se adote uma dada particularidade da nossa cultura, quando se trata de puro preconceito ou idiossincrasia.
          No entanto, os antropólogos e sociólogos de hoje sentem-se muito desconfortáveis nestas discussões porque é muito fácil o resvalo para o “politicamente incorreto”, o que pode levar a que tudo volte ao princípio, ao primarismo de todos os tempos. Não se pode negar que certas diferenças culturais ainda são objeto de grande conflito. Muitas vezes tem-se a ideia errada de que o que é nosso é sempre melhor do que o que é do outro, quando o que está em causa são apenas termos e momentos locais ou circunstanciais históricos. Dando um exemplo: pode não ser aceitável, mas compreensível, que um trabalhador português numa empresa na China tenha os mesmos problemas – quanto à justiça feita com a sua promoção – que um trabalhador chinês numa empresa em Portugal. Aqui o que está em causa são realidades distintas umas das outras, e que não há que levar a mal que na China o chinês passe à frente do português, e em Portugal seja o português a passar à frente do chinês na promoção sem que o critério tenha sido por mérito.

A crueldade humana é mesmo infinita

          
          Foi ontem à noite, quinta-feira dia 6, encontrado o corpo da Professora de Físico-Química do Montijo que estava desaparecida desde o dia 1, embora o alerta do seu desaparecimento apenas tenha sido dado à PSP de Setúbal no dia 3 de setembro, segunda-feira.
          O que agora já se sabe dia 7 (11 horas de sexta-feira): A Professora foi assassinada pela filha adotiva de 23 anos de idade, e genro. Filha essa que na segunda-feira, dia 3, havia partilhado no Facebook o seguinte: 


“Caros amigos e amigas.
Infelizmente venho informar-vos que a minha mãe desapareceu. Foi vista pela última vez no dia 01/09 pelas 21h/22h na hora de jantar. Avisou que iria sair e desde então que não temos notícias dela. O telemóvel encontra-se desligado e não há meio possível de contacto. Agradecemos que quem tenha notícias dela nos informe imediatamente a nós ou à Polícia, pois já foi feito um relatório de desaparecimento formal na PSP.
Muito obrigada a todos.”
 

         Os suspeitos já foram detidos pela polícia, por homicídio qualificado e profanação de cadáver. Pois, diligências realizadas pela polícia judiciária deram por apurado que a filha e o genro, que com ela coabitavam, na sequência de inúmeras desavenças, delinearam um plano, executado conjuntamente, para lhe tirar a vida. A vítima foi queimada viva. A investigação permitiu apurar que no sábado os suspeitos, pela hora do jantar, usando fármacos, colocaram-na na impossibilidade de resistir, agrediram-na violentamente no crânio com um objeto contundente, colocaram-na na bagageira de uma viatura e transportaram-na para a zona de Pegões, onde, com recurso a um acelerante, lhe pegaram fogo. O corpo, indica a PJ, foi localizado completamente carbonizado.
          A estupefação e o choque de indignação das pessoas é ampliado ainda mais na mente daqueles que viram pela TV a entrevista que a filha ontem deu à TVI. Quão difícil é através do que as pessoas dizem fazer juízos com a ingenuidade da nossa subjetividade. Valha em abono da Verdade o método científico da polícia judiciaria que não se deixa levar em cantigas. Ela faz um depoimento do desaparecimento da mãe com um ar de inocência e candura e preocupação tal que ninguém que não seja psicólogo ou investigador policial suspeitaria do que ela estava ali a encobrir.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

A face do mal em perspetiva: entre o Carmo e a Trindade, e as Torres Gémeas



Dando de barato que a expressão “caiu o Carmo e a Trindade” tem origem no Terramoto de 1755, em que desabaram as igrejas do Carmo e da Trindade em Lisboa, o que nos interessa considerar aqui é quão o Mal ameaça a razão humana, pois desafia a nossa esperança de que o mundo faça sentido. Até ao 11 de setembro de 2001, havia duas referências magistrais para mostrar o que era o mal: o Terramoto de Lisboa enquanto crueldade divina, e Auschwitz enquanto encarnação extrema da crueldade humana.

Ao examinarmos a nossa compreensão do Mal, digamos entre a Inquisição e o terrorismo jihadista contemporâneo, quer em termos teológicos, quer seculares, o que mais nos perturba é a sua ininteligibilidade. Pode haver significado num mundo no qual inocentes sofrem? Pode a crença no poder divino ou no progresso humano sobreviver a uma catalogação do Mal? Filósofos tradicionais, de Leibniz a Hegel, buscaram defender o Criador de um mundo que continha o Mal. Inevitavelmente, os seus esforços corroeram a crença na benevolência, no poder e na relevância de Deus, até Nietzsche alegar que Ele estava morto.

O século XVIII costumava usar a palavra “Lisboa” tanto quanto até agora se usava a palavra “Auschwitz”, e provavelmente a partir de agora “11 de setembro”. Quanto peso uma referência bruta é capaz de carregar? Não é preciso mais do que pronunciar esses nomes para que toda a gente perceba quão frágil é a confiança que podemos ter no sentido mais básico do mundo: os fundamentos da civilização. O terramoto de 1755 que destruiu a cidade de Lisboa, e fez desaparecer em poucas horas vários milhares dos seus habitantes, provocou uma ampla reação, tão veloz que Voltaire e Rousseau se puseram rapidamente de acordo quanto à urgência de discutirem o assunto por troca de correspondência, apesar de Frederico o Grande ter considerado exagerado o cancelamento dos preparativos para o carnaval do ano seguinte. Nesta Prússia Oriental Iluminista, até um estudioso de importância menor de Königsberg, Immanuel Kant era um desconhecido ao lado de Voltaire e Roussau, fez estremecer o Iluminismo com três ensaios sobre a natureza dos terramotos, que saíram no jornal de Königsberg.

No entanto, comparar Lisboa a Auschwitz não passa de um equívoco. Sob esse aspeto, Lisboa e Auschwitz são dois tipos de acontecimento completamente diferentes. Para Auschwitz, a reflexão conceptual demorou a chegar. É de espantar que os filósofos contemporâneos desses acontecimentos, salvo raras exceções como é o caso de Hannah Arendt, não tenham percebido a importância de um acontecimento dessa magnitude. Uma das razões dadas para a ausência de reflexão filosófica é a dificuldade do pensamento dada a magnitude do problema. O que aconteceu nos campos da morte nazis foi tão absolutamente mau, que, diferente de qualquer outro acontecimento na história mundial, desafiou a capacidade humana de compreensão durante muitos anos.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Os suplícios e a moldura do castigo



          Em Vigiar e Punir, Michel Foucault diz ao que vem começando por apresentar o relato de duas condenações no século XVIII em França, sendo que a segunda distanciada da primeira cerca de trinta anos, para evidenciar como evoluiu positivamente a moldura do castigo quanto aos métodos de suplício. Entre tantas modificações, o desaparecimento dos suplícios. É instituído o júri cujo caráter é o corretivo. Punições menos diretamente físicas, menos ostentação dos métodos.
          Assim, de um momento para o outro desapareceram os suplícios, os corpos esquartejados, expostos como espetáculo. No fim do século XVIII e começo do XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai-se extinguindo. É suprimido o espetáculo punitivo. O cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser um ato de procedimento administrativo. A confissão pública dos crimes é abolida em França pela primeira vez em 1791, depois novamente em 1830 após ter sido restabelecida por breve tempo. A França aboliu o pelourinho em 1789 e a Inglaterra em 1837. Na Áustria, Suíça e algumas províncias americanas como a Pensilvânia, acabou o espetáculo nas ruas dos condenados com coleiras de ferro, em vestes multicores, grilhetas nos pés, trocando com o povo desafios, injúrias, zombarias, pancadas, sinais de rancor ou de cumplicidade. Quanto às cadeias que arrastavam os condenados a serviços forçados através de toda a França, até Brest e Toulon, foram substituídas em 1837 por decentes carruagens celulares, pintadas de preto. A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena, uma fornalha em que se acende a violência. A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal.
          A justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada ao seu exercício. O facto de ela matar ou ferir já não é mais a glorificação de sua força que envolvia ao mesmo tempo o carrasco e o condenado: e se por um lado sempre estava a ponto de transformar em piedade ou em glória a vergonha infligida ao supliciado, por outro lado, ele fazia redundar geralmente em infâmia a violência legal do executor: “O essencial da pena que nós, juízes, infligimos não creiais que consista em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, curar. O tempo das forças, do pelourinho, do patíbulo, do chicote, da roda, são vergonhas do passado, marcas de uma barbárie sem nome nem razão.”
          Van Meenen ao abrir sessenta anos mais tarde, o segundo congresso penitenciário, em Bruxelas, lembrava o tempo da sua infância como uma época passada: “Vi o solo semeado de rodas, de forcas, de patíbulos, de pelourinhos; vi esqueletos horrendamente estendidos sobre rodas”.
          Dir-se-á: “a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio, a deportação – que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos – são penas físicas, com exceção da multa, se referem diretamente ao corpo.”
          Mas a relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem. Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado”. Por efeito dessa nova retenção, surgem novos agentes que vieram substituir o carrasco, o anatomista imediato do sofrimento. Vieram guardas, médicos, capelães, psiquiatras e psicólogos educadores. A garantia de que a dor do corpo não é o objetivo último da ação punitiva. O médico deve cuidar dos condenados, mesmo daqueles condenados à morte, até ao último instante.