Não é apenas ao
eurocêntricos que me estou a referir. A maioria das pessoas em qualquer parte
do mundo está propensa a acreditar que é o centro do mundo, e que a sua cultura
é o sustentáculo da história humana. É desnecessário dizer que britânicos,
franceses, alemães, americanos, russos, japoneses e incontáveis outros grupos
estão, da mesma forma, convencidos de que a humanidade teria vivido numa
bárbara e imoral ignorância não fosse pelas espetaculares conquistas da sua
nação.
Mas nenhuma das
religiões ou nações atuais existia quando os humanos se espalharam pelo planeta
domesticando plantas e animais, construindo as primeiras cidades, ou inventando
a escrita e o dinheiro. Moralidade, arte, espiritualidade e criatividade são
aptidões humanas universais desde os primórdios dado estarem incorporadas no
genoma. É, portanto, arrogância chauvinística atribuí-los a um lugar e um tempo
mais recentes.
Quem ouve falar os
fanáticos literalistas da Bíblia até parece que a Bíblia foi o primeiro texto a
pregar a moralidade universal, como se os humanos, antes da época de Abraão e
de Moisés, vivessem num estado da natureza sem nenhum comprometimento moral, e
como se toda a moralidade contemporânea derivasse dos Dez Mandamentos. É uma
ideia sem fundamento e insolente, que ignora muitas das mais importantes
tradições éticas do mundo. É difícil de engolir a ideia de que os europeus, que
desapossaram com violência os nativos das suas terras aquando da colonização,
eram possuidores de padrões morais superiores aos deles. Pelo contrário, todos
esses povos já possuíam uma visão ética do mundo bem desenvolvida, tal como os
nossos antepassados caçadores-coletores da Idade da Pedra. E ainda podemos ir
mais atrás no tempo e na escala evolutiva para dizer que chimpanzés, gorilas,
golfinhos, lobos, e por aí fora, possuem regras morais ou éticas.
Os cientistas hoje
em dia afirmam que a moralidade, na verdade, tem profundas raízes evolutivas
que precedem o surgimento do homem em milhões de anos. Por exemplo, quando
filhotes de lobo brincam uns com os outros, eles têm regras de “jogo limpo”. Se
um filhote morde com muita força, ou continua a morder um adversário que rolou
de costas, rendendo-se, os outros filhotes vão parar. Se um chimpanzé fêmea
jovem encontra uma banana, comumente até mesmo o macho alfa evitará roubá-la
para si mesmo, porque ao transgredir essa regra vai perder estatuto. Um caso
ainda mais tocante aconteceu nas selvas da Costa do Marfim. Depois de perder a
mãe, um jovem chimpanzé teve que lutar para sobreviver sozinho. Nenhuma das
outras fêmeas quis adotá-lo, porque estavam sobrecarregadas com as suas
próprias crias. Magro e doente, quando tudo parecia perdido, o jovem chimpanzé
foi “adotado” pelo macho alfa do grupo.
Então como se
explica que chegados aos nossos dias parece que nada melhorou no que diz
respeito à crueldade humana e ao mal moral desde esses tempos imemoriais?
Teorias não
faltam. Por exemplo, Yuval Noah Harari, no seu livro mais recente “21 Lições
para o Século 21” é muito eloquente quando diz que o monoteísmo só piorou as
coisas – “O Antigo Testamento, o Talmude
e muitos (embora não todos) rabinos sustentam que a vida de um judeu vale mais
do que a vida de um gentio, o que explica, por exemplo, por que é permitido a
um judeu profanar o Shabat para salvar um judeu da morte, mas é proibido fazer
isso para salvar um gentio.”
Alguns sábios
judeus alegaram que até mesmo o famoso mandamento “Ama o próximo como a ti
mesmo” se refere apenas a judeus, e que não existe nenhum mandamento para amar
gentios. Essa suspeita é muito reforçada pelo facto de que a Bíblia ordena aos
judeus que exterminem certos povos. Essas são as primeiras ocasiões registadas
na história humana em que o genocídio é apresentado como um dever religioso.
A Bíblia está
longe de ser a fonte exclusiva da moralidade humana, quando contém muitas
narrativas que incitam atitudes racistas, misóginas e homofóbicas. Enquanto muitos
judeus até hoje acreditam que o assim chamado “povo eleito” está mais perto de
Deus do que estão outras nações, devemos enfatizar que pelo menos o
cristianismo tornou-se uma espécie de aperfeiçoamento revolucionário de inspiração
grega no sei do judaísmo, quando veio pregar uma ética universal. Leiam-se as
cartas de São Paulo. Mas depois a prática ao longo dos primeiros séculos veio
mostrar o pior.
Confúcio, Lao Zi,
Buda e Mahavira estabeleceram códigos de ética universais muito antes de Paulo
e de Jesus. Confúcio ensinou que toda a pessoa deve amar os outros como ama a
si mesma quinhentos anos antes de o rabino Hilel, o Velho, ter dito que essa
era a essência da Torá. E, numa época em que o judaísmo ainda ordenava o
sacrifício de animais e o extermínio sistemático de populações humanas inteiras,
Buda e Mahavira já instruíam seus seguidores que evitassem fazer mal não apenas
a seres humanos, mas a quaisquer seres sencientes, inclusive insetos. Por isso
não faz nenhum sentido creditar ao judaísmo e à sua descendência cristã e
muçulmana a criação da moralidade humana.
De um ponto de
vista ético, continuando a parafrasear Yuval Noah Harari, o monoteísmo foi sem
dúvida uma das piores ideias na história humana. O monoteísmo pouco fez para
melhorar os padrões morais dos humanos. O que o monoteísmo sem dúvida fez foi
deixar as pessoas muito mais intolerantes do que eram, contribuindo assim para
a disseminação das perseguições religiosas e guerras santas. No entanto
sociedades politeístas acham aceitável que povos diferentes cultuem deuses
diferentes e realizem ritos e rituais diversos. Raramente, se é que alguma vez,
combatem, perseguem ou matam pessoas só por causa de suas crenças religiosas.
Os monoteístas, em contraste, acreditam que seu Deus é o único deus, e que Ele
exigiu obediência universal. Consequentemente, quando o cristianismo e o
islamismo se espalharam pelo mundo, espalhou-se também a incidência de
cruzadas, jihads, inquisições e discriminação religiosa.